• Nenhum resultado encontrado

2 A LINHAGEM DOS CONTRATEMPOS: A ESCOLA DOS MESTRES DO

2.2 Naropa, o aprendiz insistente, um mestre incansável

Naropa (1016-1100) era reconhecido por ser um intelectual brilhante, dotado de uma inteligência conceitual muito fina. Não por acaso, tornou-se amplamente reconhecido como mestre nos ensinamentos conhecidos como sutras, tantras e vinaya. Em função disso, rapidamente tornou-se abade de Nalanda, maior e mais referenciada Instituição Educacional budista de sua época. Diz-se que o conhecimento filosófico de Naropa era tão grande que ninguém de seu tempo era capaz de vencê-lo num debate acadêmico-filosófico. Absolutamente ninguém parecia capaz de excedê-lo em conhecimento sobre a Filosofia Budista.

Figura III: Naropa

Fonte: https://www.flickr.com/photos/pompagreat/3636479545

Apesar do seu prestígio e toda sua fama intelectual, Naropa ainda não tinha entendido o sentido do conhecimento. Até que, certo dia, uma velha senhora, medonhamente feia - reflexo da própria mente orgulhosa e arrogante de Naropa - mostrou que seu conhecimento e erudição não estavam sendo usados como meio hábil no processo de trans-formação humana. Foi exatamente esta velha feiticeira que o orientou a ir ao encontro do seu irmão, Tilopa, de modo que ele pudesse ajudá-lo a superar sua obsessão pela erudição e fazer do conhecimento um caminho para a transformação.

Quando a Velha Senhora pronunciou o nome de Tilopa, Naropa sentiu seu coração vibrar e pular em sua garganta. Ele não teve dúvidas. Decidiu que Tilopa era o seu mestre e não repousaria enquanto não encontrasse o seu Guru. Não hesitou em abandonar o monastério de Nalanda, onde era Abade, para ir à procura de seu professor. Antes de sair do Monastério, porém, recebeu indicações da velha senhora de que deveria meditar numa deidade chamada Chakrasamvara9. Tendo meditado durante seis meses na referida Deidade, Naropa recebeu a

visita de muitas dakinis que lhe indicaram onde ele poderia encontrar Tilopa.

Na manhã seguinte, depois de ter passado por grandes dificuldades, Naropa conseguiu chegar na direção indicada pelas dakinis: Visnunagar. E mesmo lá, não foi fácil encontrar o sábio e louco Tilopa. Perguntou a quase todas as pessoas daquela região onde poderia encontrá-

9 Chakrasamvara é uma das muitas divindades do budismo tibetano. Também conhecido como “divindade

meditacional”, por ser um dos principais focos de visualização durante uma meditação, ele é uma manifestação dos Budas e sua aparência revela uma qualidade búdica específica.

lo. Ninguém sabia responder. Mas Naropa não desistiu. E insistiu: "Será que ninguém nessa região conhece Tilopa?". Vendo a insistência de Naropa, alguém respondeu: "Conheço alguém chamado Tilopa que mora perto daquelas ruínas de onde está vindo aquela fumaça. Mas não sei se é quem você procura, pois ele vive como um mendigo". Naropa, então, pensou: "As ações desses grandes mestres muitas vezes são incompreensíveis. Deve ser ele".

Naropa, então, foi na direção de onde vinha a fumaça. Chegando lá, encontrou Tilopa em frente de um balde cheio de peixes, alguns vivos e outros mortos. De forma metódica, Tilopa tirava um peixe de cada vez do balde, assava no fogo e colocava o peixe na boca estalando os dedos logo em seguida, como se o estalar de dedos estivesse associado com o ato de comer. Como é relatado nas histórias pela Escola da Transmissão Oral, a Karma Kagyü, Tilopa não estava comendo aqueles peixes de forma casual, de maneira distraída ou porque estava com fome. Como ele era um siddha10 realizado, ou seja, alguém com poderes mágicos, ao comer os

peixes, Tilopa estava criando uma ligação cármica com a consciência daqueles seres, de tal modo que através do estalar de dedos, pela perfeição que adquiriu na prática de Powa11, ele era

capaz de transferir a consciência daqueles seres para uma Terra Pura. Ao se deparar com aquela cena, Naropa fez uma prostração diante de Tilopa e pediu que o aceitasse como seu aluno, dirigindo-se a ele como Guru.

Tilopa que não era nada convencional e não estava atrás de fama nem de reconhecimento, olhou irritado para Naropa e gritou:

[...] "Pode ir parando com essas besteiras. Não sou teu guru. Tu não és meu discípulo. Eu nunca te vi antes e espero nunca mais te ver de novo!" E ele golpeou forte Naropa com sua robusta bengala e mandou-o sair do caminho. Mas Naropa nem ficou surpreso nem desencorajado. Agora que tinha encontrado o mestre que havia procurado por tantos anos, sua fé certamente não seria sacudida com alguns xingões (DOWMAN, 1998, p. 89).

Naropa simplesmente não desistiu. E, uma vez mais, insistiu. Até que Tilopa, vendo sua determinação, decidiu colocá-lo à prova e, assim, sujeitou-o a uma série de desafios. E durante longos doze anos Naropa passou por inúmeras provas, acompanhando Tilopa por todos os lugares e servindo-o de inúmeras formas, até esmolar comida nos vilarejos por onde passavam.

10 Siddha é o indivíduo que, por meio de muitas práticas meditativas e disciplinas da yoga, alcançou muitas

realizações, habilidades e poderes psíquicos e espirituais. Por essas realizações e algumas de suas habilidades, eram conhecidos como feiticeiros, bruxos, magos.

