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Milarepa, Xamã do Tibete: de feiticeiro assassino a feiticeiro Iluminado

2 A LINHAGEM DOS CONTRATEMPOS: A ESCOLA DOS MESTRES DO

2.4 Milarepa, Xamã do Tibete: de feiticeiro assassino a feiticeiro Iluminado

13 Fazendo uso dos conceitos de Lena Tosta (2011, p. 90), Marpa seria um exemplo perfeito do que a autora chama

de asceta empoderado, "uma pessoa 'neste mundo', mas 'não como qualquer um'". Para nós, Marpa seria um asceta empoderado tal como o Shiva ou Dattatreya de Lena Tosta: "Se tentarmos lançar um olhar meta-realista (BHASKAR, 2002) e nãodualista sobre Dattātreya é possível interpretar seu “ser histórico” como um “ser em māyā” (plano fenomênico) e não “de māyā”, isto é, não-contingente ao plano onto-epistemológico inferior de māyā. Sob esta perspectiva, a performance do renunciante heterodoxo no mundo é vista como constituída de atos pedagógicos deliberados. O mundo é palco de sua “aparessência” (MALUF, 2000), uma essência não-dual que ‘aparece’ na fenomenalidade, manifestando intencionalmente contradições e paradoxos. A performance no mundo do virtuose heterodoxo compreende a transgressão e reconstrução criativa intencional de normatividades. Quando faz de sua trajetória uma meta-narrativa relativizadora do mundo fenomênico, no mundo fenomênico, ele é protagonista, entre outras, de uma dissidência política" (TOSTA, 2011, p. 92).

Figura V: Miralepa

Fonte: https://www.shambhalahealingtools.com/product-p/prints-milarepa-.htm

Milarepa (1040-1123) é uma das mais importantes figuras do budismo tibetano. De acordo com sua biografia, Jetsun Mila, como também é conhecido, nasceu numa rica família de camponeses. Ele realmente era um simples camponês, "[...] muito menos instruído e sofisticado do que Marpa quando conheceu Naropa" (TRUNGPA RINPOCHE, 2006, p. 55). Ainda na infância, seu pai morreu e diz-se que seu tio roubou tudo da sua família. Mila, a irmã e sua mãe ficaram sem absolutamente nada. Bastante enfurecido e com vontade de se vingar do tio, Milarepa teve o desejo de aprender feitiçaria para destruir a família de seu tio do mesmo modo que a dele foi destruída. Tendo aprendido a arte da feitiçaria com renomados feiticeiros de sua região, Milarepa lançou um feitiço sobre a casa de seu tio que terminou com a morte de muitas pessoas. Durante esse tempo, movido pela raiva que sentia do tio e dos seus vizinhos, Milarepa se envolveu com uma série de práticas mágicas destrutivas e terminou cometendo uma série de crimes, inclusive muitos homicídios.

Em determinado momento, contudo, Milarepa começou a refletir sobre suas ações e percebeu quanto carma negativo tinha plantado. Procurou, então, um Mestre que pudesse ajudá- lo a purificar todo o carma negativo acumulado pelo seu desejo de vingança. Até que encontrou um professor dos ensinamentos da Grande Perfeição (conhecido como Dzogchen) que o aconselhou a procurar Marpa.

Da mesma forma que aconteceu com Naropa ao escutar o nome de Tilopa, Milarepa, ao escutar o nome de Marpa, sentiu seu coração pular do peito. Uma confiança inabalável surgiu no seu corpo ao ponto dele ter o seguinte pensamento: "Devo encontrar este mestre e me tornar seu discípulo, mesmo ao custo de minha vida".

No mesmo instante em que Milarepa teve esse pensamento, Marpa e sua esposa, Damema, tiveram sonhos auspiciosos que indicavam a chegada de Milarepa. Eles sabiam que Jetsun Mila não demoraria para chegar. Diz-se que depois desse sonho, Marpa desceu o Vale para esperar a chegada daquele que seria o seu herdeiro espiritual.

Ao chegar, Milarepa primeiro encontrou o filho de Marpa, Darma Dode, que estava a cuidar do rebanho. Logo depois, avistou Marpa, que estava cuidando do campo. Ele não sabia que aquele homem arando o campo era o seu futuro Mestre. O fato é que "Milarepa tinha a expectativa de que Marpa fosse um grande erudito e um santo, vestido à maneira iogue, cheio de rosários, recitando mantras, meditando. Em vez disso, encontrou-o trabalhando na fazenda, gerindo os trabalhadores e arando sua terra" (TRUNGPA RINPOCHE, 2006, p. 57). Esse era Marpa: "um respeitável cidadão comum e, ao mesmo tempo, uma pessoa realmente iluminada" (TRUNGPA RINPOCHE, 2006, p. 66). Apesar de não saber se aquele homem comum arando o campo era o seu mestre, diz-se que Milarepa sentiu uma grande alegria e, por um instante, todos os seus pensamentos comuns foram suspensos, enquanto ele abria um largo sorriso.

