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A potência da transformação dos corpos pela via da imaginação, ou da

2 A LINHAGEM DOS CONTRATEMPOS: A ESCOLA DOS MESTRES DO

5.5 A potência da transformação dos corpos pela via da imaginação, ou da

Na pedagogia fantástica, é importante saber: o corpo é quem determina o que vamos aprender. Como território de passagem, é por meio dele que se movimentam os processos de aprendizagens. Nesse caso, pensar diferentemente é a capacidade de transformá-lo constantemente. Partindo dessa premissa, a quinta lição defende que a educação é o modo de transformação do corpo pela via da imaginação.

Por este motivo, talvez possamos dizer que a pedagogia fantástica é um verdadeiro anarquismo epistemológico uma vez que permite conhecer a partir do corpo tomado – ou tombado - como território de afecção e não como organismo. A tese central é a de que o potencial de aprendizagem de uma subjetividade está no corpo, não fora dele. Aqui, o grau de aprendizado é constantemente alterado em função da capacidade de transformação que o corpo possui, ou seja, é na capacidade de afetar e ser afetado pelos fluxos energéticos que vêm de outros corpos no encontro com o nosso.

O princípio geral nessa abordagem é que somos dotados de um corpo fantástico – para alguns “corpo extático”, para outros “corpo sem órgãos” – que é caracterizado por sua potencialidade metamórfica e por isso tem o potencial de mudar de forma no momento mesmo que é atravessado por outras forças ou investido de outros afetos. Além disso, é importante dizer que esse corpo tem regiões com maior ou menor grau de intensidade de afecção. Ou seja, algumas zonas são mais sensíveis do que outras. Assim, em uma subjetividade o campo visual pode ser mais propício para afecções; em outras, todavia, a região mais favorável pode ser a audição ou o olfato. De tal forma que cada subjetividade pode encontrar, em seus corpos, os meios de maior acesso para aprendizado; há, enfim, zonas corporais de aprendizagem que tornam mais favoráveis os caminhos de sua transformação.

Dizemos que a materialidade do corpo é fantástica porque não é uma substância, muito menos pode ser reduzida a elementos bioquímicos; ele é um fluxo energético povoado de afetos que pode ser constantemente transformado pela inter-ação com outras forças e agentes. Vale ressaltar que, visivelmente, o corpo não muda. O que altera é o padrão afetivo que faz, com isso, que a subjetividade seja experienciada de forma diferente. O que estamos querendo dizer é que, quando um corpo se transforma, a subjetividade assume características diferentes, agindo de forma completamente distinta de seus padrões e hábitos naturais.

O que muda quando um corpo se transforma? De modo bem direto: nossa forma de habitar a subjetividade e consequentemente o mundo. Nossas sensações variam, nossa percepção muda, nossas motivações se alteram. Podemos estar tomando água, mas ingerimos “como se” fosse sangue. Podemos estar comendo madeira, mas saboreamos “como se” fosse geleia. Podemos até tomar cachaça, mas ingerimos “como se” bebêssemos néctar. Podemos estar numa poça de lama, mas sentimos “como se” estivéssemos numa banheira. Nossa perspectiva mudou. Não sentimos mais como antes, não percebemos mais como antes, não cheiramos mais como antes. Tudo ao redor se transforma.

Em suma, o corpo, por ser de natureza fantástica, tem a capacidade de ganhar novas dimensões e acessar novas aprendizagens no momento mesmo em que se permite ser atravessado por outros padrões energéticos e novas vibrações afetivas trazidas pelo encontro com outras gentes (animais, plantas, elementais, divindades...) e outros agentes (músicas, luzes, filmes, instrumentos...). Nas palavras de Gouveia e Hillis (2014, p. 15),

[...] o corpo não é algo permanente que é habitado temporariamente por uma outra consciência, mas sim que este corpo é um processo constante que ganha dimensões diferentes enquanto está conectado com os “novos agregados” trazidos pelo espírito. Uma vez que se trata de um processo contínuo, desprovido de qualquer essência ou identidade fixa, o corpo se torna suscetível a tais transformações.

Nesse caso, é por isso que, diante da transformação do corpo, a subjetividade, agora habitada por “novos agregados” (nova conjuntura de afetos e padrões energéticos) se torna capaz de realizar proezas que apenas com as suas capacidades fisiológicas habituais não seriam possíveis. Com isso, por exemplo, algumas pessoas conseguem usar capacetes extremamente pesados (é o caso dos oráculos tibetanos), pular e saltar durante horas sem sentir peso nas pernas, comer algo que normalmente se rejeita, abraçar alguém que não se tem apreço, conversar com mortos, se comunicar com as plantas, ingerir bebidas alcoólicas e não ficar bêbado etc.

