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O poder transformador das palavras: quando falar é agir, quando dizer é criar.

2 A LINHAGEM DOS CONTRATEMPOS: A ESCOLA DOS MESTRES DO

5.2 O poder transformador das palavras: quando falar é agir, quando dizer é criar.

A segunda grande lição que aprendemos no dispositivo pedagógico da feitiçaria está fundado no fato de que as palavras não representam, elas agem. No contexto da magia, falar não é uma propriedade humana para transmitir conteúdo, mas para preencher o corpo de vida e fazer circular afetos. A palavra não é inerte, é possuidora de anima. Ao ser emitida, elas abrem portas e atraem seres.

[...] A natureza essencial das palavras, por isto, não é esgotada pelo seu significado atual, nem a sua importância está limitada no seu uso como transmissores de ideias e pensamentos, porém expressam ao mesmo tempo qualidades que não são traduzíveis em conceitos – tal como uma melodia, que podendo estar associada a um significado conceitual, não pode ser descrita por palavras ou qualquer outro meio de expressão (GOVINDA, 1990, p. 19).

É exatamente pelo citado acima que a potência transformadora da palavra está em sua propriedade não de transmissão de informação, mas de afecção anímica. Ou seja, no que ela,

ao ser emitida, pronunciada ou ressoada é capaz de nos fazer sentir e nos dar a pensar. O que pode, enfim, uma palavra? Fazer vibrar um corpo. São elas que nos colocam em estado vibrátil. Um tom de voz, até mesmo um ruído, associado a um certo ritmo, é capaz de envolver e arrastar todo nosso ser.

Nesse contexto, cada palavra, antes mesmo de representar objetos, são forças, afetos, feixes energéticos; ao serem emitidos afetam, ao serem emanados nos deixam afetados, fazendo vibrar corpos e atraindo existências. Não é casual que no contexto da pedagogia fantástica, elas se transformam em veículos de forças misteriosas, tornando o professor ou professora em um médium por meio do qual anuncia os vestígios da alteridade.

Precisamente, a segunda lição nos mostra que, se o mundo é de natureza mandálica, a palavra mágica tem uma potência mântrica.

[...] Na palavra mantra encontramos a raiz man = ‘pensar’ (do grego “menos” e do latim “mens”) combinada ao elemento tra, que forma palavra- instrumento. Assim, mantra é o ‘instrumento para pensar’, ‘aquilo que cria uma imagem mental’. Através do seu som, o mantra expressa seu conteúdo, num estado de realidade imediata. O mantra é poder, e não um simples dizer que a mente pode contradizer ou eludir. O que o mantra expressa pelo seu som, existe e se produz. Aqui, e se em qualquer lugar palavras são ações, atuam de imediato. Esta é a peculiaridade do verdadeiro poeta cuja palavra cria realidade, chama e revela alguma coisa do real. A sua palavra não fala – age (ZIMMER, 1930, p. 81 apud GOVINDA, 1990, p. 21).

Desta forma, as palavras são fluxos de forças com o potencial de criar e dar a ver imagens de uma outra realidade, abrindo-nos para novas perspectivas de mundos. Elas têm o poder de invocar, de imediato, aspectos invisíveis para a racionalidade. Em seu poder de atuação, falar é mais do que ‘só dizer’. Falar também é fazer-ver. Aquele que sabe usar o potencial mântrico da palavra aprende a agir por outros meios: faz coisas no mundo, vê coisas do mundo, vibra o corpo inteiro.

Nesse sentido, o potencial mágico das palavras não está exatamente naquilo que se diz, mas em como se diz e na intensidade de afeto que envolvemos o dito. O problema, afirma Govinda (1990, p. 21-22), é que “nos dias de hoje, a humanidade não é capaz de imaginar o quanto a magia da palavra e do verbo foi vivida nas civilizações antigas e que influência poderosa exerceu na vida em seu conjunto[...]”. Com isso, vivemos, nesse tempo de desencantamento, em um mundo no qual o poder transformador da palavra alcançou níveis muito baixos, chegando quase ao seu grau zero.

Recuperar a potencial mágico da palavra é nos lembrar que quando falamos agimos, quando dizemos criamos. Ou seja, as palavras atuam porque são forças e possuem vidas; por meio delas podemos afetar e sermos afetados, alterando, inclusive, nossa forma de sentir, pensar e ver.

A palavra, ela mesma, enfim, se comunica conosco, age em nós, nos diz coisas. Aqui, a linguagem altera seu estatuto. Não somos nós que falamos, ela fala por nós. Eu não falo, falam- me! Nesse estado, já não somos nós que tomamos as palavras, elas nos tomam e fazem coisas em nós: no dito do professor, na música que escutou, na repetição que anunciou, no tom de voz que ressoou.