Darma Dode, ao ver a alegria de Milarepa, levou-o até seu pai. Chegando lá, Milarepa se prostrou aos pés de Marpa e pediu que ele lhe ensinasse os ensinamentos do Buda. Marpa respondeu para Milarepa que, dali em diante, tudo dependeria unicamente da motivação dele e da sua própria perseverança. Milarepa, que já tinha perdido tudo, disse que estava disposto a pagar qualquer preço para que o aceitasse como discípulo.

Desde então, Marpa determinou uma série de tarefas e desafios para purificar o carma negativo que Milarepa havia acumulado através da prática de feitiçaria destrutiva. E Marpa o obrigou a purificar esse carma negativo em uma dimensão literalmente física. Ele colocou o corpo de Milarepa à prova:

[...] Marpa fez Milarepa construir uma série de torres, uma após a outra, e após a completa edificação de cada uma delas, ela ordenava a Milarepa que a derrubasse e colocasse todas as pedras de volta no lugar onde vieram, para não estragar a paisagem. Cada vez que Marpa mandava Milarepa desmanchar uma torre, apresentava alguma desculpa absurda, como alegar que estava bêbado quando ordenara a construção ou afirmar que absolutamente nunca as encomendara. E Milarepa, cada vez mais ansioso pelos ensinamentos, colocava a casa abaixo e recomeçava.

Por fim, Marpa planejou uma torre de nove andares. Milarepa passou por um tremendo sofrimento físico para carregar as pedras e construir a casa, e quando

terminou, dirigiu-se a Marpa, e mais uma vez rogou-lhe que o ensinasse. Porém, Marpa respondeu-lhe, "Você quer que eu lhe ensine, assim, sem mais nem menos, só porque construiu esta torre para mim? Pois receio que ainda tenha que me dar um presente como taxa de iniciação".

A essa altura, Milarepa não possuía coisa alguma, pois gastou todo o seu tempo e trabalho construindo torres. Mas Damema, esposa de Marpa, teve pena dele e lhe disse: "Estas torres que você construiu são um gesto maravilhoso de devoção e fé. Meu marido certamente não se incomodará se eu lhe der alguns sacos de cevada e um rolo de tecido para a sua taxa de iniciação”. Então, Milarepa levou a cevada e o tecido para o círculo de iniciação em que Marpa estava ensinando e os ofereceu como gratificação, junto com os presentes dos outros estudantes. Marpa, porém, ao reconhecer o presente, enfureceu-se e gritou para Milarepa, "Essas coisas são minhas, seu hipócrita! Você está tentando me enganar!" E o chutou literalmente, a pontapés, do círculo de iniciação.

Nesse ponto, Milarepa perdeu toda e qualquer esperança de conseguir que Marpa lhe ensinasse. Desesperado, decidiu suicidar-se e já estava prestes a acabar com sua vida quando Marpa o procurou e declarou que ele, finalmente, estava pronto para receber os ensinamentos e iniciações (TRUNGPA RINPOCHE, 2006, p. 55-56).

A partir desse momento, Milarepa entrou em retiro espiritual sob a tutela de Marpa e começou a meditar em uma caverna por vários anos, onde teve experiências visionárias e muitos sinais de realização. Um desses sinais de realização era sua capacidade de transformar em poema todos os insights decorrentes das suas experiências visionárias que obtinha durante a prática de meditação. Todos esses poemas ficaram conhecidos como As cem Mil canções de Milarepa, cantadas de improviso para seus discípulos, seguidores, dakinis, yoginis e demônios que o visitaram durante sua reclusão.

Milarepa, como seus predecessores, teve alguns discípulos que se tornaram famosos, como Rechungpa Dorje Dragpa e Gampopa. Este último, além de ficar famoso por ser reconhecido como o Mestre da Linhagem dos Karmapas - professor do Primeiro Gyalwang Karmapa, Dusun Khyenpa -, tornou-se conhecido também por ser a pessoa para quem Milarepa disse suas últimas palavras.

