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2 A LINHAGEM DOS CONTRATEMPOS: A ESCOLA DOS MESTRES DO

2.5 Chögyam Trungpa Rinpoche: o Nascido no Tibete

2.5.1 Trungpa Rinpoche Como Poeta da Louca Sabedoria

Ao voltar do reinado butanês – depois do retiro solitário na caverna de Taktsang - Chögyam Trungpa passou por uma série de inflexões e acontecimentos: sofreu um acidente de carro que deixou seu lado esquerdo todo paralisado pelo resto da vida; largou os votos monásticos, rasgou as vestes, soltou os trajes exóticos; casou-se com Diana Judith Pybus, jovem garota de 16 anos, que viria a se tornar Diana Mukpo.

O professor Trungpa Tulku experienciou, nesses acontecimentos, o que ele chamou de “avisos menores”. E seguindo os sinais ali presentes, Chögyam despertou para os perigos da auto-ilusão presente no materialismo espiritual e decidiu eliminar a barreira que o separava de seus alunos. De fato, começou a dar passos ousados. Nessa virada radical para superar o autoengano que atravessava o processo formativo, abriu-se completamente para uma comunicação direta e íntima com os estudantes no Ocidente.

Isso significou desarmar as armadilhas presentes nas expectativas de como deveria ser o professor e do que os alunos esperam dele. Ele não queria mais ser tratado como uma peça de museu, menos ainda como um brinquedo para pessoas grandes. Ele queria que os ocidentais ouvissem os ensinamentos, não sua roupa. Desejava que os estudantes acessassem o coração dos exercícios espirituais, não alimentar suas neuroses. Assim, esforçou-se para cortar as ilusões e superar as ingenuidades presentes no processo de educação espiritual.

A direção que o Trungpa Rinpoche estava tomando, entretanto, não agradou alguns dos alunos em Samye Ling (seu primeiro centro de estudo e prática no Ocidente), o que gerou muito desconforto e tensão não apenas nas relações que eram estabelecidas como no modo como parte do grupo de estudantes começou a perceber todo o processo. Com os conflitos criados e partidos instalados, o Trungpa Tulku decidiu, após convite de outros estudantes, embarcar para o Norte da América em janeiro de 1970. Pelo incentivo de Diana, sua esposa, pegam passagem apenas de ida e viajam para os Estados Unidos, onde manifesta sua face não mais como monge, mas como um mestre da Louca Sabedoria.

Após as inflexões vividas no final da década de 1960, já ciente sensivelmente da atmosfera educacional de ilusão e engano dos estudantes ocidentais, Chögyam Trungpa

Rinpoche inicia a década de 1970 na intenção de dissipar o entendimento distorcido em torno da formação espiritual que tanto distraía os alunos na época e começa a conduzir uma série de estudos, palestras e retiros para explicitar sua compreensão em torno da natureza da espiritualidade.

Nas comunidades hippies do Norte da América, Trungpa Tulku literalmente escandalizou o estereótipo de professor budista sustentado pela sociedade. Fez de sua vida o avesso para aqueles que dele esperava alguma coisa de alguma ordem. Enquanto os outros professores faziam de tudo para manter as coisas no seu devido lugar, ele usava de sua vida para ensinar que nada, nem ninguém tem lugar rígido – e por isso não precisam estar aprisionados a nenhum mastro.

Tornou-se exímio dançarino na teia mágica das ilusões produzidas pela fixação no ego. Brincou com nossa imaturidade de ainda não saber nada-querer. Mostrou nossa cegueira primária de quem ainda não se sabe morrendo. Se dedicou fortemente a combater o uso da espiritualidade como produto de supermercado que se compra ou se vende. A fim de trabalhar essa energia de fascinação produzida pelo consumismo espiritual tão presente, manifestou-se como um mestre de louca sabedoria.

Para tanto, passou a utilizar de métodos como o estudo em torno da Sadhana do Mahamudra – constantemente falando que a espiritualidade não é para o “bem-estar”, mas um lembrete de que a vida é um grande campo de carniça, um cemitério a céu aberto. Esse tipo de ensino, portanto, exigia uma compreensão de que a vida “é um lugar para morrer e um lugar para nascer, igualmente, ao mesmo tempo” (BOYCE, 2011, p. 3), de tal modo que acessar uma prática espiritual, como a budista, não significava “projetar uma realidade parcial para se adequar a nós mesmos...de que as coisas fossem apenas de um jeito – confortável para nós” (BOYCE, 2011, p. 3).

Na sociedade hippie do Norte da América, o Trungpa foi completamente aberto e autêntico: sem reservas, sem fingimento. Estava alterado, fez-se outro. De uma sabedoria louca que constantemente dizia: exatamente neste momento, nós estamos morrendo! Somos todos terminais. E insistia: Se queremos fazer algo que valha a pena, é indispensável que desobedeçamos às ordens do eu; anarquizemos suas tramas; desatemos suas tessituras. Na perspectiva da louca sabedoria, o que entra em jogo não é o quanto somos inteligentes. Afinal, uma das grandes armadilhas que temos no Ocidente é nossa inteligência, porque queremos saber o que sabemos. A formação da louca sabedoria é uma questão de amor que nos ensina a servir, ao invés de exigir; que nos ensina a fazer, ao invés de cobrar; que nos ensina a viver junto, ao invés de supervalorizar o eu. Embora as instruções nos tenham sido dadas, qual de

nós deseja estar des-euficados? Trungpa Tulku começou a colocar os aprendizados da meditação na ação. Manifestou essa coragem de abraçar a totalidade da vida. E por isso pedia tanto que sentássemos uma vez e mais; e sentássemos de novo. Sem desculpas, sente-se.