Assim, pedagogia fantástica é o dispositivo de ensino onde se deve cuidar não só do que se diz, mas de como se diz, pois é o mundo onde as palavras têm poder de ação; ou seja, elas realizam o que se diz, elas invocam o que falam. Falamos e coisas acontecem em nosso corpo e no corpo do outro, fluxos de forças nos atravessam; vidas que nos adentram não só pelos ouvidos mas por todos os outros poros que houver.

“Mas não é precisamente isso que é feitiçaria, palavras que engravidam?” (ALVES, 2010, p. 13). Sim, os nomes são entidades vivas, nascem já carregadas de poder. Por isso dizemos que as palavras não são inscritas na folha, mas no próprio corpo, fazendo-o vibrar, aquecer e tremer.

[...] Linguistas, semióticos e filósofos da linguagem costumam ilustrar o efeito do discurso mágico recorrendo a um conto de fadas: a história de Ali Babá. O efeito mágico é do tipo Ali Babá: dita as palavras mágicas em forma de comando, “Abre-te, Sésamo!”, a pedra se move e a caverna se abre (PIERUCCI, 2001, p. 87).

A pedagogia fantástica é a defesa de que a emissão de palavras é a efetivação de desejos, a chave que faz circular afetos. De tal forma que aquele que fala não só se compromete com o dito – se responsabilizando, assim, com o que pronuncia – como faz coisas com o que se diz. Porque sabe que aquilo que anuncia tem ou pode ganhar vida própria. Anunciar, nesse tipo de dispositivo, é sempre da ordem do risco.

As palavras, em sua natureza mágica, fora, portanto, do campo da representação, “acham de ter sempre algo de extravagante em sua materialidade, um quê ininteligível. Não pretende significar – elas agem” (PIERUCCI, 2001, p. 88). “Om”, e o mundo se abre; “Ah”, e as coisas se criam; “Hum”, e tudo se dissolve no espaço. Nada a significar, tudo a fazer: “Phat!”, “Laroyê!”, “Om mani Padma Hum”, “Phem”, “Bam”, “Mandrake”, “A la la ho!”.

Agora são as palavras, em sua força mágica, que nos fisgam, nos pescam, nos envolvem e nos atraem. Primeiro, as envolvemos com afeto, as investimos de desejos, atravessamos intensidade. Depois? Elas ganham vida própria. Aprendemos a escolher as palavras certas em função do que queremos fazer com elas; mas principalmente do que queremos que elas façam conosco. Algumas tem o poder de nos adoecer, outras de nos curar; mas também de nos animar, nos afastar o mal, nos acariciar. Tem palavras que vem de mansinho, outra nos invadem sem pedir licença. Depois que nascem, elas agem: se movem e tomam a iniciativa.

Na pedagogia fantástica é assim: “as palavras que tornam visíveis os sonhos e que, quando ditas, transformam o vale de ossos secos numa multidão de crianças” (ALVES, 2010, p. 40). Falar a verdade? Não! Basta deixar que a palavra nos tome, e assim a verdade aparece. Porque o efeito da palavra mágica é arrebatador – pelo menos procura o ser. Era assim, por exemplo, que Sócrates pretendia livrar as dores da alma: unicamente com a magia das palavras (GRIMALDI, 2006). São discursos de encantamento, agem para arrebatar quem o escuta e não apenas para significar algo.

5.3. Da proteção contra poderes antagonísticos: ser mestre em contrafeitiço

Um dos principais pressupostos da magia está sustentado na ideia de que em nosso mundo existem jogos de forças portadores de adversidades e infortúnios; de que nosso corpo pode ser atravessado por diagramas de energias antagonísticas e malevolentes capazes de nos tirar a potência e subtrair nossa vitalidade. Enfim, há forças que agem para nos capturar, nos oprimir, nos adaptar, nos violentar e nos colonizar.

Essas forças, de natureza antagonística, tendem a contaminar as relações a partir do afeto do ódio, do medo, do ressentimento, da acusação e depreciação, criando, com isso, campos de divisão, de oposição, de cisão e intrigas entre eu e outro, nós e eles, natureza e cultura. São habilidosas, portanto, em frustrar tanto as forças de criação da vida quanto os melhores esforços para a construção do comum.

Nesse contexto, a invenção de uma pedagogia fantástica atua no sentido de nos ensinar táticas de proteção contra inimigos antagonísticos. Em função disso, a terceira lição nos ensina a ser mestres em contrafeitiços. Aqui, aprendemos a produzir despachos e remover obstáculos. Como todas as lições em feitiçaria, não estamos falando sobre conceitos neutros, mas em uma intervenção real no campo do social.