A história conta que a primeira vez que Gampopa, que era médico e também monge, encontrou Milarepa, seu professor ofereceu-lhe uma kapala (copa de crânio) cheia de cerveja. Receoso por ter recebido os votos de monge, inicialmente, Gampopa recusou a bebida. Milarepa, contudo, de forma risonha, insistiu dizendo que a maior lição espiritual é o aluno obedecer às instruções do seu Mestre. Tendo dito isso, Gampopa praticamente secou o recipiente. E já no final de seu treinamento espiritual, Gampopa pediu as últimas instruções para Milarepa, que disse: "o que é necessário é colocar mais energia na prática, e não mais ensinamentos".

Gampopa, então, tendo recebido as bênçãos do mestre, seguiu viagem para transmitir os ensinamentos que tinha recebido. Milarepa sabia que nunca mais veria Gampopa. E antes mesmo que pudesse perdê-lo de vista, deu um grito, dizendo: - "Tenho uma última instrução. Uma instrução muito secreta", disse Milarepa, "preciosa demais para dar a qualquer pessoa”.

Gampopa, então, deu meia volta e olhou para o seu Mestre. E, sem que ele esperasse, Milarepa virou de costas, abaixou as vestes e mostrou sua bunda cheia de calos e dura como um casco de cavalo - endurecida pelos longos períodos de meditação sentado na pedra dura.

"Filho do coração, este é meu ensinamento final", disse Milarepa. "Pratique".

"Se os próprios sábios que se encontram nos nossos altares enfrentaram dificuldades e não desistiram, nunca temeram serem quem eram e que encontraram a qualidade autêntica das suas verdadeiras naturezas, nós também podemos" (TAVARES, 2013, p. 139). E não somente os mestres do passado do budismo tibetano foram capazes de transformar a resistência do ar em possibilidade de voo. Não somente as figuras míticas do passado do budismo tibetano foram capazes de transformar o fogo em alquimia, o obstáculo em trampolim. Mesmo nos dias de hoje nós podemos encontrar professores que fazem das dificuldades que encontram no mundo, professores que fazem da insegurança e do risco de morrer seu alimento e matéria de trans- formação humana:

[...] A visão de Kyabje Dilgo Khyentse Rinpoche ainda escrevendo, ensinando, editando e dando instruções para alunos à luz de velas, muito depois da meia-noite, com já mais de oitenta anos de idade, permanece gravada em minha memória. Ou a visão de Kyabje Dudjom Rinpoche, que mesmo com asma muito forte, ainda conferia iniciações e ensinamentos, e sempre estava atrás da versão correta dos textos, compilando e corrigindo manuscritos. Ou a visão de Kyabje Chatral Rinpoche que nunca se entregava às expectativas sociais ou ao politicamente correto, e que persistentemente encorajava e guiava alunos ao longo de muitos anos de retiro em montanhas e florestas. Todas estas imagens e muitas outras são tão claras em minha mente hoje quanto no momento que as testemunhei14.

E como podemos esquecer S. E. Chagdud Tulku Rinpoche, que no final da Vida, mesmo muito fraco fisicamente, visitou a comunidade do Coque, uma periferia da Região Metropolitana de Recife, e abençoou pessoa por pessoa, que, naquele dia, lotavam uma sala do Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis. Lembro-me como se fosse hoje. O dia todo foi de muita chuva. Mas, assim que ele colocou os pés no Coque a chuva parou. Quando

14 Trecho de um texto de Dzongsar Khyentse Rinpoche publicado em sua página de facebook em 13 de Julho de

2018, comentando a entrevista que Pema chodron, uma das principais alunas do Trungpa Rinpoche, concedeu a Tricycle. Texto traduzido por Pema Dorje em 2018.

ele terminou sua visita, de forma inexplicável, a chuva continuou. Ele era um mestre reconhecido por seus poderes mágicos.

E como podemos esquecer Chögyam Trungpa Rinpoche.

[...] Como podemos esquecer Chögyam Trungpa Rinpoche se aventurando a lugares totalmente desconhecidos a ele, e se rebaixando ao mais ordinário nível de ser humano para sozinho criar nuanças, termos, língua, atmosfera e disciplina e estágios de prática para alunos novos ao darma? Para tomar apenas um exemplo entre milhares, cunhar o termo “bondade básica” dos seres humanos tocou de forma brilhante os corações e mentes das pessoas nos dias de hoje, sem em nada desviar dos ensinamentos budistas mais tradicionais15.

Nada do que ele fez "foi feito com finalidade comercial ou de entretenimento [...] mas sim, tudo que ele fez foi sempre feito com o fim de guiar os alunos a um caminho autêntico de liberação"16. Não por acaso, esse herdeiro espiritual da Linhagem de Tilopa, Naropa, Marpa,

Milarepa e Gampopa foi escolhido como sujeito dessa pesquisa. Há muito o que aprender com o budismo encantado de Chögyam Trungpa Rinpoche.