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Capítulo 3 – A Coleção Instrumentos da Alfabetização e a abordagem sobre o

3.3 A abordagem sobre o saber prático do professor na Coleção Instrumentos

3.3.5 A prática reflexiva e o contexto das interações

Na literatura citada, ressaltamos a obra de Schön como aquela que mais contribuiu para a construção do conceito de formação continuada como prática reflexiva. O autor, como mencionado anteriormente, aponta o processo de reflexão como importante e complexo componente da prática profissional, bem como processo individual, mas também coletivo, que implica a imersão consciente do homem no mundo da sua experiência.

Tardif e Lessard e Lahaye (2005) indicam a docência como trabalho interativo. O docente está, na maioria das vezes, em situação interacional, pois sua ação se realiza num contexto de interações humanas, em que estão presentes valores, sentimentos, atitudes que orientam suas interpretações e decisões na situação de trabalho.

Para Tardif, Lessard e Lahaye, as situações de interação presentes na atividade do professor

exigem portanto dos(a)s professore(a)s não um saber sobre o objeto de conhecimento, nem um saber sobre uma prática e destinado principalmente a objetivá-la, mas uma capacidade de se comportar enquanto sujeito, ator, e

de ser uma pessoa em interação com outras pessoas (TARDIF, LESSARD e LAHAYE, 1991, p. 228).

Os saberes da experiência têm origem na prática, repetimos, e é através da interação com seus alunos e seus pares, em confronto com as condições da profissão, que, entre professores, esses saberes adquirem certa objetividade.

Para esses autores, os saberes práticos dos professores são partilhados cotidianamente não só nos encaminhamentos em sala de aula, mas também entre seus pares, através dos materiais utilizados, dos modos de organizar a sala de aula e dos modos de fazer, dos “macetes”, das informações sobre os alunos.

Essas situações cotidianas em que os saberes são partilhados não são consideradas pelos professores como obrigação ou responsabilidade, embora a maioria deles valorize-as.

Os saberes da experiência adquirem certa objetividade em sua relação crítica com os saberes curriculares das disciplinas e da formação profissional, quando estes são retraduzidos e incorporados à prática. Na experiência, o professor

filtra e seleciona os outros saberes; e por isso mesmo ela permite aos (às) professore(a)s retomar seus saberes, julgá-los e avaliá-los, e então, objetivar um saber formado de todos os saberes retraduzidos e submetidos ao processo de avaliação constituído pela prática cotidiana (TARDIF, LESSARD e LAHAYE,1991, p. 231).

A troca de experiência por meio das interações que ocorrem nos trabalhos em grupo é bastante valorizada na Coleção – por se acreditar que potencializa o processo de formação – e é justificada no volume 1 com uma lista de argumentos e, ainda, com um boxe “de aprofundamento” contendo o seguinte texto:

Quando se estuda em grupo, ocorrem fenômenos interessantes. Seu pensamento se torna mais claro, porque você precisa elaborá-lo para comunicá-lo a um colega. É também mais fácil articular o pensamento, pois, enquanto nos expressamos, o grupo nos ajuda a lembrar o que estávamos dizendo, qual era nosso tópico ou nossa intenção inicial [...] (v. 1, p. 19).

Os professores são levados a tomar consciência de seus próprios saberes da experiência na medida em que os transmitem a seus pares em situações de formação que buscam objetivar tal conhecimento. A atividade proposta no boxe tira-teima do volume 1 da Coleção reforça essa ideia:

O percurso experimentado até aqui:

 o que contribuiu para sua formação e para o aprimoramento de suas habilidades de estudo individuais ou em grupo?

 como você se posiciona diante dos problemas da alfabetização no Brasil? Qual é a parte desse problema que lhe cabe, que pode ser modificada com sua ação e com o desenvolvimento de sua formação? (v.1, p. 55).

Este é um interessante exemplo de como, por meio de perguntas relacionadas tanto a prática quanto à teoria, pode-se conduzir o professor a um percurso de análise e reflexão de seu processo de formação, de objetivação de seus saberes, além da propositura de ações efetivas.

Para instrumentalizar o professor e tornar o trabalho em grupo mais eficiente, o volume 1 apresenta uma lista de sugestões: alternar trabalho individual e coletivo, compartilhar responsabilidades, respeitar os diferentes modos de participação de seus componentes, tornar as diferenças de conhecimento enriquecedoras; além de modos de organização de situações de discussão em grupo, cujos objetivos são o aprimoramento profissional e a qualidade do trabalho em sala de aula.

O que se questiona é se nas situações em que se tem um grande volume de informação para ser trabalhado, mais o tempo cronometrado, ou ainda, no cotidiano escolar atual, quando temos a redução dos tempos destinados à reunião pedagógica, ainda assim será possível a realização do trabalho em grupo?

A Coleção reconhece que os tempos disponíveis para isso são cada vez mais raros, embora insista em propor situações de interação, problematização da prática, registros do e sobre a reflexão do trabalho, por exemplo.