Essa terceira lição tem um caráter claro de proteção por dois motivos. Primeiro porque cria um campo crítico-afetivo para impedir que as forças antagonísticas nos capture e nos

colonize. Não por força de reação, mas nos dotando de uma capacidade discriminativa, fazendo- nos perceber o modo como essas forças funcionam e quando estamos sendo envolvidos por elas. Ou seja, aqui aprendemos a captar, sentir e perceber de onde podem vir os perigos e bloqueios, os impedimentos e obstáculos, os atrapalhos e infortúnios em relação a tudo que está ligado ao bem comum.

O segundo motivo para que essa lição se configure como tática de proteção está articulado ao seu caráter de luta e de embate contra as organizações maquínicas das forças antagonísticas e malevolentes que atuam com base na violência e no extermínio dos seres. O que está em jogo nesse momento é a efetivação de uma ação rebelde, mas não reativa, que busca denunciar e remover os obstáculos que trazem malefícios e alguma forma de sofrimento à vida individual e coletiva.

Essa lição tem um caráter crítico-destrutivo uma vez que é um investimento de forças mais intensas que agem para demolir os casulos ou bolhas do autoengano produzidas pelas estruturas autocráticas e autocentradas que nos capturam e nos colonizam pelo afeto do ódio, do ressentimento e do medo. O contrafeitiço, nessa via, opera pelo aumento da potência se contrapondo às instâncias do “poder sobre”.

Em um mundo onde as subjetividades são capturadas por forças que reduzem ao grau zero o potencial de ação de um corpo, é necessário que o professor e a professora se tornem verdadeiros catimbozeiros; ou seja, aquele tipo de gente que usa de catimbó para expulsar demônios e extrair feitiços. Não seria extravagante dizer que, com essa lição, estamos todos envolvidos em uma batalha contra os feitiços paralisantes que certos agentes (familiares, sociais, estatais, midiáticos, invisíveis...) lançaram e lançam sobre nós.

O mestre em contrafeitiços é habilidoso em produzir defesas contra tudo que ameaça as vidas e sua dinâmica; quer dizer, contra as forças do conservadorismo, do colonialismo, dos extermínios e da mortificação. É uma defesa contra os infortúnios do mundo cindido. A tática de proteção configura-se, então, como um dispositivo “que opere no despacho do carrego colonial (obra e herança colonial) e na desobsessão de toda sua má sorte [...]” (RUFINO, 2019, p. 10).

Sim, despacho e desobsessão! Porque “o carrego colonial opera como um sopro de má sorte que nutre o assombro e a vigência de um projeto de dominação que atinge os diferentes planos da existência do ser” (SIMAS; RUFINO, 2019, p. 21). Quando as forças antagônicas tomam posse do corpo das populações, enfeitiçando-o e adoecendo-o, a pedagogia fantástica nos incita a tecer tramas de resistência: denunciando as injustiças, combatendo a violência, demolindo as opressões e transgredindo o casulo do instituído.

Na perspectiva tibetana, essa força antagonística e malevolente é personificada no que denominam de Rudra, ou “aquele que precisa ser domado”. É um tipo de ser maligno que nasce de um rompimento radical com o compromisso espiritual; ou seja, é a personificação que surge como resultado de um autocentramento exagerado que quebra nossa responsabilidade e nos separa do bem comum. Este ser geralmente vem acompanhado por um séquito de outros seres malignos e, em grupo, sua principal atividade é causar obstáculos e trazer malefícios aos seres e aos mundos por meio do envenenamento das relações e desvitalização dos corpos.

Os Rudras, ou qualquer outro tipo de inimigos antagonísticos, são considerados propagadores de divisão e maldade pela circulação do ódio, ressentimento e medo devido à sua habilidade em impedir que alguém ou uma comunidade efetue seus compromissos, atualize sua liberdade e faça o que pode. Enquanto forças antagônicas, eles impedem que o fluxo de energia e afeto circule livremente, impossibilitando criatividade, mudança e transformação pessoal e coletiva.

As táticas de proteção visam, assim, anular os efeitos das ações e agenciamentos provenientes dessas forças, contribuindo para que nossos corpos não sejam capturados por essas correntes que obstaculizam o livre circuito dos afetos e cristalizam a potência dos desejos. Proteger-se é, portanto, a forma de se imunizar contra aquilo que nos mata e nos enfraquece.

