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Shambala: uma visão a partir do Chögyam Trungpa Rinpoche

2 A LINHAGEM DOS CONTRATEMPOS: A ESCOLA DOS MESTRES DO

4.1 Shambala: uma história de muitas versões

4.1.3 Shambala: uma visão a partir do Chögyam Trungpa Rinpoche

Havia, há muito tempo atrás, numa época pré-industrial do Tibete, da Índia, do Japão, da China e da Coréia, um tipo peculiar de comunidade que se alimentava da sabedoria e da ética de guerreiros. Eram sociedades primordiais, de estilo de vida antiguíssimo, que afirmava o potencial humano para a coragem e o destemor.

Nessas sociedades, de seres humanos comuns, as pessoas aprendiam a ser Dorje Dradul, “guerreiros adamantinos”: aqueles que portam uma vida preciosa e desenvolveram amores indestrutíveis pelo mundo. Em um contexto secular, não-religioso, portanto, esse corpo social baseava sua vida nos princípios da valentia, da dignidade e da magia.

Os sujeitos ali nascidos sabiam elevar a experiência cotidiana ao nível do sagrado; conduzindo sua vida com alegria e destemor, eles não rejeitavam as amarguras da vida. Sabiam que as coisas poderiam ser belas, ainda que não existisse beleza ali; que nossas neuroses não precisam destruir uns aos outros, e que diante dos grandes problemas que existiam, podemos ser amáveis e heroicos.

O princípio básico dessa sociedade baseava-se na amabilidade: enquanto seres humanos, podemos fazer amor. Sua existência era um gesto de ternura. Sua ética era a da coragem: jamais desistir de algo ou de alguém. O mundo todo era mágico: preenchido de vida,

indiscutivelmente animista, anímico, animado. Esse é Shambala: uma comunidade onde pessoas completamente comuns praticavam a trilha do guerreiro. Nesse reino,

[...] Em de vez renunciar às atividades mundanas e aos interesses pelo ascetismo de um eremita ou um monge, as pessoas de Shambala utilizam tudo, até mesmo as distrações do luxo e da vida familiar, como um meio para alcançar a iluminação. Elas se esforçam para se libertar da ilusão exatamente através das coisas que ligam os outros a ela (BERNBAUM, 1980 apud HAYWARD, 2002, p. 14).

Nesse caso, os habitantes de Shambala não eram seres iluminados, seres de grande sabedoria, mahatmas, deuses ou budas realizados. As pessoas que ali viviam eram comuns: trabalhavam, estudavam, tinham suas neuroses, enfrentavam seus problemas, sentiam suas emoções. Entretanto, afirma o Trungpa Rinpoche (1996, p. 32), “[...] a despeito de todos os seus problemas e confusões, a despeito de todos os seus altos e baixos emocionais e psicológicos”, eles eram capazes de fazer da própria trilha existencial seu exercício espiritual. Em Shambala, estimulava-se a aprender a ver, com olhos das luzes, a mensagem que estava chegando da vida. Eles aprendiam, desde cedo, que o mundo fala, ensina e educa por meio de acontecimentos. A natureza não é inerte, é dinâmica: tudo no entorno move-se entre fluxos e refluxos.

Shambala é o lugar onde o modo de viver era pautado no amor pela própria vida. A filosofia ali presente não se baseava no amor à sabedoria entendida como um conjunto de ideias, mas de uma sabedoria como um corpo que se sabe amar. O coração, nesse reino, era possuidor de sabedoria.

Inspirado no Rei Gesar de Ling, guerreiro tibetano, de caráter insondável e destemido que superou a barbárie de seu tempo pelos princípios do Tigre, do Leão, do Garuda e do Dragão, Chögyam Trungpa defende que Shambala fala muito mais do que o despertar de um indivíduo; é o tipo de proposta que, pela sua ética da coragem e filosofia da amabilidade, elaborou uma educação e uma política capazes de despertar toda uma sociedade.

Isso deixa claro que Shambala, na visão do Trungpa Rinpoche, não se refere a um processo educacional para realização individual; ocupa-se, no entanto, da formação humana como exercício de comprometimento com o mundo. Esse reino fundamenta-se na premissa de que

[...] Existe de fato uma sabedoria humana capaz de ajudar a resolver os problemas do mundo. Essa sabedoria não pertence a nenhuma cultura ou religião em particular, nem é exclusiva do Ocidente ou do Oriente. Trata-se, antes, de uma tradição que existiu em muitas culturas, em diferentes momentos no decorrer da história (TRUNGPA RINPOCHE, 1996, p. 27).

