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Capítulo 1 – Anunciando pressupostos teóricos

1.1 Linguagem escrita

Ao longo das últimas décadas, os conceitos de alfabetização e de letramento vêm se transformando, em especial pela crescente necessidade de se apreenderem os usos sociais e as funções culturais, políticas e ideológicas da leitura e da escrita.7 Frequentemente, a noção de fracasso escolar é atrelada ao fracasso

da alfabetização.8 Inicialmente concebida como fracasso da aprendizagem, estudos em sociologia da educação deslocaram a responsabilidade do aluno pela incapacidade de aprender para o contexto familiar, somado à pobreza e ao analfabetismo.9

7 Cf. SOARES, 1998, 2004, 2004; KLEIMAN, 1995; OLIVEIRA, 1995; FERREIRO, 2001, 2002;

RIBEIRO, 1999; OLSON, 1997; OLSON e TORRANCE, 1995; COOK-GUMPERZ, 1991; CHARTIER, CLESSE, HÉBRARD, 1996.

8 Enquanto os países pobres buscam explicação para o analfabetismo, bem como medidas de

superação, países como França, Estados Unidos e Inglaterra, por volta de 1980, mobilizaram-se contra o iletrismo, o que não significa que questões relacionadas à alfabetização não sejam enfrentadas por eles. No entanto, são tratadas como questões distintas (Cf. SOARES, 2004c e FERREIRO, 2002). SOARES, 1989, também indica, em As muitas facetas da alfabetização e

Alfabetização: a (des)aprendizagem das funções da escrita, que os problemas da alfabetização

não são apenas de natureza psicológica, psicolinguística, sociolinguística e linguística, são também sociais, culturais e políticos.

9 Dados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Brasileira (Saeb), de 2001, divulgados em

2004, relacionados ao desempenho dos estudantes brasileiros da 4ª série do ensino fundamental, comprovam que o fracasso na alfabetização é maior entre crianças negras que trabalham e vivem em regiões de piores indicadores sociais e econômicos.

No Brasil, até os anos 40 do século passado, o que servia de instrumento para identificar se a pessoa sabia ler e escrever era sua resposta pessoal e afirmativa sobre o tema, bastando a assinatura do próprio nome. Entre 1950 e 2000, questionava-se a pessoa sobre sua capacidade de ler e escrever um bilhete simples. Na última década, o nível de escolaridade atingido foi somado ao critério anterior, apontando para a ideia de que o acesso ao mundo da escrita impõe distintas habilidades, as quais vão além da assinatura do nome ou da escrita de um bilhete simples.10

A principal causa apontada para essa transformação relaciona-se à mudança conceitual da aprendizagem da língua escrita, que se difundiu no Brasil a partir de meados dos anos 80. Segundo Soares (2004a, 2004c), no Brasil, a discussão acerca de letramento surge sempre enraizada no conceito de alfabetização – o que tem levado à inadequada e inconveniente fusão dos dois processos, com prevalência do conceito de letramento e, consequentemente, de certo apagamento e perda de especificidade da alfabetização11 –, considerada por

ela como um dos fatores que explicam o fracasso do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita hoje. A autora define letramento como o “resultado da ação de ensinar e aprender as práticas sociais de leitura e escrita. O estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais” (SOARES, 1998, p. 39) e, alfabetização como a “ação de ensinar/aprender a ler e a escrever” (SOARES, 1998, p. 37).

Tal ampliação, conceitual também, foi motivada pelo paradigma cognitivista que, no Brasil, se difundiu como construtivista e socioconstrutivista, e baseou-se, inicialmente, nas pesquisas psicogenéticas que buscavam entender o processo de aprendizagem de qualquer conhecimento escolar. Entre nós, o paradigma cognitivista chegou pela via da alfabetização, representado pelos estudos sobre a psicogênese da língua escrita – desenvolvidos por Emília Ferreiro e colaboradores12 e bastante difundidos.13 Foi largamente disseminado e constitui-se

10 Mais informações em Alfabetização e Cidadania. Revista de Educação de Jovens e Adultos.

RaaB, n. 16, jul. 2004, p. 10-11.

