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1.2. A missão do bispo no século

1.2.1. Mediador civil

1.2.1.2. Papel do bispo na sociedade

Com o progressivo desmoronamento da autoridade imperial, acentuou-se a diferenciação entre o poder e a autoridade. Os magistrados romanos tinham um poder de coerção quase ilimitado, mas eram detestados pelo povo. Em contrapartida, os bispos tinham autoridade, também por virem do povo, que participava na sua escolha. Não eram, portanto, escolhidos por um poder central opressivo, nem recebiam impostos.

A aristocracia do Estado não tinha consciência dos seus deveres, sendo composta de cortesãos e nobres, que ambicionavam títulos e uma vida luxuosa e ostensiva. A Igreja, por sua vez, com a sua organização cada vez mais apurada, foi, progressivamente, ocupando este espaço e orgânica sociais. O povo não sabendo a quem acorrer, voltava-se para os bispos, que cada vez mais se tornavam figuras de referência nas diversas cidades116.

Os bispos, que agora passavam a ser eleitos de entre as elites, assumiram funções de relevo que passaram a ser-lhes próprias, e que diziam respeito à orientação da vida social e cristã117. Ao múnus da pregação, catequese, administração dos sacramentos e formação do clero, foi-se acrescentando o ofício da administração da justiça. Todos estes serviços passam a fazer parte do múnus do bispo do século IV118.

Faltando da parte do governo do Império o auxílio aos pobres, a Igreja incrementou o apoio destes últimos com as suas instituições, atuando, por vezes, como um “poder”, exercido através das obras de beneficência. Substituindo os funcionários corrompidos e insuficientes

115 Cf. DANIEL-ROPS, História da Igreja de Cristo, 666-669. 116 Cf. DANIEL-ROPS, História da Igreja de Cristo, 669-671.

117 Os bispos passaram a desempenhar funções dos curiais e notáveis das cidades, porque o número destes diminuiu devido a dois fatores: a diminuição das cúrias e o abandono dessas funções por parte dos latifundiários: cf. REBAQUE, Fernando Rivas, Defensor pauperum, 51*.

do Império, os bispos assumiram o papel de dar alimento, roupa e comida aos pobres e, inclusive, organizar a defesa das cidades119.

À volta da sede episcopal organizou-se o serviço de assistência aos pobres, escravos, prisioneiros e peregrinos. Nas grandes cidades, surgiram obras de beneficência, como hospitais, abrigos para os pobres, asilos, orfanatos, hospícios; uma parte das receitas da Igreja era destinada aos pobres. É um exemplo disso Basílio de Cesareia que fundou um hospital, que se tornou modelo para outras instituições caritativas120.

Especialmente em épocas de epidemias ou de calamidades, era à Igreja e às suas obras sociais que ocorriam os necessitados. E era ao bispo que os reprimidos pelos funcionários imperiais ocorriam a pedir proteção.

Esta transmissão do poder laico para a mão das autoridades religiosas desenvolve-se sobretudo nos séculos IV e V 121. Os cristãos sentiam-se apoiados pela Igreja, o que não acontecia com o Estado. O próprio Estado, ao criar a instituição dos defensores da cidade, encarregou os bispos de designar o titular para esse cargo122.

Assim, a vida das comunidades dos fiéis foi fortemente marcada pela personalidade dos seus bispos, que intervinham, não só em matéria religiosa, mas também nos assuntos familiares, judiciais e financeiros. O múnus episcopal comportava também a celebração da Eucaristia, a celebração do batismo na Vigília Pascal e a pregação123.

119 Cf. BIHLMEYER, Karl, TUECHLE, Hermann, História da Igreja, 378. 120 Cf. BIHLMEYER, Karl, TUECHLE, Hermann, História da Igreja, 379.

121 Esta mudança de papéis na orientação da sociedade teve como origem os vários fatores relacionados com os bispos do século IV, tais como a posição e prestígio social dos bispos, as suas possibilidades económicas e judiciais, a sua formação e as relações que adquriam. No século IV, o bispo tornou-se o patrono da cidade e o intermediário com o poder central, distinguindo-se dos antigos patronos pela sua condição de homens sagrados, que os beneficiava no exercício da autoridade, bem como pelo ideário baseado na Escritura e na Tradição da Igreja: cf. REBAQUE, Fernando Rivas, Defensor pauperum, 52*.

