• Nenhum resultado encontrado

Da Palavra à ação

3.1. Os pobres: fundamentação bíblica

3.1.1. Antigo Testamento

Começaremos por abordar três textos do Antigo Testamento, que surgem na pregação de Agostinho sobre a esmola, o uso dos bens e a relação entre pobres e ricos e Deus. Apesar dos Sermões que estudámos não serem comentários ao Antigo Testamento, Agostinho recorre a textos desse Testamento para fundamentar algumas temáticas e fazer paralelismos com os textos evangélicos.

611 Agostinho convida o homem a olhar para alguns textos bíblicos como guias da vida moral cristã. A partir desses textos, os cristãos ficam a conhecer a lei divina e o que ela permite ou proíbe. Esses textos também ajudam Agostinho a articular a sua compreensão de responsabilidade ética, de modo especial o que Deus inscreve nos corações humanos: cf. FITZGERALD, Allan, “ethics”. In ATA, 324.

Neste sentido, selecionámos o relato da criação do Livro do Génesis, o capítulo IV do livro de Tobias e alguns Salmos. Agostinho recorre a esses textos, por ver neles o fundamento das temáticas centrais, expostas nas suas pregações: a origem comum de toda a humanidade, a corresponsabilidade no cuidado do outro, o cuidado do mundo, o convite à esmola, a confiança e dependência de Deus.

3.1.1.1. Gn 1-2: A bondade original

No relato da criação, em Gn 1 e 2, Deus revela-Se como sendo o Criador de tudo o que existe, inclusive do homem. Este texto permite a Agostinho fundamentar vários aspetos da sua doutrina social.

Em primeiro lugar, a afirmação de Deus como único Criador, permite afirmar a origem comum de todos os homens. É um dado que serve de mote para Agostinho fundamentar a igualdade ontológica de todos os homens, algo que lhe servirá de base também para outros argumentos. Exemplos disso, são as suas exortações à esmola, tendo como ponto de partida a responsabilidade recíproca recebida na criação, onde cada qual é responsável pelo seu próximo em virtude da sua própria humanidade, dom recebido na criação. Podemos afirmar que os Sermões são a exortação ao projeto central da humanidade: a sua própria humanização. Neles, Agostinho exorta à corresponsabilidade em nome da comum humanidade.

Em segundo lugar, se Deus é o criador de tudo o que existe, que por isso é bom, Ele é superior a toda a sua criação por ser o Bem dos bens612. Por conseguinte, o homem deve dar a primazia a Deus, porque Ele é anterior a toda a criação.

612 Deus é o criador de todas as coisas, desde a mais insignificante ao homem. Para justificá-lo, Agostinho afirma que “todo o formado, enquanto está formado, e todo o que não está formado, enquanto é formável, tem o seu fundamento em Deus”: Vera rel. 18, 35: “omne formatum, in quantum formatum est, et omne, quod nondum

Em terceiro lugar, o texto de Gn 1 repete várias vezes que Deus confirma a bondade da sua obra (cf. Gn 1, 4; 10; 12; 18; 21; 25; 31). É um texto que ajuda Agostinho na luta contra o maniqueísmo, na medida em que o apoia na afirmação da bondade da criação. Na sequência disso, também o “diabolismo” que os maniqueus projetavam tanto no homem como nos bens, vem aqui refutado. O mal existente não provém da criação de Deus, mas do mau uso da liberdade na relação com os bens e consigo mesmo613. É o que Agostinho afirma também exortando os seus ouvintes a serem bons como os bens, ou seja, a serem bons em relação à bondade original impressa em todas as coisas. O homem desrespeita essa bondade original, quando, possuído pela soberba e avareza, faz um mau uso dos bens e do bem que tem á sua disposição.

As conclusões que Agostinho tira deste texto, que tem como intuito a fundamentação da responsabilidade social dos cristãos, mostram as suas geniais intuições sobre a bondade da criação e a igualdade existencial de todos ser humano. As suas intuições permitem-lhe realizar, de modo brilhante, um caminho pedagógico com os seus ouvintes que conduzi-los-á da exortação à prática, em especial à prática da esmola como atitude necessária em vista da igualdade criacional.