Sua formação espiritual inteira, como na meditação, não foi um método para fugir da vida, mas abraçá-la por inteiro. O que se esperava de toda sua educação era exatamente que ele levantasse para fazer uma revolução: não precisar se aliar à perspectiva limitada do eu, nem seguir sua lógica de racionalizar a vida e intelectualizar o mundo. No que se tornou o Trungpa Tulku ao encontrar a comunidade hippie? Em um cachorro vadio que uniu emoção e insight.

[...] Chögyam é apenas um cão vadio. Ele vaga pelo mundo, Oceano ou passo de cume gelado. Chögyam pisa adiante como um cão vadio. Sem pensar na sua próxima refeição. Ele busca a amizade dos pássaros e chacais. E dos animais selvagens (TRUNGPA RINPOCHE, 1983, p. 3).

No norte da América, Trungpa Tulku manifestou o aspecto selvagem do professor espiritual que fez dos animais seus mestres; o efeito disso foi a subversão da filosofia em louca sabedoria. O problema é que a maioria de nós costuma pensar que Louca Sabedoria é o fazer irrefletido e irresponsável. As pessoas adoram pensar que tem a ver com beber exageradamente, “curtir a vida adoidado” ou abusar de sexo exagerado. Isso não é Louca Sabedoria! Os ensinamentos da Louca Sabedoria não estão baseados na irresponsabilidade ou no abuso de poder ou autoridade. Eles se fundamentam na capacidade de olhar para todos os tipos ideais de nossa cultura e ir exatamente na direção oposta! É um ato de coragem que nos estimula a ir além das expectativas sociais de modo a abrir brechas nas estruturas de dominação e criar rupturas nas formas que se querem rígidas. Não tem a ver com acumular um saber, mas em ser- sabedoria. Mais do que amor pela sabedoria, é um convite para saber-se-a-mar.

Desse lugar de mestre da louca sabedoria, Chögyam Trungpa Rinpoche fez do seu lugar de professor uma oportunidade para fazer com que os estudantes percebessem e abandonassem todas as expectativas e perigos presentes no processo formativo. A força absoluta por trás de suas palavras se encontrava no modo como vivia e na coragem de subverter o que a cultura lhe exigia. Fez da filosofia exatamente a prática que se distancia do lugar em que se afirma.

Trungpa Tulku avançou com uma energia constante e incansável. Horando o nome “Chögyam” que significa “oceano de ensinamentos”, ofereceu, desde a década de 1970 até sua morte em 1987, um vasto repertório de ensinamentos por meio de palestras, seminários, livros, centros e uma universidade contemplativa. O fato é que o professor da louca sabedoria estava engajado em formar seus alunos para que também se tornassem professores.

Dentre seus principais feitos destaca-se a fundação, em 1973, do Vajradhatu; uma organização central, no Colorado, que supervisionava os centros menores que foram e estavam sendo criados. Essa organização recebeu a visita de Sua Santidade o décimo sexto Karmapa (professor-líder da escola do Chögyam) no ano de 1974. Neste mesmo ano, Trungpa Tulku cria, também no Colorado, junto com professores, poetas, escritores, religiosos e acadêmicos o Instituto Naropa com o fim de oferecer cursos de verão que articulavam a sabedoria do Ocidente com os saberes do Oriente.

O Instituto Naropa reuniu pessoas como Kobun Chino Roshi, Allen Ginsberg, Anne Waldman, Ram Dass, Gary Snyder, Herbert Guenther, Joan Halifax, John Cage, Gregory Bateson e muitas outras personalidades notáveis. No primeiro curso oferecido – sobre escrita e poética – compareceram mais de 1500 pessoas (seis vezes mais o esperado para a sessão). “Foi uma noite selvagem”, afirma Anne Waldman. Daí em diante o espaço só cresceu, oferecendo mestrado em psicologia budista, educação contemplativa, Teatro, Dança, Música, Escrita e Poética.

Em 1997, o Instituto realizou uma grande conferência em Educação e Espiritualidade – o evento teve tanto destaque que foi considerada berço do movimento da educação contemplativa no ensino superior do Norte da América. A expansão do Instituto foi tanta que se tornou, no ano de 1999, em Universidade Naropa, ganhando reconhecimento total da Associação Central de Faculdades e Escolas do Norte.

Ele estava realmente em um momento de brilho e intensidade. Sua intenção com o Instituto Naropa era criar um espaço para que pudesse atravessar a psicologia, a educação, a ciência, a arte e a escrita de uma espiritualidade. Como ele mesmo dizia, a ideia era “deixar o leste encontrar o oeste e fazer as faíscas voarem”. E as faíscas voaram.

Inspirado pela Sadhana do Mahamudra, Trungpa Tulku mostrou uma energia dinâmica e constante – domador de feras selvagens e canibal das ilusões. Até que, em 1976, floresce o desejo de oferecer um método espiritual que pudesse ir além do próprio budismo denominado. Nesse momento, ele manifesta-se como o príncipe oriental, herdeiro de uma linhagem nobre de professores que trabalharam em nome de uma sociedade iluminada e estabelece o Aprendizado Shambala.