122 Cf. DANIEL-ROPS, História da Igreja de Cristo, 671-672. 123 Cf. DUVAL, Yvette, “L’Afrique: Aurélius et Augustin”, 809.

O bispo tinha a função de administrar os bens, garantindo a manutenção do clero, dos mosteiros e das obras de caridade. Os bens da Igreja tinham a sua origem nas doações124 feitas pelos cristãos125.

O episcopado de Agostinho correspondeu a um tempo de mudança na sociedade, que Agostinho ajudou a construir com a sua intervenção. É desde o Édito de Milão que o bispo assume um lugar influente na sociedade, um diversificado papel o ajuda a animar e a governar a Igreja. Agostinho visitava os presos para os proteger dos maus tratos, das torturas judiciais e execução126.

Como bispo, o Doutor da Graça foi aos poucos ganhando relevância e poder na cidade de Hipona. Incialmente, confrontou-se com uma cidade dividida entre pagãos e cristãos, entre donatistas e católicos. Durante o seu episcopado, teve de enfrentar os donatistas e algumas figuras influentes na cidade127.

O pastor de almas procurava ser um vigilante, que, ao mesmo tempo, exortava e ensinava os fiéis com a sua pregação. Essa missão, porém, não era vista por Agostinho como uma regalia, mas como um peso que o distraía e impedia de elevar-se às coisas de Deus128.

Num seu Sermão129, em dia de aniversário da sua ordenação e perante o seu rebanho, Agostinho disse o que pensava do seu múnus episcopal. Usa o termo “peso”130 para dizer que ser bispo não é motivo para se auto-glorificar, mas é um serviço ao povo. Para fundamentar o seu múnus como “peso”, cita as passagens de Mt 11, 30, onde Jesus diz que o seu jugo é suave e o seu fardo é leve, e Gal 6, 2, na qual o apóstolo Paulo recomenda que se carreguem os fardos uns dos outros. Assim se vê que Agostinho concebe lugar do bispo na sociedade

124 A Igreja cresceu em poder económico, porque começou a possuir numerosos bens, resultantes de heranças que lhe deixavam alguns fiéis, de doações dos cristãos mais abastados, de esmolas dos fiéis e da isenção de impostos. O bispo era o principal administrador desses bens: cf. REBAQUE, Fernando Rivas, Defensor pauperum, 51*.

125 Cf. DUVAL, Yvette, “L’Afrique: Aurélius et Augustin”, 810. 126 Cf. BROWN, Peter, Agustín de Hipona, 205.

127 BROWN, Peter, Agustín de Hipona, 203-205. 128 Cf. Vit. Aug. 19 (PL 32, 49-50).

129 Cf. s. 340, 1 (CNE 33, 994).

130 Aparece no texto latino o termo sarcina, sarcinam, que, na linguagem latina pode significar bagagem, bagagem pessoal dos soldados. Em sentido figurado, significa obstáculo, peso, fardo: cf. s. 340, 1 (CNE 33, 994).

como de alguém que está ao serviço e que tem uma responsabilidade acrescida na correta orientação dos cristãos, e, acima de tudo, é cristão com os cristãos. Demonstra-o a sua célebre afirmação: “Para vós sou bispo, convosco sou cristão”131.

Agostinho era um agente da sociedade civil, que persegue os injustos e defende os frágeis132. Era alguém que acolhia o pedido de quem a ele se dirigia, para defender um condenado à morte, para defender os cristãos dos circunciliones, para dar asilo e tantos outros pedidos133.

Ao intervir a favor dos mais desfavorecidos, Agostinho teve, porém, de enfrentar a rivalidade de outras figuras influentes na sociedade. Os hiponenses preferiam colocar-se sobre a proteção de um alto senador, como Símaco, do que sob proteção de Agostinho. Isso faz com que o episcopado do século IV seja, entre certos aspectos, diferente do episcopado da época medieval134.

Agostinho recusou uma vida que concebia o episcopado como regalia, com a usufruição de bens, preferindo uma vida simples e reunindo à sua volta o clero para viverem uma vida celibatária, pobre e com regras segundo as indicações da Escritura, que davam especial espaço à oração e ao estudo. Assim, o seu clero não estava ligado à vida da cidade nem pelo matrimónio nem por interesses económicos. Agostinho distingue-se, assim, dos romanos do seu tempo, porque estes gastavam a sua riqueza ostensivamente, enquanto Agostinho recomendava a esmola com o sentido de humanitas135.