3.1.1.2. Tb 4: O bem de dar os bens

O capítulo IV do Livro de Tobias, fala do valor da esmola, como uma ação que ilumina a vida humana, ação eficaz no combate contra as trevas. Vê-se, assim, o efeito que a esmola produz em quem a dá. A luz que ilumina e cura os dois cegos de Jericó é Cristo (cf.

formatum est, in quantum formari potest, ex deo habet” (CC 32, 209). E nenhuma coisa poderá ter uma natureza íntegra, se esta não estiver integra segundo a sua origem: cf. Vera rel. 18, 35-36 (CC 32, 208-209); Nat. b. 1 (PL 42, 551-552).

Mt 20, 29-34) e, fazendo o paralelo com Tb 4, Agostinho conclui que a esmola impede que se caia nas trevas, porque estaremos a caminhar no caminho da luz.

A esmola é uma das exortações de Tobias para os seus filhos, convencido como está de que o homem não se pode afastar dos pobres, mas, ao contrário, deve ajudá-los consoante as suas posses. Isso fará com que Deus não Se afaste do homem quando, este passar necessidade, e que as esmolas são a forma de guardar um tesouro no Céu (cf. Tb 4, 7-11).

Com a prática da caridade, o homem caminha, iluminado por Cristo, descobrindo no outro o seu próximo. A esmola tem efeitos tanto para quam dá como para quem recebe. Quem dá será recompensado por Deus com a salvação, e quem recebe poderá viver neste mundo com maior dignidade, além da salvação para a qual também está orientado, se louvar a Deus pelo bem recebido.

3.1.1.3. Salmos

Os Salmos traduzem toda a experiência vivente da humanidade. São a expressão religiosa e orante da vida quotidiana do homem, que, perante a diversidade das suas vivências se revê diante de Deus. Neste livro central da Sagrada Escritura, Agostinho também relê a sua vida e ministério, encontrando expressões e vivências que o ajudam a fundamentar alguns dos temas que expõe aos seus ouvintes. Salientamos apenas alguns Salmos mais significativos que usa na sua pregação.

O Salmo 39 trata, entre outros temas, da brevidade da vida humana através da imagem do homem e das riquezas materiais como um “sopro” (cf. Sl 39, 6-7). Esta temática serve de alerta para o homem, que deve reconhecer a sua finitude e colocar-se perante um Deus infinito, que lhe pode dar algo mais que a simples finitude614.

Os Salmos mostram, por outro lado, a grande confiança que o homem deve depositar em Deus. Aos que vivem iludidos e que dispensam no seu caminho a luz divina615, Agostinho cita o Salmo 18, para confirmar que Deus, por meio de Cristo, não nos abandona, sendo Ele quem nos ilumina e indica o verdadeiro caminho616. O salmista transmite, a partir desse Salmo, que Deus dá-nos tudo aquilo de que necessitamos, tanto o alimento como a nossa libertação. Perante esse Deus, Agostinho exorta a assumir uma atitude mendicante617.

O Salmo 110 fala da graça de dar aos pobres como um meio para praticar a justiça e receber a vida eterna. Esta passagem serve de base para convidar à prática da esmola, porque a esmola é uma forma de praticar a justiça. Também este Salmo, tal como o 18, diz-nos que Deus nos dá tudo o que precisamos. Daí que o crente deva imitar a bondade do Criador.

À semelhança do capítulo IV de Tobias, no Salmo 41, o Salmista diz que é feliz quem cuida do pobre, porque o Senhor irá salvá-lo no dia da desgraça e nunca o abandonará (cf. Sl 41, 2-3). Agostinho, servindo-se deste Salmo, acrescenta que Deus está sempre connosco e recompensará com a felicidade eterna aquele que cuida do seu próximo.

Estas referências dos Salmos mostram a necessária conciliação entre as vidas orante e caritativa que, unidas, elevam o homem a Deus. É para esta unidade que Agostinho exorta os seus fiéis a empreender, nas suas vidas, um processo de conversão da soberba e da avareza a Deus.