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Da natureza mágica da espiritualidade: a arte de estabelecer uma política por

2 A LINHAGEM DOS CONTRATEMPOS: A ESCOLA DOS MESTRES DO

5.4 Da natureza mágica da espiritualidade: a arte de estabelecer uma política por

A essência da espiritualidade mágica está nas atividades cotidianas. Essa é nossa quarta lição e, portanto, algo a ser aprendido no campo deste dispositivo. A diferença central desse enfoque espiritual é a defesa de que um outro mundo nos é sempre possível. Contudo, não estamos nos referindo a um mundo além, para depois. Defendemos a possibilidade de um outro mundo possível aqui e agora, já!

O princípio fundamental que se instala nesse momento da pedagogia fantástica é a lição de que não há aprendizado para depois, nem um aprendizado centrado em si: o mundo precisa de nós agora. De acordo com esse ponto de vista, a espiritualidade não deveria ser encarada como algo dissociado da vida cotidiana. Não tem a ver com ir para outra esfera ou outro reino, nem ir em busca de um paraíso distante.

[...] É por isso que para nós é tão importante falarmos sobre espiritualidade ligada a todos os aspectos relacionados com o nosso mundo conhecido. Para nós, é possível ver as situações comuns do ponto de vista de uma percepção intuitiva extraordinária – que é a de descobrir uma joia sob um monte de lixo (TRUNGPA RINPOCHE, 2014, p. 123).

Desde uma natureza mágica da espiritualidade, aprendemos a trabalhar com as situações que nos aparecem agora, pois magia é a arte de intervir no mundo e modificar sua experiência. Implica que, em sua natureza dinâmica, o mundo não é estático e por isso mesmo não se restringe em adaptar-nos. Nesse contexto, a espiritualidade emerge como um conjunto de exercícios pautado pelo compromisso de intervir no mundo em torno de nós.

Para a feitiçaria, a espiritualidade é o modo através da qual dissolvemos o eu por meio do cuidado comum com o mundo, ao invés de reduzir o mundo aos referenciais do eu.

Basicamente, a educação espiritual, enquanto exercício, é a conversão do olhar do eu para o mundo; é um compromisso que se estabelece com o mundo vivo, existente. Não tem nada a ver com conquistar um lugar no paraíso ou uma felicidade especial que tem o eu como fim.

Dizendo de outro modo, a espiritualidade de natureza mágica é uma forma de fazer política por outros meios na medida em que não toma como referência os aparatos partidários, estatais, governamentais. É uma maneira de intervir diretamente no mundo a partir de meios hábeis concretos como a fantasia, por exemplo. A questão é que, nesse tipo de visão espiritual, a pedagogia passa a ser um método educativo que tem como eixo o estabelecimento de votos e compromissos.

Nesse caso, para a pedagogia fantástica não há como pensar na relação educação e espiritualidade sem se comprometer com algo ou alguém. O processo formativo começa com um compromisso! Começamos com o compromisso de não causar danos, trabalhando em não trazer sofrimento a si nem aos outros, abstendo-nos de prejudicar quem quer que seja, seja pela fala ou pelos atos; seguimos o caminho e aprendemos a cuidar uns dos outros, estabelecendo as bases para um cuidado comum com o mundo; até chegarmos no ponto em que fazemos o voto de abraçar o mundo como ele é, aprendendo a mover-se sem exigir, sem esperar, fazer simplesmente.

[...] Grande parte do treinamento nos dois primeiros compromissos envolve minimizar nossa tendência a rotular e ter ideias preconcebidas, ter pontos de vistas e opiniões sobre tudo que percebemos. Com o terceiro compromisso, levamos ainda mais adiante. Não é que não se possa ter pontos de vistas a respeito de mingau ou neve – ou de qualquer coisa no que isso tange. É só que não nos apegamos a esses pontos de vista. Em vez, nós os experimentamos, divertimo-nos com eles, como um ator ou uma atriz numa peça. Podemos dançar com a vida quando ela é uma festa tresloucada e totalmente fora de controle, assim como quando é tão terna quanto um amante. Trabalhamos com o que tivermos, com quem somos nesse instante (CHODRON, 2014, p. 111).

O ponto chave é que nesse tipo de espiritualidade aprendemos a nos ocupar da vida, do jeito que ela vem e não como gostaríamos que ela fosse. A maior lição dada aqui é a de que precisamos nos importar com o mundo, pois tudo que acontece nele nos diz respeito. Não por acaso, a tarefa que nos cabe quando se fala de perspectiva mágica da espiritualidade é a de não abdicar do mundo e não desistir de ninguém.

Apaixonar-se pelo mundo!!! Isso capta o que significa a espiritualidade mágica. A pergunta que constantemente seremos levados a responder com essa quarta lição será: “estou disposto a abandonar tudo que representa uma barreira entre mim e os outros, uma barreira

entre mim e o mundo?” (CHODRON, 2014, p. 114). É isto que somos levados a problematizar quando decidimos nos engajar a um dispositivo dessa natureza.

No mínimo, o que essa lição nos ensina é a sermos coerentes consigo mesmos. A base dessa espiritualidade é a disposição para a honestidade em relação ao que podemos e não podemos enfrentar; em relação ao que dizemos e fazemos; em relação ao que nos comprometemos. Afinal de contas, a espiritualidade não tem a ver com um conjunto de dogmas ou uma lista de regras que devem ser cumpridas.