11 A esse apagamento da ação da alfabetização a autora também denomina desinvenção da alfabetização.

12 Tais como TEBEROSKY, TOLCHINKY, PALÁCIO.

13 CASTORINA, In: FERREIRO, 2001, p. 91, atribui a grande difusão de Psicogênese da língua escrita, de Emília Ferreiro, ao fato de ter produzido uma revolução profunda nos enfoques

tradicionais da psicologia da alfabetização e porque as dificuldades no processo de alfabetização tinham a ver, em boa parte, com a aplicação de teorias psicológicas totalmente falsas.

num quadro de referência para alguns programas nacionais de formação de alfabetizadores implementados no Brasil, a partir de 2001, como o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA), da SEF/MEC. Além disso, essas referências foram objeto de discussão em vários congressos, publicações e ações de formação inicial e continuada de professores.

Realizadas com o objetivo de entender os processos e etapas construídas pela criança para aprender a ler e a escrever, pesquisas sobre como as crianças aprendem o sistema alfabético de escrita demonstram que, ao chegar à escola, os alunos trazem muitas informações sobre o funcionamento do nosso sistema de escrita. Desde bem jovens, porque vivem em grupos que apresentam um grau maior ou menor de letramento, as crianças têm oportunidade de fazer uso da escrita e de buscar informações nos materiais escritos disponíveis, o que amplia as suas possibilidades de interação com a e pela escrita.

A perspectiva psicogenética da aquisição da escrita provocou mudanças importantes na área da alfabetização, trazendo, para o centro do debate, o aluno, seu processo de apropriação do sistema de escrita e a interação com os usos e práticas sociais da língua. O que prevalecia, até então, era a discussão sobre a eficácia de processos e métodos de alfabetização. Soares indica equívocos e falsas inferências decorrentes que produziram o que ela chamou de desinvenção da alfabetização: o privilégio da faceta psicológica da alfabetização, obscurecendo a sua faceta linguística – fonética e fonológica; a incompatibilidade entre o paradigma conceitual psicogenético e a proposta de métodos de alfabetização; o pressuposto de que, apenas por meio do convívio com a cultura escrita, a criança se alfabetiza; e a dissociação entre alfabetização e letramento.14

Soares ressalta o quanto é importante reconhecer que alfabetização se distingue de letramento, tanto em relação aos objetos de conhecimento quanto em relação aos processos cognitivos e linguísticos de aprendizagem e de ensino. Considera os conceitos distintos, mas interdependentes e indissociáveis, e aponta que a alfabetização só tem sentido em contextos de letramento que, por sua vez, só

14 Cf. SOARES, 2004a, 2004b e 2004c; FERREIRO, 2001, p. 146-147, ao discutir sobre a cultura

escrita na primeira infância, também indica alguns mal-entendidos sobre seus escritos relacionados ao ensino da leitura e da escrita que podem somar às falsas inferências acima apresentadas: a de que as crianças “chegam sem saber nada ao ensino fundamental”, a de que “só o ensino fundamental se ocupa da língua escrita”, e a de que a criança aprende sozinha.

podem se desenvolver na dependência da e por meio da aprendizagem do sistema de escrita.

Pode-se considerar que a alfabetização não precede o letramento, que os dois processos são simultâneos e que alfabetizar, hoje, também significa letrar, criando possibilidades para que o aluno tenha acesso a conhecimentos e capacidades que lhe possibilitem entrar num mundo em que a maioria das relações entre as pessoas se organiza em torno da língua escrita.

O reconhecimento de tal relação de interdependência já produziu mudanças na escola, tanto conceituais, referentes aos aspectos que auxiliam na aquisição da alfabetização, quanto metodológicas, referentes ao modo pelo qual o professor vai trabalhar para favorecer a aprendizagem.15 No entanto, é preciso cuidado para se identificar e se compreender se o que poderia ser apenas um problema terminológico passou a promover insegurança, mal-entendidos e distorções entre professores, com consequências nas práticas de sala de aula com crianças que deveriam cultivar e participar de experiências variadas e significativas com a leitura e a escrita em seu processo inicial de escolarização.

Nesta pesquisa, que buscou compreender aspectos da prática de professores alfabetizadores, em sala de aula, consideramos importante tanto a discussão conceitual atualizada quanto a sua implicação no trabalho pedagógico.

