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Capítulo 3 – A Coleção Instrumentos da Alfabetização e a abordagem sobre o

3.3 A abordagem sobre o saber prático do professor na Coleção Instrumentos

3.3.6 As fontes de conhecimento e a prática

Conforme já salientado a respeito das fontes de conhecimento utilizadas pelo professor, as pesquisas de Huberman (1986, p. 155) indicam que “os congressos e as reuniões de associações profissionais são fontes pouco utilizadas, seguramente porque elas têm um caráter episódico e são, sobretudo, de natureza social”. Segundo ele, as fontes mais usadas são aquelas de fácil acesso, tanto físico quanto social, e utilidade imediata na prática, sendo os colegas de trabalho a mais consultada pelo professores. A consulta a fontes científicas é rara, com exceção de revistas e outras obras de referência de acesso fácil. O mais evidente, na prática docente, são as trocas de “receitas” que permitem ao professor alargar seu repertório pedagógico.

Sobre o uso da informação a que tem acesso, o autor indica que o professor desconfia da credibilidade de fontes de informação que não provenham da situação prática e está mais aberto a informações práticas vindas de outros professores, a explicações e sugestões que se aproximam de sua própria vivência.

Em todos os volumes da Coleção, encontramos propostas de trabalho ou orientações que podem servir de referência para o professor. No entanto, os volumes 3 e 6 trazem atividades que podem ser realizadas tal como estão editadas ou adaptadas de acordo com as necessidades de cada contexto.

O volume 3, Avaliação Diagnóstica da Alfabetização, contém fichas com atividades avaliativas para cada uma das 18 capacidades listadas em sua matriz de referência. Embora oriente os professores para que façam uma revisão das atividades e ampliem o instrumento de avaliação, fazendo inclusive novas questões ou atividades que julgarem importante avaliar, as fichas desse volume podem ser usadas sem qualquer alteração, observando-se apenas se a orientação é dirigida ao professor ou ao aluno; no caso de questões dirigidas ao aluno, basta que o

professor avalie se ele deve ler ou não a questão para a criança, como pode ser visto nas FIG. 22 e 23, a seguir, respectivamente:

FIGURA 22 – Exemplo de indicação para uso e ampliação das fichas de atividades para avaliação diagnóstica

Fonte: Volume 3 da Coleção Instrumentos da Alfabetização.

O volume 6, Planejamento da Alfabetização: capacidades e atividades, que é o mais volumoso, com 229 páginas, apresenta empreendimentos e projetos e, em alguns casos, no interior desses, inclui atividades de ensino direto e sistemático. A isso acrescenta a sugestão de que o professor analise, aplique, discuta e, se necessário, reelabore-os.

O exemplo a seguir da Coleção é a atividade 14, denominada Comparando letras e sons numa lista de frutas: primeiro há uma caracterização geral da atividade, em seguida três tópicos denominados Descrição geral, Prepare- se e Dica; um quadro com instruções sobre: 1) introdução, 2) desenvolvimento e 3) conclusão da atividade, além da indicação para distribuí-las no tempo escolar. Em terceiro, exemplificando atividades de ensino direto e sistemático, segue a atividade que o professor pode usar como modelo ou mesmo aplicar tal como está na Coleção, alterando somente o cabeçalho.

FIGURA 23 – Exemplo de atividade Comparando letras e sons numa lista de frutas

Fonte: Volume 6 da Coleção Instrumentos da Alfabetização.

FIGURA 24 – Exemplo de atividade Comparando letras e sons numa lista de frutas (continuidade)

FIGURA 25 – Exemplo de atividade Comparando letras e sons numa lista de frutas (continuidade)

Fonte: Volume 6 da Coleção Instrumentos da Alfabetização.

Embora a Coleção apresente roteiros detalhados para exemplificação das atividades e trabalhe com a exemplificação, conforme se detalhará posteriormente, a pesquisa de campo revela que a professora Rosa não reconhece a Coleção como fonte de material com sugestões práticas que se aproximam de sua própria vivência, apontando-a como referencial teórico.

A Coleção também oferece algumas atividades que podem servir de exemplos e ser transpostas pela professora para o computador ou mesmo para escrita à mão, podendo, nesse caso, apresentar problemas de diagramação, formatação e uso de imagens, descaracterizando a atividade original ou, até mesmo, alterando ou comprometendo seu objetivo.

É o ocorrido com atividades de avaliação realizadas pela professora Rosa, a seguir. Fica claro que ela usou como modelo as atividades do volume 3 – Avaliação Diagnóstica da Alfabetização, no entanto, as alterações realizadas por ela interferem, em diferentes graus, na sua aplicação. É o que pode ser visto nos dois exemplos abaixo.