A necessidade para a difusão de um dispositivo de proteção no campo da educação situa- se no fato de que estamos todos e todas vulneráveis aos ataques e às violências das forças de dominação e dos processos de alienação. Há uma pressuposição básica na pedagogia fantástica: “há muitos agentes, visíveis e invisíveis, contra os quais é preciso proteger-se[...]” (SZTUTMAN, 2018, p. 347-348).

Por todos os lados, em todas as direções, forças agem para nos enfeitiçar, alienando-nos e nos entorpecendo, diminuindo-nos e rebaixando-nos. As grandes mídias nos enfeitiçam, o capitalismo e seus agentes nefastos emanam feitiçaria através das tecnologias e mercadorias. Há feitiços que nos roubam a alma e sequestram a vida. Por isso, não basta fazer magia, é preciso ser mestre em contrafeitiços. Desenfeitiçar é preciso!

Nesse sentido,

[...] Não se trata de metáfora, vale insistir, quando Pignarre e Stengers falam em luta (anticapitalista) como contrafeitiçaria ou desenfeitiçamento. Esses seriam dispositivos propriamente pragmáticos. O capitalismo nos enfraquece, pois mata os possíveis e mesmo a política, nos desobriga a pensar, nos entorpece e nos chantageia com suas alternativas infernais (SZTUTMAN, 2018, p. 348).

Com a terceira lição, aprendemos que em educação é preciso sim táticas de combate, estratégias de luta, dispositivos de exorcismo contra esses agentes antagonísticos que são habilidosos em nos entorpecer, nos individualizar e nos distanciar do comum. O professor ou a professora como mestre em contrafeitiços atua para proteger e incrementar aquilo que as forças antagonísticas tentam suprimir e colonizar.

Em um nível mais sutil, os dispositivos mágicos de proteção no campo da educação buscam desativar as forças de opressão e o pensamento da colonização no intuito de restaurar comunidades que foram devastadas e corpos que foram contaminados. Produzir contrafeitiços seria, com isso,

[...] Um modo de minar o sistema capitalista feiticeiro ‘por dentro’. Seria recobrar o que ele tomou para para se tornar o que é. É assim, em suma, que em La sorcellerie capitaliste Pignarre e Stengers conectam essa ‘proposta feiticeira’ com uma série de ativismos que buscariam, eles também, desenfeitiçar, criar novos possíveis por meio de novas formas de ação. Contra o sistema ‘feiticeiro sem feiticeiros’ a proliferação incessante de contrafeitiços, que não deixam de ser eles também feitiços. Contra uma feitiçaria transcendente, que não tem corpo nem rosto – inominável portanto (como o Estado, diria Clastres) -, uma proliferação de feiticeiros nomeados, artífices da imanência (SZTUTMAN, 2018, p. 350).

Como podemos perceber, a tarefa principal para os mestres do contrafeitiço é afastar tudo que traga obstáculos ao aprendizado efetivo e reunir as condições favoráveis para os processos formativos. Esses mestres e mestras têm como função proteger a comunidade e os aprendizes contra os impedimentos, ou seja, contra o que impossibilita que eles realizem sua potência de vida.

Há quem diga, na cultura tibetana, que há três tipos de obstáculos a ser removidos no processo de contrafeitiço. O primeiro obstáculo, a nível externo, são as influências maléficas que vêm do exterior para nos oprimir, nos ameaçar, nos colonizar e nos rebaixar. O segundo tipo de obstáculo, possuindo um caráter mais interno uma vez que nos atinge desde ‘dentro’, são as forças que nos adoecem, nos atormentam e tiram nossa vitalidade, deprimindo-nos e entristecendo-nos. O terceiro obstáculo, considerado por alguns o mais perigoso, é dito que tem uma natureza secreta porque nasce em nosso próprio pensamento, como nosso egoísmo, nossa raiva, nossa inveja, nosso orgulho. Desde uma perspectiva mágica, assim, o que precisamos mesmo é de proteção.

É importante insistir, contudo, que o inimigo aqui não é o outro, qualquer que seja o outro, mas um padrão de energia que envenena a vida e destrói as relações. Os inimigos, não

por acaso, são aquelas forças antagonísticas: que nos dividem, nos afastam, segregam, excluem, separam e devastam. Tudo, enfim, que dissemina e se alimenta do ódio, do medo, do ressentimento e da agressão. É esse padrão de energia e esse jogo de forças que as práticas de proteção visam combater.

Está aqui a maneira através da qual a pedagogia fantástica se protege: resistindo em ser capturado pelas forças antagonísticas, contrariando as máquinas disseminadoras de afetos malevolentes, frustrando os planos binários do pensamento. A lição três se configura como uma verdadeira área de combate: não espera, ela age.

5.4 Da natureza mágica da espiritualidade: a arte de estabelecer uma política por outros