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Dependência do homem de Deus

2.1. Pobres e ricos

2.1.2. Ricos e pobres: mendigos de Deus

2.1.2.2. Dependência do homem de Deus

O Homem caminha nesta vida e, independentemente da sua condição social, vive dependente do seu Criador, que lhe deu a vida e que o chama para o banquete eterno, onde saciará a fome de todos os homens. Este Deus, que nos chama à vida, não quer fazer do homem seu escravo, mas, ao contrário, deseja a sua liberdade e uma vida plena.

Para confirmar esta dependência de Deus, Agostinho vai usar o termo mendigo, para dizer como o homem deve compreender-se na relação com Deus. Perante uma sociedade composta por muitos mendigos que pedem que alguém lhes sacie a fome, o pregador diz que todos somos mendigos de um Deus que nos dará bens eternos.

No Sermão 53 A, o Doutor da Graça comenta a bem-aventurança “Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5, 7) para justificar que o rico é mendigo de Deus. O rico é mendigo de Deus, quando tem fome e sede de justiça. Não são os bens que saciam o Homem desta fome e sede, mas Deus. Existem também mendigos, que são os pobres que pedem auxílio aos que têm mais do que eles. Estamos, assim, perante dois tipos de mendicidade: a mendicidade de todos os que batem à porta dos ricos em busca dos bens para a sobrevivência, e a mendicidade dos ricos, na medida em que auxiliam os pobres. O rico é um mendigo de Deus, e só será saciado por Deus se saciar o pobre415.

É na oração do Pai-Nosso que melhor se mostra que somos mendigos de Deus. Ao comentar essa oração, o Hiponense salienta, entre outras dimensões, a petição. Somos mendigos de bens espirituais, como bem atesta a frase: “Está o mendigo diante da casa do

414 Cf. s. 53 A, 6; s. 114 A, 4 (CNE 30/1, 112-114; 31/2, ;470-472). 415 Cf. s. 53 A, 10 (CNE 30/1, 114).

rico, mas também o rico fica diante da casa do Grande Rico”416. O Grande Rico é Deus, que possui muitos bens espirituais para dar ao homem. Pedimos a santificação do seu nome, porque, quando santificamos o nome de Deus em nós, seremos ao mesmo tempo santificados por Deus. Em segundo lugar, pedimos “Venha a nós o vosso reino”, para que o reino de Deus venha realmente a nós na nossa morte, e pertençamos ao Reino do seu Filho. Em terceiro lugar, pedimos “Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu”, para que não ofendamos a Deus; para que façamos a vontade de Deus como os patriarcas, os profetas e os apóstolos, que se tornaram lugar de habitação de Deus. Por fim, para que os inimigos (os que não acreditam em Deus) se convertam e se tornem cristãos417. Estes são bens espirituais que o homem mendiga a Deus, porque, com estes bens, o homem pode encontrar-se com Deus.

Além dos bens espirituais, nós pedimos bens temporais como é o “pão nosso de cada dia”. Este pão tem o duplo significado de bens espirituais e bens temporais. Os bens espirituais são a Eucaristia, a Sagrada Escritura e as orações; os bens temporais são os bens necessários para viver na vida terrena, como a comida, o vestuário e a habitação. Tudo isto o homem pede a Deus que lhe dê418.

Ainda no Pai-Nosso, pedimos “Perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores. As nossas dívidas são os pecados, e pedimos a Deus que nos perdoe, para ficarmos “libertos e absolvidos de todas as dívidas”419. Também devemos perdoar os outros para que não tenhamos nada contra o nosso próximo420.

