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2 A LINHAGEM DOS CONTRATEMPOS: A ESCOLA DOS MESTRES DO

4.3 A percepção (de um sujeito da educação) que vem do não-eu

4.3.1 A animalidade como mediadora de saber: ou, quando o inumano ensina

4.3.1.1 Uma Viagem à Casa do Tigre na Flor da Idade

Tradicionalmente, espera-se que o aprendiz de guerreiro se comprometa a visitar a casa de cada um desses animais em sua trilha educacional a fim de acessar o ponto de vista específico deles e, assim, aprender uma dignidade própria. A primeira visita é na casa de um tigre na flor da idade. Ao acessar sua perspectiva e adentrar em sua morada (corpo), o que vemos é alguém que

[...] Anda lentamente pela selva, atento ao que faz; mas, como aprecia seu corpo, sua elasticidade e seu senso de ritmo, está relaxado. Desde a ponta do nariz à ponta da cauda, nada está errado. Seus movimentos são como ondas; ele vai nadando através da floresta. Assim, sua vigilância em acompanhada de distensão e confiança (TRUNGPA RINPOCHE, 1996, p. 170).

O tigre na flor da idade, neste caso, não está à espreita, esperando dar o bote; ele é manso, mas não é fraco. O que significa aqui que ele irradia uma confiança que não precisa de referenciais externos para comprovar ou validar seus recursos. Olhar desde o ponto de vista do tigre possibilita acessar uma mansidão que nos permite confiar para explorar o terreno, pois é ao mesmo tempo humilde e alerta.

Na pele do tigre, aprendemos a ser curiosos ao que nos rodeia; queremos ver os detalhes, sentir a situação; nos interessamos meticulosamente pelo ambiente, por quem passa. Queremos olhar devagar o que acontece, com um senso suave de inquisição e interesse pelo outro; às vezes, procuramos sentir seu cheiro para, quem sabe, até, lamber sua pele. Queremos explorar a grandeza do lugar, mas não para que se tornem referências para nossa existência.

O tigre vê o mundo como alguém em estado inicial de paixão: sempre aberto e interessado a respeito do outro. Quer saber de cada detalhe – o que é, de onde vem, o que faz, o que irrita – mas sem oprimir e sufocar, pois reconhece a grandeza do próprio lugar. Com uma mansidão que lhe é própria, está sempre providenciando espaço para que o outro se mostre por completo. O que ele mais deseja é apreciar quem chega, conhecê-lo de perto, farejar seu mundo, “não tendo necessidade de ponto de referência externo para confirmá-lo” (TRUNGPA RINPOCHE, 1996, p. 170).

Afinal, a viagem à casa do tigre nos ensina a expressão da confiança sem condições. Agora, “já não dependemos das respostas dos outros, porque não duvidamos de nós mesmos. E como não dependemos da aprovação ou desaprovação de outros, também não temos necessidade de alardear nosso valor” (TRUNGPA RINPOCHE, 1996, p. 171). Há aqui um modo de ser manso que não precisa mendigar aprovação de ninguém. Sua visão é ampla e sua confiança é natural.

Nesse corpo humano-felino, aprendemos a estar num estado de simplicidade que só os mansos sabem ser: acessível, livre de complicações, sem se deixar engolir pelas preocupações. É que antes de se envolver com a situação, o jovem tigre a explora, em um misto de curiosidade e delicadeza. Ele caminha devagar, sem pressa, sentindo cada canto, com seu olhar manso mas sempre investigador.

Como autêntico felino, chega sempre se esfregando; com olhos grandes, porque atentos, nos encaram e mergulham na gente. Agora não querem mais sair. Quem o reconhece se perde na i-mansidão de seu olhar. Parece que sabem o que estamos pensando. Desviamos o olho, mas não conseguimos. Em suas pupilas convidativas, queremos saltar também.

Nessa indissociabilidade do homem-tigre e da mulher-tigresa estabelece-se uma aliança, uma espécie de pacto de sangue que aprende um modo que não é mais humano, nem animal: sabe-se manso. Vemos tudo que víamos antes, mas o que vemos já não é mais o mesmo. O mundo refletido nos olhos d’água do bicho é outro. Nessa troca de afetos ativar o estado de mansidão na forma humana de ser é vestir a roupa de tigre e perceber o mundo como ele vê. Visitar a casa do tigre ou trocar de pele com ele não é, portanto, imitar o animal, é, antes de tudo, sentir o mundo como ele sente e ver o que apenas ele consegue.

Ao ser-no-mundo-como-tigre todas as coisas que vemos, ouvimos, tocamos, cheiramos e saboreamos têm maior nitidez; as interações ganham em intensidade e vastidão. Não há barreira entre você e o mundo. Suspendemos as projeções, os juízos e as expectativas. Não perdemos o contato real com a percepção. Ela é direta, imediata. Com isso, vivenciamos a realidade em sua inteireza.

Sua morada é como entrar em uma cidadela de sabedoria intrínseca: tudo é vivido com total apreciação. No corpo de tigre não mudamos de cor, nem a maneira de ver o mundo, mas o mundo que vemos. E, nessa perspectiva, o que vemos do mundo? Algo para ser apreciado, antes de ser devorado. Lugar a explorar, antes de julgar. Pessoas a cheirar, antes de morder. O tigre na flor da idade olha o mundo como território para que os seres possam expressar suas necessidades e desejos, e não impor nossas ideias. É um lugar para se expor, com humildade e confiança, livre de prepotência e arrogâncias.

[...] Como o tigre na floresta, sentimo-nos a um só tempo relaxados e cheios de energia. Somos o tempo todo curiosos, mas nossa consciência é também disciplinada, de modo que realizamos cada ato sem dificuldades e inspiramos aqueles que estão à nossa volta a fazer o mesmo (TRUNGPA RINPOCHE, 1996, p. 171).

Que tipo de saber é mediado pela animalidade do tigre na flor da idade? A mansidão de quem tem a visão e a humildade de perceber e se interessar pelos detalhes. E por isso, nos ensina a olhar devagar, sentir devagar, ouvir devagar. Cheirar a pele do mundo, pois antes de emitir um juízo, é preciso apreciá-lo.