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3. UMA PAUSA PARA O ESTUDO DO SUJEITO

3.1. A PROPOSIÇÃO/ORAÇÃO: O SUJEITO E O PREDICADO

Foi, como vimos, a tradição clássica que nos ofereceu as bases para os posteriores estudos da sintaxe: da associação de dois conceitos resulta a proposição que serviria de pilar ao objeto da sintaxe – a oração. Também como vimos, foi Platão quem fixou as noções de substantivo e verbo. O primeiro corresponderia ao sujeito de um predicado e o segundo, a expressão da ação ou de uma qualidade. Dentro da fundamentação lógica, o sujeito seria aquele sobre o qual se afirmaria algo, o atributo, o responsável por tal afirmação, e o verbo, o que ligaria os dois. Essas noções, em função do que averiguamos, ainda hoje vigoram na GN.

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Observamos que as três gramáticas aqui em questão apresentam o estudo do sujeito para bem mais adiante apresentarem o estudo da concordância.

Em Rocha Lima (2008, p.234-235), sujeito “é o ser de quem se diz algo”. Do ponto de vista de sua forma, o sujeito “é expresso por um substantivo, ou

equivalente”. Outras vezes, “não se compõe apenas de um substantivo,” ao

contrário, é acompanhado “de outros elementos que lhe precisam ou limitam o

sentido fundamental”, constituindo-se o substantivo no seu núcleo. O predicado é

“aquilo que se diz do sujeito”.

Transcrevemos aqui um dos exemplos de que se utiliza o gramático: “Brancas pombas castíssimas voavam” (2008, p. 235).

Mas, nas condições em que a gramática diz não existir o sujeito, ou ainda, no caso em que “referimo-nos ao processo verbal em si mesmo, sem o atribuirmos a

nenhum ser”, como definir o predicado? Com o quê, afinal, concorda o verbo? Pela

filiação aos padrões clássico-filosóficos dos estudos da linguagem, essas indagações atestam uma lacuna de natureza linguística na descrição dos elementos centrais que constituem a oração.

No mesmo veio, Cunha e Cintra (2001, p. 126) ratificam, em termos conceituais, a fala de Rocha Lima face à compreensão do sujeito e do predicado: “O

sujeito é o ser sobre o qual se faz uma declaração; o predicado é tudo aquilo que se diz do sujeito”.

Bechara (2001, p. 409), entende o sujeito como a

unidade ou sintagma nominal que estabelece uma relação predicativa com o núcleo verbal para constituir a oração. É na realidade uma

explicitação léxica do sujeito gramatical que o núcleo da oração

normalmente inclui como morfema número-pessoal.

Por desejar o autor conferir aos estudos gramaticais uma abordagem mais formal do que lógica, o sujeito é, nos seus dizeres “uma explicitação léxica do sujeito

gramatical” e não o contrário. Considera que a oração “representa o objeto mais propício à análise gramatical, por revelar as relações que seus componentes mantêm entre si, sem apelar fundamentalmente para o entorno (...)”. O gramático,

assim como os demais, coloca basicamente como suficiente, para fins de análise, a oração absoluta. Compreende, por tudo isso, o verbo como elemento necessário, enquanto “nem mesmo o sujeito é um constituinte imprescindível da oração”.8

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Por trazermos à tona o conceito de sujeito na compreensão de Bechara, retomaremos também a polêmica sobre a necessária existência/inexistência do SER substantivo na função de sujeito como elemento fundamental à constituição da oração. Porém, para não nos desviarmos de nosso objetivo nesse exato momento - qual seja, verificar o tratamento estrutural conferido ao sujeito, como significativo pré-requisito para o estudo da

Sobre a relação predicativa, ele ainda aponta um senão (BECHARA, 2001, p. 408):

Em chove, o verbo flexionado na 3ª pessoa – marca o sujeito gramatical, isto é, assinalado apenas gramaticalmente, mas temos uma predicação não-referida, pois não admite sujeito explícito. A chamada 3ª pessoa é a não-pessoa, é a não-eu, nem meu interlocutor, e assim é a forma utilizada para indicar a relação predicativa não-referida, isto é, as orações sem sujeito explícito.9

O que é interessante perceber na fala do referido gramático é o fato de ele afirmar que, nas ditas orações impessoais, a forma do verbo, flexionado na terceira pessoa, marca um sujeito gramatical. Parece-nos uma tentativa de desvincular a forma de seu conteúdo, como se fosse possível uma forma, exatamente por ser linguística, não agregar um fator de referência. Sabemos que, na linguística funcional, as formas de uma língua retiram seu valor da oposição linguística - forma marcada e forma não marcada - e é nesse instrumental teórico que Bechara se ancora para tentar fechar a lacuna a que nos referimos, dando ao predicado o lugar de termo “imprescindível” na construção da oração. Em outras palavras, o verbo se flexiona para se adequar a uma pessoa gramatical em ausência.