QUADRO 2

Comparação entre atividades de avaliação elaborada pela professora Rosa e

atividades do volume 3 – Avaliação Diagnóstica da Alfabetização

Avaliação elaborada pela professora Atividades apresentadas no v. 3

Atividade com alteração do enunciado e

diagramação Capacidade 5: Dominar a natureza alfabética do sistema de escrita

Avaliação elaborada pela professora Atividades apresentadas no v. 3

Atividade com alteração na diagramação da atividade e inclusão e mudança de elementos

Capacidade 1: Compreender diferenças entre o sistema de escrita e outras formas de

representação

Para Anne Marie Chartier (2007), o desafio do trabalho de teorização não é explicitar o saber-fazer dos professores e sim partir desse saber-fazer e transformá-lo em saberes da escrita. A relação identificada pela autora entre esses dois mundos – teoria e prática – não é de oposição, mas de integração por meio do discurso da prática, tanto a prática de ensino quanto a prática científica. No estudo de caso realizado por Chartier, descrito anteriormente, apesar de a professora pesquisada não ser capaz de identificar explicitamente as fontes teóricas que utiliza em sua prática, o seu discurso revela a sua presença.

No cotidiano da sala de aula da professora Rosa, com bastante frequência, ela reagrupa as crianças. O critério principal funda-se na evolução das hipóteses das crianças sobre o nosso sistema de escrita, portanto, ela se pauta nos princípios construtivistas para agir assim. Algumas vezes, ela dá a mesma atividade para todos os grupos; em outras, trabalha com atividades diversificadas. Quando pedia a ela para me explicar quais critérios teria usado para a escolha das diferentes atividades ou intervenção, a sua explicação era, na maioria das vezes, genérica:

Quando eu vou trabalhar com a criança da fase introdutória, eu penso que ela tá muito ligada à imagem. Inclusive muitas nem venceram o realismo nominal, elas pensam que o tamanho da palavra tem a ver com o tamanho da coisa que ela tá escrevendo. Então eu gosto de trabalhar com imagens que partem delas. Se eu estou trabalhando o alfabeto e vejo que elas estão falando muito sobre animais, então eu trago muitas figuras de animais, eles recortam, colam e tentam escrever o nome do animal (Fragmento de Transcrição de Entrevista Filmada, professora Rosa).

Outro exemplo de providências que esta professora toma nos encaminhamentos das atividades está relacionado à organização e concentração da turma nas atividades. Se ela organiza prioritariamente as crianças em subgrupos e investe sua atenção em cada um deles, ela, para manter a ordem, ou pede para as crianças esperarem sem fazer confusão ou oferece alternativas de atividades que possam trabalhar com mais autonomia.

Sobre isso, a professora Rosa nos conta que, há muito tempo, vem organizando seu trabalho, fazendo diferentes planejamentos, inclusive, naquele ano, havia feito um quadro de horários e planejamentos diários que, na sua opinião, estava dando muito certo. Ela acredita em atividades direcionadas e diferenciadas

para cada grupo de crianças, pois muitas precisam de intervenções diferentes para “avançarem em seu pensamento” (Fragmento, Entrevista, professora Rosa).

A professora demonstra saber que para um trabalho em subgrupos funcionar, com o mínimo de disciplina, e permitir que ela acompanhe, individualmente, cada um dos alunos, são necessárias atividades alternativas para as crianças que forem concluindo seu trabalho. Boa parte dessas alternativas é criada no tocante do trabalho.

Além disso, verificamos indícios de fundamentos teóricos, mas referidos a outros momentos e paradigmas de formação, como a teoria construtivista aplicada à alfabetização, demonstrando que é um tipo de saber o qual tem origem em pesquisa teórica e, em algum momento, passa a fazer parte dos saberes ordinários. Trata-se de um paradigma de mais de vinte anos de circulação e não sabemos quais tipos de mediações ou aplicações foram realizados para verificar o modo como passa a fazer parte do discurso e da prática.

Perguntamos: o problema, então, estaria no não-reconhecimento por parte dos pesquisadores de um discurso que não se assemelhe ao da escrita teórica – segundo Chartier, monológica, objetiva, que abole as marcas de sua enunciação?

Ainda sobre a pesquisa feita por Chartier, as fontes utilizadas pela professora eram tanto orais quanto fontes escritas. Ao adaptá-las a suas atividades, ela experimentava, testava, retinha ou descartava a informação. A professora transformou, portanto, o discurso de origem em discurso para a prática. E é assim que as pesquisas podem produzir efeitos nas salas de aula. A esse respeito Chartier indica ainda que “uma boa gestão dessas trocas informais poderia, em certos casos, ser suficiente para atualizar os saberes úteis”68 (CHARTIER, 2007, p. 206).