É assim que o sujeito passa a vivenciar a condição de ser um outro que não ele mesmo. Nessa experiência de dessubjetivação, aprende-se a tática de sair do que nos torna um “eu” para acessar o mundo visto por um “tu”. Na transformação dos corpos, somos habitados por uma outra perspectiva subjetiva; e agora, as coisas que vemos não são mais as mesmas.

Nesse contexto, o destino de todo processo educativo seria o de nos ensinar a acessar diferentes pontos de vistas. Isso significa dizer que a tarefa pedagógica central é contribuir para habitar nossa subjetividade de outros possíveis. Esta é uma lição que nos incita a pensar a aprendizagem pela via da metamorfose, pois não basta mudar de ideia, é um convite para mudar a própria forma corpórea no momento mesmo em que se distancia de onde se afirma.

Pensar o corpo a partir de sua natureza fantástica pressupõe, portanto, questionar o que pode um corpo para além do seu marcador fisiológico e seu lugar de objeto. Implica, enfim, problematizar seu potencial para além do uso cotidiano. Ao não se submeter às limitações orgânicas e suas funções, o corpo, atravessado por novos afetos, aprende a fazer outros usos de si.

Assim, entende-se que há outros jeitos de usar a boca, outros jeitos de movimentar as mãos, novas funções para as pernas. Aprende-se que, quando permitimos que o corpo se transforme, abrimos novas possibilidade de ser, de agir, de ver, de falar, de sentir, de se relacionar, de se perceber, de andar, de cantar, de cheirar, de ouvir e até de saborear.

[...] Pode-se inferir disto que o reconhecimento do próprio corpo assume três funções. A primeira, a superação da visão dual e rígida sobre o corpo, evidenciando suas ligações com os impulsos, sentimentos e pensamentos, bem como seu constante devir com a realidade mutante; a segunda, educativa, ao indicar dificuldades permitindo, assim, superá-las; e por fim, a terceira, conscientizar o indivíduo a respeito de uma inteligência e de um querer que vem do corpo, não ligado ao pensamento racional (PLÁ, 2006, p. 30).

Por isso, não seria estranho dizer que, na pedagogia fantástica, é o corpo, enquanto território afetivo, campo de afetos e fluxos, quem ensina. É exatamente pelo seu potencial de transformação que se manifesta o método para habitar de diferentes formas a subjetividade e viver uma nova experiência de mundo. O corpo se torna, então, o caminho por onde se aprende por afecção.

A transformação do corpo, todavia, não é algo simples de se realizar tendo em vista o estado de entorpecimento resultante das diversas formas de docilização a que sofremos desde o momento que nascemos. Para essa lição é necessário um treinamento ainda mais direcionado de forma a contribuir para resgatar a inteligência corporal em sua natureza sensível. É preciso

aprimorar o corpo do aprendiz até o ponto em que ele se torne hábil para sentir o que se passa e o que lhe passa bem como, dizendo de outra forma, fazer uso do corpo fantástico exige, do aprendiz, uma habilidade para ir além do seu aspecto mecânico. Isso implica a utilização de um procedimento baseado fundamentalmente na imaginação no qual os tibetanos chamam de sadhana. Para a pedagogia fantástica, a sadhana, entendida literalmente como “meio para atingir” ou “meio para realizar”, funciona como uma espécie de procedimento metodológico que atua na transformação dos corpos pela via da imaginação.

Temos aqui um método exclusivo não apenas para alcançar, mas sobretudo para realizar o corpo fantástico e operar em nós uma transformação. Entre os principais aspectos desse processo está a prática da visualização através da qual somos incitados a gerar a si próprios como um outro ser que não nós mesmos a fim de acessar sua experiência de mundo e realizar sua sabedoria.

Com isso, sadhana se torna uma espécie de “manual” através do qual o professor ou professora delineia os principais elementos para se atingir a transformação dos corpos. O primeiro elemento denomina-se de “preliminares” e consiste em preparar o aprendiz para integração do corpo-energia-mente e estabelecer motivações adequadas para a tarefa; ou seja, é o momento de estabilizar a atenção e reavivar uma intenção altruísta de aprender para o benefício dos seres. Feito isso, concluímos as preliminares invocando-solicitando aos grandes seres de sabedoria que possibilitem as visões e transmitam seus conhecimentos.