11 A prática de Powa, conhecida como transferência de consciência, é um método do budismo tibetano através do

qual grandes mestres e meditadores conseguem conduzir a consciência do ser que está morrendo para um ambiente mais propício na hora da morte como forma de contribuir para um renascimento afortunado.

Em nenhum momento, Naropa, que já era bastante orgulhoso, foi elogiado. Simplesmente nenhuma palavra de simpatia. Em nenhum momento Tilopa se colocou como professor de Naropa ou o reconheceu como discípulo. E mesmo assim, Naropa não desistiu e não foi abalado no seu desejo e na sua motivação.

Até que certo dia,

[...] Ao fim do décimo segundo ano eles estavam em uma vila que celebrava o casamento da filha de um homem muito rico. O generoso anfitrião havia providenciado para os convidados oitenta e quatro tipos diferentes de curry. Um dos pratos era uma iguaria tão rara e tão requintada que apenas uma pequena prova o faria acreditar ter jantado com os deuses. Naropa recebeu grandes oferendas de todos os curries, inclusive da grande iguaria. Quando retornou a Tilopa e apresentou o banquete, uma coisa fantástica aconteceu. Pela primeira vez em todos os anos que Naropa o havia conhecido, Tilopa sorriu. Então ele se serviu de cada pedacinho do prato especial. Lambendo os dedos, ele deu seu pote vazio para Naropa, dizendo, "Onde encontrastes isto, filho? Por favor, volta lá e me consegue mais um pouco”.

"'Filho!' ele me chamou de 'filho!'" pensou Naropa, feliz como um bodisatva no primeiro nível do caminho. "Por doze anos eu sentei aos pés de meu guru sem ele nem mesmo ter perguntado meu nome. E agora ele me chamou de 'filho!'" Flutuando em êxtase, ele retornou ao banquete do casamento para pedir mais do curry especial para seu mestre. Mas tal era o apetite de Tilopa que ele re-enviou seu discípulo várias vezes. A cada vez, para alívio de Naropa, ele conseguia mais um pouco do elegante prato. Mas quando Tilopa o enviou pela quinta vez, Naropa ficou envergonhado, e ele passou por uma grande luta interna. Finalmente, incapaz de encarar o desagrado de seu guru, ele resolveu roubar o pote inteiro. Esperando pelo momento certo, ele esgueirou-se pelas extremidades da multidão, sorrateiramente aproximando- se do pote de curry. E logo que os servos e convidados estavam ocupados com algum ponto da cerimônia, ele abandonou seu autorrespeito, roubou o pote, escondeu-o sob suas vestes, e escapou (DOWMAN, 1998, p. 93).

Chamando Naropa de meu diligente Filho, Tilopa mostrou que os grandes problemas de Naropa decorriam do forte apego aos conceitos, sobretudo ao conceito que edificou sobre ele mesmo e que deu origem à sua autoimagem. Por esse motivo, em uma de suas últimas tarefas, Tilopa fez um último pedido, e disse: "Naropa vá pegar um pouco de água enquanto faço essa fogueira". Quando Naropa retornou, Tilopa tirou a sandália, pulou da fogueira e golpeou a testa de Naropa, que caiu inconsciente. Ao recuperar a consciência, Naropa se deu conta que todas as qualidades do seu Mestre surgiram em sua mente. E mestre e discípulo tornaram-se apenas um, sem separação.

De acordo com Trungpa Rinpoche (2006), esta transmissão de Tilopa para Naropa é um exemplo perfeito da qualidade positiva do Iogue louco. Tilopa simplesmente usou a energia da curiosidade e da busca incessante de Naropa transmutando-a em sabedoria.

[...] Naropa possuía enorme energia e inteligência, mas sua energia não estava relacionada com a compreensão de Tilopa, com a abertura de sua mente, que possuía outra espécie de energia. A fim de romper essa barreira, era necessário um tranco súbito, um choque genuíno. É como um edifício torto que está prestes a cair, mas que, súbita e acidentalmente, é endireitado por um terremoto (TRUNGPA RINPOCHE, 2006, p. 249).

De outro modo, para a tradição da Louca sabedoria dos Yogues Loucos, "circunstâncias naturais são utilizadas para restaurar o estado original de abertura" (TRUNGPA RINPOCHE, 2006, p. 249).

Devido à obsessão que Naropa tinha pela razão cognitiva, os ensinamentos de Tilopa não se baseavam em longas discussões teóricas ou em leituras hermenêuticas de textos clássicos de Filosofia budista. Certo dia ele simplesmente apontou para o céu vazio e disse a Naropa: "Meu diligente filho, eu nada tenho a mostrar. Apenas observe a natureza de sua própria mente, tão ampla, aberta e vazia como este céu".

Tendo abandonado o apego aos conceitos, Tilopa, então, deu a iniciação de Vajravarahi a Naropa, bem como as instruções de meditação, aceitando-o como aluno.

Em seis meses praticando a sadhana de VajraVarahi12, Naropa atingiu poderes

miraculosos. Diz-se que seu corpo começou a emanar um brilho tão intenso que a luz que emanava de seu corpo poderia ser vista a um mês de viagem do seu local de prática de meditação. Sua fama se espalhou com o vento e pessoas vieram procurá-lo de todas as partes do mundo. Dentre esses, estava Chokyi Lodro de Mar, mais conhecido como Marpa, o tradutor.