No volume 1 da Coleção, com relação à transformação do discurso de origem em discurso para a prática, reconhece-se que, no interior dos trabalhos em grupo, os professores aprendem não só os conteúdos, mas também a linguagem acadêmica; aposta-se no domínio de uma linguagem pela sua utilização, ficando, então, mais fácil aprendê-la no uso oral do que no uso escrito, que é mais complexo. Isso não significa a sobreposição de um discurso sobre outro, e sim a possibilidade

68 Por outro lado, CHARTIER reconhece que o domínio de tal saber prático não é suficiente para

torná-lo transmissível a outros. Em sua pesquisa, concluiu que a verbalização dos “saberes em ação”, seguida de sua redação, foi um processo de teorização eficaz para tornar mais evidentes seus saberes aos outros, no caso, os estagiários da professora pesquisada.

de ampliação dos recursos discursivos, sejam da prática científica, sejam da prática de ensino.

No volume 3, sobre o desenvolvimento de habilidades de registro do trabalho e de reflexão a seu respeito, é indicado o uso de diário de campo e de caderno de anotações.

Em entrevista em sua casa, a professora Rosa nos revela que ela atribui valor à Coleção como um material para a formação do professor mais relacionado à teoria. Quando ela necessita de uma atividade para realizar com as crianças, busca em sua biblioteca particular, onze coleções de atividades que oferecem modelos para imprimir e multiplicar para os alunos. Quando avalia a atividade adequada, mas identifica algum elemento que ela acredita precisar ser alterado – por exemplo, passar a letra cursiva da matriz para imprensa maiúscula –, faz isso em seu computador ou manualmente. Esse processo ocorre em sua casa, onde ela toma todas as decisões; depois leva para a escola a atividade pronta, inclusive para sua colega de ciclo, que, na maioria das vezes, gosta da atividade e a realiza em sua sala também (vez ou outra, sugere alguma alteração ou comenta possíveis intervenções).

O que se pode perceber é que este processo, tanto de busca de informação teórica quanto de elaboração de atividades para sala de aula, ocorre de forma solitária, com pouca interação entre os profissionais da escola e, consequentemente, sem desafios referentes à explicitação sobre o que, por que e como se realiza tais elaborações.

No relato da professora, percebe-se que os meios metodológicos sugeridos pela Coleção não são suficientes de fato, como alternativas ao modo solitário do trabalho docente.

Para interferir neste modelo de trabalho não basta que o material de formação sugira como ideal que o seu uso seja feito em grupos de estudo formados pelos professores da mesma escola. E mais, o estudo em grupo é uma estratégia frequentemente empregada em situações diversas e com objetivos também diversos, não é específica para fomentar este tipo de trabalho.

Em situação de entrevista, no dia 11 de dezembro de 2008, perguntei para a professora Rosa sobre quais capacidades69 se referem ela, sua colega de ciclo e a supervisora quando falam que as crianças devem desenvolver as capacidades que estão no material do Ceale. Contei a Rosa que gostaria de saber um pouco mais sobre essas capacidades e como elas influenciam seu trabalho. Embora, em nossas conversas, utilize bastante o termo capacidades, ela respondeu:

Eu nem uso capacidades, eu uso mais objetivo. Os objetivos que eu tenho em mente são:

Conhecimento do alfabeto, Identificação das letras,

Construção da ideia de número,

Aspectos organizacionais do desenvolvimento da criança: o saber onde começa e termina a atividade,

o recortar,

o saber onde colar, onde escrever. o organização espacial.

o percepção do lado da letra, que lado ela tem a barriguinha.

Identificar a letra, com o som que a letra produz e perceber que quando ela ajunta com vogal que som que dá.

Fazer correspondência entre a letra e o som na hora de escrever

Perceber palavras que começam com som inicial igual, as que terminam iguais. Perceber o som no meio da palavra é mais difícil.

Perceber que o tamanho da palavra independe do tamanho do objeto. Vencer o realismo nominal (Fragmento de Transcrição de Entrevista Filmada, professora Rosa).

Na mesma entrevista, eu comentei que nós conversamos, durante quase duas horas, sobre o modo como ela produz atividades, os diferentes recursos que utiliza e, em nenhum momento, ela fez referência à Coleção Instrumentos da Alfabetização. Então ela disse que, para montar atividades, recorre mais a suas coleções, por exemplo, Coleção Alfabetização Silábica Tin-do-lê-lê, do que ao “livro do Ceale”.

Embora a Coleção seja propositiva em relação ao desenvolvimento da formação continuada, às experiências em sala de aula e reflexão sobre elas, isto

69 Pode-se dizer que o termo capacidade é indício de um tipo de apropriação discursiva da Coleção, uma

vez que é utilizado para se evitar repetir as ideias já carregadas ideologicamente por palavras similares tais como competências ou habilidades e que aparece reiteradamente em toda a Coleção.

não é evidente para a professora que, na organização de seu trabalho pedagógico, quando busca teoria, consulta a Coleção; buscando atividades, não.

3.4 Breve apresentação das fontes utilizadas pela professora a partir de sua