É importante valorizar o impacto qualitativo que estas conceituações de alfabetização e letramento poderiam produzir, ou produzem, nas práticas, sendo esta uma proposta que vai além da dimensão técnica e instrumental do domínio do sistema de escrita, porque proporciona condição diferenciada na interação do sujeito com o mundo. Uma condição não garantida para aquele que apenas domina o código.16

Ressalta-se, então, que os aspectos metodológicos do trabalho com a linguagem escrita cumprirão seu propósito se a escrita for colocada num lugar de uso cotidiano, de modo a possibilitar o acesso tanto à sua dimensão estética e lúdica quanto à informação e aos valores próprios de uma sociedade letrada. Consideramos fundamental criar um ambiente de aprendizagem rico e estimulante:

15 Cf. LERNER, 2002; NEMIROVSKY, 2002; SOLÉ, 1998; TEBEROSKY e COLOMER, 2003;

TEBEROSKY, 1994; TEBEROSKY e TOLCHUINSKY, 1996; TEBEROSKY e GALLART, 2004; CHARTIER, CLESSE e HÉBRARD, 1996, LANDSMANN e TOLCHINSKY (1995), MOLINARI, (2008) e MOLINARI e CASTEDO, (2008).

práticas de leitura e escrita que ofereçam contato com material escrito pertinente, funcional, prazeroso; com diversos portadores e suportes,17 gêneros, funções e

objetivos de escrita.

Outra questão a se destacar é o fato de crianças com baixo nível de letramento (não raro originárias de comunidades analfabetas ou de meios com práticas reduzidas de leitura e escrita) terem, possivelmente, a oportunidade de vivenciar tais eventos na ocasião de ingresso na escola, com o início do processo formal de alfabetização.

Embora a alfabetização, em seu sentido restrito, não tenha sido especialmente focalizada em algumas teorias que discutem a concepção de linguagem e, indiretamente, uma concepção de ensino, os pressupostos presentes em algumas abordagens podem ser comparados ao ensino da língua em geral, pois certos aspectos da alfabetização e letramento podem pender para determinadas concepções – por exemplo, o tratamento do sistema de escrita e dos gêneros textuais–, devido ao forte componente formal de alguns conteúdos que são tratados nesse nível de ensino. Por outro lado, a produção desse ensino ocorre em situações de interação com a língua, princípio que adotamos tendo em vista uma concepção interacionista da linguagem.

Aqui é fundamental a compreensão das perspectivas teóricas em torno do conceito de língua e linguagem, a fim de pensarmos as diferentes implicações que surgem a partir de cada abordagem. Os atuais estudos de linguagem se baseiam num percurso teórico que parte do viés da tradição gramatical – passando pela Linguística, tratando, em especial, das abordagens de Saussure e Chomsky, e pela teoria da comunicação – e vai até a noção de língua, sob a perspectiva teórica discursiva.

Por exemplo, Geraldi (1999), ao tratar das concepções da linguagem, resume-as: 1 – expressão do pensamento (sob os aspectos da gramática tradicional); 2 – instrumento de comunicação (conforme o estruturalismo e o transformacionalismo); 3 – forma de interação (linguística da enunciação). Interessante observar a correspondência, apontada pelo autor, entre cada concepção e as três grandes correntes dos estudos linguísticos.

17 Segundo TEBEROSKY e COLOMER, 2004, p. 48, portadores de texto são objetos que, contendo

diversos produtos, possuem marcas escritas; suportes de texto são objetos elaborados especialmente para a escrita (livros, revistas, papéis administrativos, periódicos, documentos em geral).

Conforme a primeira corrente, a expressão é construída no interior da mente, e sua exteriorização é somente uma tradução. Daí haver regras a serem obedecidas para a organização lógica do pensamento e da linguagem, diz Travaglia (1996). Na segunda, guiada pelo estruturalismo saussuriano e pelo transformacionalismo chomskiniano, a língua, considerada um conjunto de signos que se combinam segundo regras, é instrumento para transmitir uma mensagem de um emissor a um receptor. Segundo a última corrente, o mesmo autor afirma que a linguagem é tomada como um lugar de interação comunicativa, em que há efeitos de sentido entre os interlocutores.

Para o nosso trabalho interessa a concepção de linguagem como atividade sociointerativa, portanto como forma de ação que constitui um lugar de interação entre sujeitos, num determinado contexto social de comunicação e para um determinado fim.18

A linguagem, nesta perspectiva, foi, nos anos 40 do século XX, o objeto de estudo de Bakhtin (1986), que desenvolveu uma teoria na qual o que, de fato, o autor persegue é o processo linguístico, porque, para ele, a língua constitui um processo de criação contínua que se realiza pela interação verbal social entre os falantes.

Nesta direção, a linguagem vai além de sua dimensão comunicativa, ela é constitutiva: é pela linguagem que os sujeitos se constituem mediante as interações sociais.