Em sexto lugar, pedimos “Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal”. O Homem pode ser tentado pelo demónio e deve resistir-lhe. Deus, porém, por vezes prova o homem, para ver se este O ama verdadeiramente. Nessas situações, o homem pede a Deus que não o abandone quando tem de lutar contra as tentações, como são as relativas à

416 s. 56, 6, 9: “Stat mendicus ante domum divitis: sed et ipse dives stat ante domum magni divitis” (CNE 30/1, 150)

417 Cf. s. 57, 6, 6 (CNE 30/1, 168).

418 Cf. s. 57, 7, 7 (CNE 30/1, 170); cf. ÁLVAREZ NATAL, Domingo, “Danos hoy nuestro pan de cada día”, Revista Agustiniana 63 (2017), 147-149.

419 s. 57, 8, 8: “Liberi et ab omnibus debitis absoluti” (CNE 30/1, 172). 420 Cf. s. 57, 8, 8 (CNE 30/1, 172).

concupiscência. O homem deve vencer a avareza e a iniquidade, reagindo sem avareza e castamente421.

O Hiponense desenvolve a segunda parte da petição: “Livrai-nos do mal”, afirmando que é um grande mal a vingança. Esta tentação diz respeito à ira contra alguém. E pedimos o perdão dos outros pecados, porque falhamos no comprimento da premissa “Assim como nós perdoamos”. Se pecamos e pedimos o perdão, Deus irá perdoar-nos, mas, se nos vingamos de alguém, não estamos a perdoar o outro, e estamos a falhar com o compromisso que fazemos na recitação do Pai-Nosso422.

Esta explanação tirada dos Sermões sobre o Pai-Nosso iluminam a doutrina de que somos mendigos de Deus. Todos nós somos mendigos de Deus, de bens espirituais e de bens eternos, e devemos ser insistentes com Deus e bater à sua porta (cf. Sl 110, 9). É com esta confiança de mendigos que devemos agir, confiando que havemos de receber alguma coisa423. O homem deve pedir com moderação os bens terrenos, como o dinheiro e a honra. Quando não recebemos estes bens, devemos confiar em Deus, porque, se Ele não dá, é porque não quer que nos percamos com os bens. Deus deseja o bem do homem e dá-lhe o necessário, não lhe concedendo o que pode prejudicá-lo. Para ilustrar esta ideia, Agostinho usa a imagem do filho que pede ao pai uma espada ou para montar a cavalo. O pai sabe que o filho não sabe usar a espada ou montar a cavalo, e então não lhe dá estes bens. A intenção desse pai é negar a parte a quem quer conservar o todo424. Ou seja, Deus recusa dar o que sabe que pode levar à perdição total do homem425.

No Sermão 102 fala-se de como o rico soberbo não olhava para o mendigo Lázaro que batia à sua porta, vindo, depois a tornar-se mendigo de Deus no inferno. É um texto que deve servir não para condenar os ricos e as suas riquezas, mas para alertar o homem de que é

421 Cf. s. 57, 9, 9 (CNE 30/1, 172-174)

422 Cf. s. 57, 10, 10; s. 57, 11, 11 (CNE 30/1, 176); cf. GARCÍA ÁLVAREZ, Jaime (ed.), “San Agustín: ´El Padre Nuestro`”, Revista Agustiniana 63 (2017).

423 Cf. s. 61, 4, 4 (CNE 30/1, 260). 424 Cf. s. 80, 7 (CNE 30/1, 590). 425 Cf. s. 80, 7 (CNE 30/1, 590).

mendigo de Deus, mesmo possuindo muitos bens. O homem rico deve olhar para os mendigos que lhe pedem auxílio, porque no futuro será mendigo de Deus426.

Em conclusão, podemos dizer que, no desenvolvimento destes temas e na temática anterior, Agostinho apela à responsabilização social da parte dos que possuem bens. Tendo os homens uma origem comum, sendo parentes e companheiros de viagem, cabe a cada um a responsabilidade de zelar pelo bem do próximo. O Hiponense recorda aos cristãos que não vivem isolados uns dos outros, mas partilham um espaço, e serão cada vez mais Corpo de Cristo na medida em que partilham os bens terrenos uns com os outros, pensando no termo da sua caminhada, que é a vida eterna em Cristo.