Vamos aqui nos reportar ao capítulo II desta tese, exatamente no que se refere às incursões que fizeram Heráclito, Parmênides, Platão e Aristóteles, no campo da linguagem, para ver como estão apagadas pelo tempo e pelos objetivos diversos as origens dessa lógica de pensamento. Como vimos, as indagações filosóficas acerca do mundo e do SER nele inserido travou um embate entre considerações heraclitianas e parmenidianas9, a que Platão conciliou e Aristóteles pôs termo10, na medida em que identificou a constitutividade do SER no Não SER.

concordância verbal –, trataremos, logo a seguir, da importância do SER/substantivo/sujeito para a formulação da oração e dos estudos que, nesse plano, estão envolvidos – tese que defendemos.

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Para efeito de contextualizar a informação, retomamos brevemente algumas referências acerca do pensamento desses dois filósofos. Para Heráclito, o mundo era um fluxo constante, em que nada permanecia idêntico a si mesmo e o pensamento seria capaz de perceber a mudança das coisas em seus contrários. O lógos, princípio inteligente manifesto na linguagem, seria também mudança e contradição, o que não permitiria alcançar a conhecimento do SER. Em resposta, Parmênides argumentou que o SER simplesmente seria imutável, sempre idêntico a si mesmo; a mudança era aparência. Uma linguagem que não fosse capaz de captar essa constância seria ilusória, não teria existência, era o Não SER, o nada. A contradição seria impensável e inexprimível. Uma coisa que se tornasse contrária a si mesma destruiria-se. Só seria possível pensar e dizer o sempre igual a si mesmo. Só o SER poderia ser pensado e dito. O lógos, então, seria o SER como pensamento e linguagem verdadeiros.

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Para Platão, o mundo das sensações, das percepções e das opiniões – mundo natural ou material – seria a mudança constante, o mundo da aparência, e corresponderia ao Não SER. O mundo sem contradições seria o das essências – o do SER - ou mundo inteligível. Por meio do pensamento e de linguagem, poder-se-ia chegar a ele. Aristóteles não separou os dois. Afirma que eles fazem parte de um só mundo. Reconhece, em conformidade com as ideias de Parmênides, que o pensamento e a linguagem exigem identidade, mas em consonância com Heráclito admite que as coisas mudam. Isto não significa dizer, segundo ele, que identidade e mudança sejam incompatíveis.

Ele entendia que o Não SER é diferente do SER, mas necessário à sua identidade, ou seja, o Outro do SER.

Ao retomarmos as referências filosóficas do pensamento grego, estamos, portanto, buscando as raízes que fundamentam um certo modo de explicar a língua, em oposição àquele que nela focaliza o aspecto material como especificidade de estudo de uma ciência da linguagem. É, por isso, que Bechara salienta: “A chamada

3ª pessoa é a não-pessoa, é a não-eu, nem meu interlocutor”. Mas como a língua é

inescapavelmente semântica, podemos ver, por trás da forma não marcada, o não SER, que é um SER também, é um Não Eu, que é um Eu/Outro também.

A expressão sujeito explícito, mencionada por Bechara, para “uma predicação

não-referida,” permite-nos deduzir que o verbo está na terceira pessoa por

concordância com um sujeito implícito, que gramaticalmente não está marcado. Trata-se de um sujeito lógico, que está no pensamento, mas não é gramatical, ou ainda, que não está na língua, ou, pelo menos em um determinado padrão de língua.

Retomamos então a argumentação que fizemos em torno do nome, mais especificamente na sua manifestação substantivo/sujeito – aquela que registra a substância. O SER e o Não SER constituem o ponto de partida fundamental para que o processo discursivo se dê. O SER e o Não SER/substantivo/sujeito é o elemento desencadeador do ponto zero, da inércia. Os verbos registram os fatos que acontecem com os seres e não o contrário.

Assim numa frase como Chove!, do ponto de vista (onto)lógico, o acontecimento se desenrolaria a partir do SER chuva. Os verbos que implicam fenômeno da natureza suscitariam, no bojo da expressão de seu acontecimento, o SER desencadeador. Acostumados à tradição do ensino da GN que ora fundamenta o estudo em bases formais, ora, em bases semânticas, não são raras as vezes em que, na compreensão de muitos de nossos alunos, existem aqueles que identificam no substantivo chuva o SER responsável pelo acontecimento. A sobrevivência da matriz discursiva da tradição clássica na GN os leva, por meios subliminares, a dar respostas com base na lógica clássica que perpassa a justificativa de grande parte dos episódios gramaticais.

