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O mundo como mandala, ou da natureza relacional de uma teia mágica

2 A LINHAGEM DOS CONTRATEMPOS: A ESCOLA DOS MESTRES DO

5.1 O mundo como mandala, ou da natureza relacional de uma teia mágica

A primeira grande lição que a feitiçaria nos ensina está assentada na tese de que o mundo não é um lugar-objeto distante de nós. Antes, é um corpo vivo e dinâmico formado por um conjunto de fios vibráteis que se articulam e se entrelaçam. A essa rede de ações que se enredam chamamos, na perspectiva fantástica, de mundo.

Na contramão do paradigma eurocêntrico, aprendemos já na primeira lição que o que denominamos de mundo é uma grande obra de arte viva e luminosa proveniente das relações entre seres, com perspectivas particulares: corujas, crianças, azul, mesa, mãe, metal, árvores, rio, revólver, espíritos, cinema, água, medo, chuveiro. Sim, Chuveiro. Cinema, amor, relva, novela, professor, batuque, menino, tambor. Abraço e terror. “Atrações estranhas, tensão erótica, montagens inusitadas, hibridações: nessa luxuriante sexualidade não humana, mundos imprevisíveis se instauram, povoados de seres sui generis” (ROLNIK, 1998, p. 1).

O fato é que: antes de ser um lugar, mundo é uma experiência que se faz a partir dos jogos relacionais que se estabelecem. Corpos que se cruzam, afetos que nos atravessam. Cores, texturas, forças que formam uma rede que muda de forma a cada permuta que acontece. Por isso, se diz que é uma experiência: porque não é algo fixo, sólido, petrificado, mas fluido, móvel e variável.

Ao contrariar a ideia de que antes dos existentes haveria mundo, como lugar, para recebê-las, o que se defende aqui é que antes mesmo de haver mundo o que existe são os seres; e é na relação entre estes que o mundo se estabelece e se instaura. Na tradição de Shambala falamos que o mundo enquanto natureza relacional, efeito de um modo próprio de fazer experiência, denomina-se de mandala.

[...] A palavra mandala significa literalmente “grupo”, “sociedade”, “organização”, tudo que esta em relação recíproca. Isso lembra a ideia da acumulação de um grande número de detalhes individuais formando um todo quando são reunidos juntos. As Escrituras usam a analogia do rabo de um iaque. Esta é constituida de um grande número de pelo individuais, mas o que vemos é o abondante tufo de cabelos. Não podemos pegar cada cabelo isoladamente” (TRUNGPA RINPOCHE, 2010, p. 145).

Em tibetano, o termo para mandala é kyilkhor. Kyil significa literalmente “centro” e khor quer dizer, “periferia”. Diz de uma experiência de mundo que é criada a partir de um ponto de referência. Ou, ainda, uma fronteira estabelecida a partir de um ângulo bem preciso. Nesse quesito, mundo, enquanto mandala, é uma forma de abordar as coisas sob a experiência da

interdependência: isso existe em função daquilo, aquilo existe em função disso. Trata-se de entrar em relação com. E para cada encadeamento tem-se uma experiência de mundo próprio a depender do que se tem como referência.

Por isso,

[...] Onde quer que exista um relacionamento, onde existe um vínculo com um ponto de referência qualquer, é possivel encontrar o princípio do mandala. Eu não estou falando de pontos de referência ao nível conceitual, mas ao nível das coisas tais como são. Por exemplo, a luz e a sombra não são particularmente influenciadas pelos conceitos, mas elas são naturais e organicas. Onde quer que exista esse tipo de ponto de referência, nos descobrimos o princípio do mandala (TRUNGPA RINPOCHE, 2010, p. 145).

Na realidade, a partir do momento em que se começa a descobrir a multiplicidade de existentes, a imaginar vagamente a percepção de um ponto de referência, ou mesmo a se relacionar com certo ponto de referência, é precisamente aí que nasce um mundo. Há, portanto, tantos mandalas quantos pontos de referências existir. A infinidade de mundos está diretamente relacionada com a infinidade de associações que podem ser feitas a partir de seus pontos de referências.

Com a ideia de mandala, o mundo que se vive é fruto de uma experiência que tem como base um ponto de referência; quer dizer, uma relação. O ponto principal é entender que, de acordo com esse princípio base, todo o conteúdo do cotidiano, incluindo os seres animados e os objetos inanimados, a forma e o que não tem forma, a emoção e a não-emoção, visíveis e invisíveis, humanos e não humanos, pode dar origem a uma experiência de mundo própria desde que exista um vínculo com um ponto de referência qualquer.

É uma proposta pedagógica que

[...] supõe a indissociabilidade radical, ou pressuposição recíproca, entre ‘mundo’ e ‘visão’. Não existem ‘visões de mundo’ (muitas visões de um só mundo), mas mundos de visão, mundos compostos de uma multiplicidade de visões eles próprios, onde cada ser, cada elemento do mundo é uma visão no mundo, do mundo – é mundo (VIVEIROS DE CASTRO, 2016, p. 3).

É importante ressaltar que, nessa perspectiva, não existe um mundo, anterior, com diferentes pontos de referência que o habitam; a lição a ser tomada aqui é simples: para cada ponto de referência um mundo correspondente emerge e entra em cena. Dizendo de outro modo, o mundo que vemos e experienciemos não é fixo, ele muda de acordo com os referentes que tomamos como base da experiência. Ou seja, não é algo separado de nós, pois co-emerge dentro da rede relacional que estabelecemos com algo ou alguém.

Nessa abordagem, somos ensinados a pensar um outro sentido de mundo: não unitário, não universal, não dado, não objetificado, não naturalizado. Um mundo que é, via de regra, um conjunto, um emaranhado, uma teia criada pela relação de forças, afetos, desejos, pensamentos, emoções. Em suma, um grande caos ordenado (TRUNGPA RINPOCHE, 2010).

Nessa compreensão mandálica, uma coisa é certa: “nada é neutro no entorno, que nem é bem entorno, pois as obras, uma vez criadas, redevem multiplicidade de elementos entre elementos, passíveis de novos arranjos” (ROLNIK, 1998, p. 1). Fluxos constantes, contração e descontração, apegos e aversões, variadas linhas de energias que se cruzam, olhos que se atravessam e novos mundos se fazem.

As relações que formamos, o ponto de referência que tomamos, os vínculos que estabelecemos afetam diretamente o modo através do qual vamos fazer a experiência de mundo. O interessante na perspectiva mandálica é que não precisamos nos adaptar ao mundo: podemos mudá-lo. Temos a capacidade de alterar mundos, instaurar outros, inventar nossas possibilidades de configurá-lo.

Agora, a vida se desdobra em fluxos e refluxos, contínuas e ininterruptas transformações. As coisas podem mudar de forma. O princípio não é mais o da conservação, mas o da mudança. O conservadorismo dá lugar para a performatividade. Tudo tem lugar, todos têm espaço.