À medida que avançamos nesse dispositivo educativo, aprendemos o que significa responsabilidade: abdicar não dos outros, mas da obsessão por nós. Percebemos que a situação toda não é sobre ter poder sobre, mas de dissolvê-lo. A quarta lição é sobre como um mundo pode ser transformado quando entendemos que tudo que existe é sagrado. Pois “o sagrado é aquilo com o que importamos o suficiente para lutar e correr risco. Não queremos vê-lo destruído ou danificado. Compreendemos que ele é a base das coisas que realmente sustentam a vida” (STARHAWK, 2018, p. 61).

Com base nisso, a espiritualidade mágica é o dispositivo que nos incita a agir. Entendemos que as coisas e pessoas têm valor para além de sua utilidade para os fins individuais e interesses pessoais. O outro tem valor e o mundo importa não porque posso me apropriar dele ou em função do lucro que ele tem a me oferecer. Agimos com o entendimento de que todo mundo quer viver e ser feliz. Ninguém quer ser deixado de fora. Ninguém precisa ser excomungado do grande mandala.

Trabalhar para um cuidado comum com o mundo se torna nossa maior riqueza. A quarta lição da feitiçaria nos mostra que nossa verdadeira fonte de poder não é a dominação do outro, mas a doação de si para um outro. O aprendizado de abraçar o mundo como ele é e não como gostaríamos que fosse se torna nossa prática cotidiana.

De acordo com a pedagogia fantástica, pensar magicamente a espiritualidade é reativar sua dimensão política de intervenção direta no mundo. Quando tudo em volta fica difícil, não nos acovardamos. Não se trata de fugir de tudo e culpar a todos. Nesse momento, a questão que importa é

[...] você está pronto para firmar um compromisso? É a hora certa de se comprometer a não causar dano, a beneficiar os outros, a abraçar o mundo bem como ele é? Você está disposto a firmar qualquer um – ou todos – desses compromissos por toda a vida, por um ano, um mês ou nem que seja por um dia? Se você está disponível para tal, comece onde você está [...] (CHODRON, 2014, p. 137).

Trabalhar com a espiritualidade enquanto meio de estabelecer compromissos é uma forma ousada de ganhar uma nova perspectiva justamente quando mais precisamos. A vida não precisa estar de acordo com o que queremos ou desejamos, ainda assim, podemos nos abrir para o que vier e trabalhar com o que chega. Entrar em um caminho espiritual é se abrir para as incertezas, vulnerabilidades, desenraizamento. Não é sobre poder, mas como poder não; não é sobre dominação, mas como estar com a destituição. Não é mais uma questão de ser, mas de ser-com tendo em vista que “os seres humanos não são algo separado do resto do mundo, dos animais, das plantas, da vida, da espiritualidade[...]” (STARHAWK, 2018, p. 55).

Agora, começamos a compreender que compartilhamos de uma casa comum e é, no mínimo, muita irresponsabilidade agir no sentido de continuar destruindo-a. A espiritualidade mágica, portanto, nos lembra que a política vai muito além do que fazemos nas eleições, é muito mais do que um voto dado e não diz respeito apenas ao que fazem os partidos instituídos. Bem como afirma que a espiritualidade não pode ser reduzida a uma dimensão religiosa, uma vez que atravessa todos os campos da vida.

O que interessa nesse tipo de espiritualidade não é que dogma você segue, nem a roupa que você veste; antes, importa saber o que estamos fazendo diante das desigualdades e injustiças sociais, como estamos respondendo, juntos, às situações de machismo, racismo e violências cotidianas contra as minorias, se os líderes que escolhemos são coerentes com o que acreditamos e com o que queremos, se, enfim, nos importamos mesmo com o mundo e as vidas, visíveis e invisíveis, que habitam nele.

A espiritualidade mágica, ao reivindicar sua dimensão política, defende que um outro futuro nos é sim possível, uma outra sociedade nos é sim pensável, um outro mundo é sim necessário. O que precisamos então? Soltar a obsessão pelo pequeno eu que, pelo desejo de controle e poder sobre, obriga que o mundo o adore.

Com a pedagogia fantástica, a espiritualidade realiza “nada menos que uma performance mágica de dissolução do poder pela imaginação” (VALENTIM, 2018, p. 21). O trabalho efetivo está em como podemos nos abrir para ouvir os cantos e gritos dos mundos, ao invés de ficar hipnotizados com nossa própria voz. A espiritualidade nos coloca em um domínio além do pequeno eu e a magia nos abre para forças exteriores ao humano.

Trata-se, com isso, de como podemos estabelecer uma política cósmica de modo a levar em consideração não apenas a felicidade e a existência dos viventes humanos e dos seres visíveis, mas de inserir o desejo e a perspectiva das vidas não-humanas e invisíveis. Só assim aquele compromisso de não causar danos, cuidar uns dos outros e abraçar o mundo como ele é

pode ganhar em consistência e amplitude. Tal exigência, própria da espiritualidade mágica, demanda, contudo, um trabalho de transformação de si em um outro que não seja um outro eu!

No limite, a perspectiva espiritual de educação no contexto da feitiçaria nos pede para fazer uma modificação em si que não passa pela “cabeça”. Não se trata de mudar de ideias ou aprender conceitos. A exigência é que se mude de corpo por meio da aliança com o quê ou com quem não está fixado ao eu. Só assim poderíamos sentir profundamente e ouvir sensivelmente o mundo que nos cerca.

5.5 A potência da transformação dos corpos pela via da imaginação, ou... da infinidade