Sobre a presença da tradição ontológico-semântica na GN, Barbosa (2008, p. 369-372) destaca a fala de dois estudiosos:

Os verdadeiros impessoaes são aquelles que se não usão nunca se não na terceira pessoa do singular, como: Amanhece, Anoitece, Chove, Neva, Orvalha, Troveja, Trovôa, Venta, etc. Os sujeitos destes verbos, que podem ser Deos, O Ceo, A nuvem,etc., pela maior parte se sobentendem; às vezes, porêm se expressão, como: Se amanhece o Sol, a todos aquenta; e se chove o Ceo, a todos molha.” (SOARES BARBOSA, 1830 Apud BARBOSA, 2008, p.369). si toda oración debe constar de nombre y verbo, erróneamente enseñan los gramáticos que existen verbos impersonales sin sujeto, [...] se engañan radicalmente, porque no vieron que el sujeto está oculto en el propio verbo o está incluso em la oración” (SÁNCHEZ, 1587 Apud BARBOSA, 2008, p.372).

Por fim, Barbosa (2008, p. 373) conclui a respeito dos chamados verbos impessoais:

Foi, portanto, o entendimento do sujeito como participante no processo representado pelo verbo que levou inúmeros autores, desde pelo menos Port- Royal, a procurar nominais que constituíssem o sujeito “oculto” de Chover, de Haver, etc. (Chove = A chuva cai, Há homens = O mundo há [“tem”] homens, etc.).

O que não devemos esquecer é que os problemas de natureza teórica da GN são oriundos do exame da atividade verbal que ocorreu a propósito dos interesses humanos em torno dos temas acerca do mundo e do SER. A gestação da GN foi uma das consequências. Ao procurar configurar o terreno específico de atuação, os gramáticos, num primeiro momento, ativeram-se à pesquisa de aspectos materiais da linguagem. Levando em consideração a fonte em que foram beber, não foram, contudo, totalmente bem-sucedidos.11

A identificação desse problema nos leva, já na introdução, a delimitar o campo de ação diante de nosso objetivo em reorganizar o capítulo da concordância verbal, para atender à finalidade didático-pedagógica. Sabemos que a concordância verbal que envolve a polêmica das orações sem sujeito na GN requer um estudo mais aprofundado. Fato que determinaria um padrão de abrangência incompatível com o tratamento que o tema da impessoalidade requer.

Como assinala Gil (2006, p. 54), todo trabalho de pesquisa, para sua execução exige uma delimitação.

Frequentemente o problema é delimitado de uma maneira tão ampla que se torna impraticável chegar a uma solução satisfatória. Nem todos os aspectos do problema podem ser pesquisados simultaneamente. Torna-se necessário, portanto, reduzir a tarefa a um aspecto que possa ser tratado em um único

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Quanto a esse nível de investigação, Neves (2002, p. 44-45) nos diz que a perspectiva ontológica e lógica é a grande contribuição da filosofia aos estudos gramaticais, que vão, num feito estratégico, tratar as partes do discurso como classes de palavras, concluindo a autora: “É assim que a sintaxe é a grande ausente do quadro gramatical inicial.” Na pagina 63 do mesmo livro, completa sua exposição sobre a precariedade da sintaxe na gramática de Dionísio: “o que constitui objeto de investigação não é o relacionamento dos termos do discurso, mas, sim, o seu isolamento, com vistas a uma classificação e ao estabelecimento de paradigmas” Nesse momento em que se quer descolar a perspectiva filosófica da perspectiva formal, ignoram-se praticamente as discussões sintáticas, porque, neste nível, haveria inescapavelmente uma relação mais explícita com a lógica.

estudo, ou dividido em subquestões que possam ser tratadas em estudos separados.

Assim, para nos restringirmos ao nosso estudo, qual seja, o da concordância verbal dos sujeitos marcados formalmente nas orações, podemos interpretar as implicações de sua organização interna: contaminada pelas ideologias que configuraram a GN, a concordância firma a regra geral - maneira de disciplinar e impor o falar de uma classe dominante.

Contaminada ainda pela ideologia do SER, o aspecto lógico torna-se o seu traço explicativo mais forte. Quando se concorda com o núcleo, centra-se a informação no SER -, por isso, esse tipo de relação entre o nome e o verbo é a preferida, sendo considerada regra geral.

O caso particular, segundo a GN, está em oposição à regra geral, em que o verbo concorda com a parte não nuclear do sujeito (no caso do sujeito simples) ou apenas com um dos núcleos (no caso de sujeito composto).