Bakhtin estabelece que o conceito-chave para se entender o processo linguístico é a enunciação, considerando que a linguagem se realiza na forma de enunciações individuais concretas. Para o filósofo russo, a língua é uma abstração se concebida isoladamente da situação social que a determina. “A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes” (BAKHTIN, 1986, p. 124).

É justamente a partir de distintas vertentes teóricas, cada uma com sua importância, que hoje podemos pensar a língua como um sistema discursivo, o lugar

18 VIEIRA e COSTA VAL, 2005, investem neste conceito na Coleção Alfabetização e Letramento,

volume Produção de textos e escritos: construção de espaços de interlocução. Essa Coleção também foi elaborada pelo Ceale para a formação docente.

em que se configura a interação verbal, materializada em textos ou discursos, falados ou escritos.

Se considerada uma atividade/ação social, podemos concluir que a língua deve ser estudada como se apresenta socialmente, ao contrário de estudá-la abstratamente como sistema de formas e regras a ser seguido. Esta teoria implica a necessidade de compreendermos as suas variações e, consequentemente, assumirmos uma prática pedagógica de reflexão e análise sobre o conhecimento de língua que a criança possui (sua própria variedade de fala) e a língua ensinada na escola (a variedade padrão); as diferenças regionais e sociais de uso da língua e o seu prestígio social relativo.

A relação que ocorre entre a linguagem escrita e a linguagem oral – duas modalidades de uma mesma língua, em que cada uma delas possui especificidades de uso e também uma interfere em outra –, é aqui considerada sob o ponto de vista da continuidade, no que se refere tanto a seu aspecto tipológico quanto ao aspecto da realidade cognitiva e social. Este entendimento contraria o que pressupõe a perspectiva da dicotomia restritiva, que, considerando a língua um conjunto de regras e normas, registra a instância da fala como a do erro e do caos gramatical, portanto de valor menor em oposição à escrita, locus da norma e do uso correto da língua. Conforme teoriza Luiz Antônio Marcuschi (2001) fala e escrita se referem mais a processos e a eventos do que a produtos.

A escrita, de características materiais específicas, pode se manifestar por meio de alfabetos, ideogramas ou iconografias, mas sempre no plano do letramento como um modo de produção textual-discursiva.19 Pessoas não alfabetizadas,

mesmo incapazes de ler e escrever convencionalmente, compreendem os papéis sociais da escrita, distinguem gêneros e/ou reconhecem as diferenças entre a língua escrita e a oralidade; também há pessoas alfabetizadas e pouco letradas, que, mesmo dominando o nosso sistema de escrita, pouco identificam as possibilidades de seu uso.

Outro marco referencial importante, não apenas para o ensino da língua escrita é a prática da linguagem escrita usual, tal qual ocorre fora da escola. Nesse sentido, para o ensino da língua escrita destaca-se a questão do texto, falado ou escrito, cuja unidade de sentido se estabelece em determinada situação discursiva.

De igual importância a diversidade dos textos com os quais as crianças devem interagir.

Sob um ponto de vista mais amplo, conforme tem defendido grande número de pesquisadores como Emilia Ferreiro, Ana Teberosky, Isabel Solé, entre tantos outros, o ensino da língua escrita pode permitir às crianças a apropriação de estratégias consolidadas para a produção de textos e de compreensão de leitura; porém este processo de aprendizagem é uma construção progressiva e não linear,20 que se estende ao longo da vida, sem limite de possibilidades.

Este conjunto de referências está, de alguma forma, presente nos discursos sobre o ensino da língua e, especialmente, nos pressupostos que dirigem a discussão da alfabetização e do letramento de crianças em fase inicial de alfabetização; consequentemente, está presente também na Coleção Instrumentos da Alfabetização. Fica para nossa análise a indagação sobre quais fatores configuram a apropriação dessas ideias nas atividades que professores realizam em seu cotidiano, depois do acesso a tais pressupostos nos cursos de formação.

Algumas pesquisas vêm tratando a questão da apropriação de conceitos de alfabetização e letramento por professores – e aqui podemos citar a pesquisa de doutorado de Kelly Cristina Nogueira Souto (2009), desenvolvida no programa de Pós-Graduação da FaE/UFMG. Nossa pesquisa soma-se a essa, com a diferenciação de que nos baseamos na apropriação de uma formação e de um material específicos que apresentam propostas conceituais e metodológicas de alfabetização e letramento, denominadas e configuradas como instrumentos da alfabetização.