Em função dessa premissa, o reino de Shambala é tão real que atua como princípio formativo capaz de nos fazer aspirar e nutrir um cuidado comum com o mundo ao invés de se esconder dele ou negá-lo. Por isso, seus habitantes não olhavam para as outras pessoas e diferentes formas de vida como algo a ser maltratado ou explorado. Pelo contrário, aprendiam a apreciá-los e tratá-los como sagrados. Basicamente todo o reino dedicava-se em trans-formar a realidade com a finalidade de oferecer condições de uma vida íntegra para todos os seres. Essa era sua filosofia.

Terra de guerreiros onde a fronteira da experiência ordinária está inseparável de uma realidade extraordinária. O sol brilha com a vivacidade de quem acabou de nascer: pleno, grande, acalentador. Semeadores de sonhos, cultivadores de vidas; seus habitantes eram portadores de um autêntico coração da tristeza e, por isso, aprenderam a não separar cultura da natureza, humano do mundo, sujeito do objeto, intuição de intelecto.

Shambala, diz o Chögyam Trungpa, é o pedaço de mundo onde a magia está descoberta, circulando no cotidiano, atravessando as relações, penetrando a percepção com uma visão vasta e luminosa do real. Lá é o lugar onde “as pessoas tomam consciência de uma profundidade oculta, quase luminosa, nos objetos mais comuns, como flores e pedras. Uma nova sensação de assombro, que faz lembrar a infância, toma conta delas...” (BERNBAUM, 1980 apud HAYWARD, 2002, p. 14).

Neste reino, liberdade significa moldar a realidade. Ser livre sugeria que temos um corpo e uma mente inseparáveis trabalhando com o mundo de modo alegre e digno. Portanto, as pessoas usavam a liberdade como modo de intervir no social e trabalhar o universo desde uma perspectiva anímica.

Shambala descobriu o significado de uma sociedade iluminada e deixou os rastros de como podemos concretizá-la. Nesse sentido, dar forma a esse tipo de sociedade é uma possibilidade real. Como afirma Hayward (2002, p. 15), “já aconteceu muitas vezes e pode acontecer de novo”. A questão é se seremos capazes de, seguindo esses rastros, re-descobrir a magia.

À primeira vista, isso tudo pode soar como algo muito romântico, talvez até messiânico: amor, coragem, multiplicidade. Gostaríamos de pontuar, contudo, que esta mítica, e a proposta educacional que daí deriva, não aposta em nenhum ideia salvacionista, seja ela individual ou coletiva. “Trata-se antes de um manual para as pessoas que perderam em suas vidas os princípios do sagrado, da dignidade e da valentia” (TRUNGPA RINPOCHE, 1996, p. 21).

[...] Eis porque existe a visão de Shambhala. Trata-se de uma ideia milenar: colocando-nos a serviço do mundo, podemos salvá-lo. Mas salvar o mundo não é o bastante. Precisamos também trabalhar para construir uma sociedade iluminada (TRUNGPA RINPOCHE, 1996, p. 36).

A mítica de Shambala fundamenta-se não na promessa de um além, mas na premissa de que há mundos por vir quando estamos dispostos a repensar nosso modo de conduzir a vida sem desconsiderar a estrutura coletiva no agora. Há um método a seguir, um caminho a trilhar, um processo educativo a realizar. Nada para depois, nada além, tudo agora. Mais do que uma fantasia utópica ou ideal romântico de como deveria ser, Shambala é inspiração que nos faz empreender um caminho, uma viagem, uma trilha formativa para ajudar o mundo e construir uma sociedade pautada na ética, com princípios estéticos e políticos.

Em suma, a mitologia de Shambala foi a narrativa que possibilitou ao Chögyam Trungpa Rinpoche elaborar uma proposta pedagógica capaz de nos inspirar a olhar o cosmos e estabelecer nossas relações com os outros por uma lógica que não seja a do condomínio e por uma lente que não é pautada no “eu”. Ao redescobrir a magia, a trilha formativa derivada dessa mítica é o exercício para Devir-Shambala em nosso mundo no momento mesmo que somos capazes de devir-guerreiro na educação. É chegada a hora, “não podemos nos restringir a teorizar sobre nosso destino”; enquanto a educação não for vivida como trilha que nos ajuda a olhar com outros olhos, seus sujeitos continuarão sendo os mesmos e permaneceremos criando os mais diversos cenários de medo como justificativa para continuar hibernando em nossos casulos e eliminando as diferentes diferenças.