Sobre formação, reflexão e tempo, a Coleção – volume 4, Planejamento da avaliação – propõe orientações, estratégias e sugestões de organização que criem condições para que o planejamento ocorra, mas, ao mesmo tempo, deixa claro que planejar é uma tarefa complexa, que envolve dimensões coletivas e

individuais. Reconhece que as individuais e subjetivas, que envolvem expectativas e possibilidades, precisam ser integradas e articuladas com fatores de ordem social e coletiva. A Coleção afirma, ainda, que o planejamento exige condições para ser realizado, sendo o tempo uma das principais, reconhecendo que, em geral, os professores não dispõem dele, que há contratos de trabalho que não incluem horários para atividade extraclasse e para atividades coletivas, tanto fora quanto dentro do horário de trabalho com os alunos, além de que há professores trabalhando em mais de um turno.

Também conforme a Coleção, o estudo individual é um tópico importante para o sucesso do trabalho em grupo. Reconhece-se que, muitas vezes, é preterido pelos professores por exigir tempo e habilidades nem sempre disponíveis. Para favorecer seu desenvolvimento, o material traz informações e atividades ligadas às habilidades de leitura.

Com esse leque de opções oferecido pela Coleção, acredita-se que os professores, de acordo com sua forma pessoal de manifestação em grupo, possam encontrar ambiente que seja favorável à sua formação. Nessas situações, os professores poderão relatar suas experiências, manifestar suas opiniões, compartilhar suas compreensões a respeito dos objetos de ensino e o modo como acreditam que seus alunos aprendem, ampliar seu repertório de atividades, dividir problemas e criar alternativas com a ajuda de seus colegas.

A pesquisa de campo indica outra realidade: tais situações de interação são episódicas, ao acaso, e principalmente com objetivo de solucionar questões pontuais, como: providenciar os Para Casas, sincronizar fases de desenvolvimento de projetos comuns às duas classes, organizar reunião de pais, preencher documentos solicitados pela secretaria.

Aqui cabe, mais uma vez, o depoimento da professora Rosa, em entrevista do dia 11 de dezembro de 2008, já citada, em que afirma a ausência de propostas de formação de grupos de estudos.

Na estrutura da escola que a professora Rosa trabalha, pudemos acompanhar algumas discussões entre ela e sua colega, de início do primeiro ciclo, e entre as duas e a supervisora.

Quando a discussão ocorria entre as duas professoras, na maioria das vezes falavam sobre os alunos e sobre as atividades que elas produziam em casa e traziam uma para a outra. Quando envolvia a supervisora, muitas vezes falava-se

sobre todo o grupo ou determinado aluno, ou sobre alguma proposição – como elaboração de atividade, encaminhamento do projeto ABC, levado pela supervisora como modelo, trabalho com datas comemorativas, avaliação ou documentos solicitados pela SEDUC.66

No conselho de classe,67 por exemplo, quando a professora e a supervisora discutiram aluno por aluno, seus avanços e necessidades, tinham como ponto principal a frequência, que é o dado mais evidente e solicitado pela SEDUC como elemento que garante ou não ao aluno prosseguir com seu grupo para o 2º ano do 1º ciclo. O segundo aspecto mais discutido foi o nível de compreensão do sistema de escrita de cada aluno. A partir das avaliações de Rosa, a supervisora anotava alguns dados em seu caderno, quantificava e comparava com os dados do início do ano. O terceiro elemento mais presente nas discussões diz respeito a dados particulares da estrutura familiar do comportamento do aluno. Ao longo do relato e a partir da análise da professora Rosa, a supervisora preencheu fichas de relatório de cada criança para ficarem arquivadas na escola. Além da função documental, os conselhos precederam as reuniões de pais, tendo também função de organizarem as informações sobre o trabalho pedagógico e o desenvolvimento das crianças para ser repassado para os pais.

Outro exemplo, referente à cobrança da família, pode ser identificado nesse relato da professora, do dia 5 de maio de 2008, sobre correção do Para Casa:

Eu olho somente quem fez ou não, se a letra é da criança. Quem fez, ganha um adesivo. Os pais cobram uma correção, passando caneta, escrevendo a palavra certa para a criança copiar. Eu explico na primeira reunião que esse tipo de correção só mostra que a criança está errando, quando na verdade ela está num processo de construção. Eu cobro que ele faça o dever. Meu interesse é formação de hábito de estudo, que ele perceba que a tarefa de casa é semelhante a da escola e que ele dá conta de fazer. Procuro escolher atividade que eles dessem conta de fazer. Se fez o para casa, se tentou, ganha o adesivo. É claro que eu passo fazendo observações, mas não escrevo. Quando se escreve, marca o que faltou e não o espaço dele.

Embora não haja momentos instituídos para a discussão em grupo do trabalho pedagógico, exercem influência sobre o trabalho da professora a sua

66 Essas atividades estão descritas no Capítulo 4.

colega de ciclo, as demandas e intervenções da supervisora, as exigências da SEDUC e a compreensão, ou não, das solicitações das famílias ou responsáveis pelas crianças, além dos objetivos de ensino.