O segundo elemento, denominado de estágio da geração ou “prática principal”, refere- se ao processo das visualizações de outros seres e outros mundos por meio de leituras direcionadas, cantos e sons. Neste momento o aprendiz é convidado a ver aquilo que está sendo dito não como representação mas como algo vivo. É necessário manter uma imagem visual nítida em nossa mente de modo a produzir efeitos em nosso corpo. Somos incitados a cultivar uma sensação real daquilo que é visualizado de modo a permitir que essas presenças e seres imaginados afetem nosso campo de ação.

O estágio de geração configura-se como um estado alternado de realidade através da qual geramos um mundo extra-humano, fantástico, por assim dizer, no qual nosso corpo-mente pode mergulhar. O que instalamos, por meio da visualização orquestrada pela leitura em- cantada, não é um mundo secundário apartado em si, “e sim uma crença secundária (em outro mundo)” (VALENTIM, 2018, p. 23).

Em um dado momento, a geração se transforma em autogeração: os seres antes visualizados à nossa frente, já não estão mais diante de nós; respondemos ao seu chamado e agora nos tornamos eles. A extra-humanidade gerada pela fantasia atua em nós nos

desapossando desde dentro e dotando-nos com sua visão. Nesse estágio de afecção, passamos a ver, sentir, cheirar, saborear, falar, pensar e agir não mais como um “eu”, mas como um Tu que nos interpela, nos toma e nos tomba. “[...] É assim que o mundo primário muda, sendo invadido por um mundo secundário, ao se conferir a este o tipo de crença que se costuma reservar somente àquele. Trata-se do reverso completo da incredulidade objetiva” (VALENTIM, 2018, p. 24).

Os seres da visualização, fantasiados no estágio da geração, podem, com isso, tanto transmitir conhecimentos quanto contribuir para alterar nossa experiência de mundo uma vez que, sob o efeito do en-cantamento da leitura, ganham vida própria e, portanto, atuam em nosso corpo. As maravilhas imaginadas se realizam independente da mente de quem as concebe (TOLKIEN, 2013).

Neste instante, em que nosso corpo é transformado e passamos a perceber o mundo sob a perspectiva da alteridade - que pode ser um espírito, uma planta, um animal, uma divindade, uma luz, uma outra gente – o aprendiz precisa se entregar profundamente aos afetos e padrões energéticos que vêm de modo a experimentar a radiação provocada pela visualização. A questão é que, a fim de realizar a sabedoria e aprender com um outro ser, a transformação dos corpos pela via da imaginação é um meio para ultrapassarmos a percepção comum e a perspectiva do eu. O que acontece é que, por meio desse procedimento de entrega, todas as aparências, todos os sons e todas as percepções e experiências são vivenciadas sob o ponto de vista de quem ou do que fomos transformados.

Por conseguinte, o que se abre é a possibilidade de alargarmos a nossa percepção e alterarmos nossas perspectivas de modo a desenvolvermos uma visão sagrada mesmo das coisas mais comuns. Pois, o interessante do dispositivo pedagógico da visualização é que, por meio do estágio da geração, criamos ligações

[...] Com imagens de coisas que não somente ‘não estão presentes de fato’, mas que na verdade nem podem ser encontradas em nosso mundo primário, ou que geralmente se crê que não podem ser encontradas nele. O fato de as imagens serem de coisas que não são do mundo primário, (se é que isso é possível), é uma virtude, não um defeito (TOLKIEN, 2013, p. 46).

Exatamente por isso – de estabelecer laços e consequentemente sermos transformados por coisas e seres que não existem no mundo primário - o grande desafio da imaginação como tecnologia de transformação: não basta visualizar, é preciso que o mundo fantasiado seja verossímil; precisamos colocar um certo grau de crença, conferindo consistência interna às

imagens de modo que elas se expressem e se realizem. E isso exige muito trabalho e nos demandará muita habilidade (TOLKIEN, 2013, p. 46).

Por fim, no estágio da consumação ou perfeição, desfazemos toda a visualização e dissolvemos tudo no espaço básico dos fenômenos. Contudo, integramos os efeitos gerados no contexto da prática em nossa vida diária. Voltamos em nós, mas não voltamos o mesmo. Vivenciamos as mesmas coisas, mas com um novo brilho perceptivo.