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3. UMA PAUSA PARA O ESTUDO DO SUJEITO

4.2. MOLARIDADE: UM PARADIGMA PARA PENSAR O ENSINO DA LÍNGUA

Até aqui falamos de duas atitudes opostas, relacionadas ao modo em geral de organizar os conteúdos. Quando falamos de atitude, estamos nos referindo, implícita ou explicitamente, a uma tomada de posição, de escolha, portanto, da condição humana de animal político, como há séculos destacou Aristóteles. O que está por trás de qualquer atitude e destas duas também é um indissociável posicionamento político, a que já aludimos, quando falamos das relações de poder, entre elas, duas bem relevantes: a de poder saber e a de saber poder.

Nesse ponto, cabe ressaltar que o ato da educação se funda numa determinada concepção de valores e de ensino e, a partir dela, busca os meios mais eficientes para efetivar os seus fins. Assim considerado, não é impróprio dizer que esses dois modos atitudinais fazem parte do paradigma de uma nova pedagogia. Esse modo de conduzir a construção do saber sobre a língua se identifica, como mais atrás ressaltamos, com a defesa do pensamento complexo que defende Morin, uma das figuras exponenciais na defesa de uma teoria da complexidade, com reflexos significativos no modo de pensar a educação. Sobre suas ideias, eis o que informa Petraglia (1995, p. 47):

Durante toda a sua vida, Morin foi animado e inspirado pela necessidade de romper com a ideia de um saber parcelado, acreditando na incompletude de todo e qualquer conhecimento. (...).

Para ele, prossegue Petraglia, “este é o cerne do pensamento complexo:

distinguir, mas não separar”.

Quanto às suas ideias sobre escola e educação, informa-nos a autora (PETRAGLIA, 1995, p. 68) o que Morin identifica no currículo: “Na maioria das

vezes, peca tanto quantitativamente, quanto qualitativamente.” Destacamos ainda a

passagem (PETRAGLIA, 1995, p. 47) referente à relação que ele estabelece entre o homem e o conhecimento.

O pensamento que é complexo não pode ser linear (...). Tal qual o humano que é um ser complexo, pois concentra fenômenos distintos e diversos, capazes de influir em suas ações e transformar-se sempre, assim também é o conhecimento.

Ainda é digna de menção a seguinte passagem acerca do pensamento complexo:

A partir do trabalho de Morin, podemos perceber que é fundamental que na escola fiquem claras algumas distinções da prática pedagógica cotidiana: distinguir e não separar ou disjuntar; associar e interligar e não reduzir ou isolar; complexificar e não simplificar. (PETRAGLIA, 1995, p.76-77)

Sob essa ótica, percebemos que as atitudes que professa Silva fazem parte de uma pedagogia da complexidade. Pedagogia que traz, no seu bojo, uma teoria e um método para atingir a determinados saberes - como veremos na próxima seção -; um método que incita uma tomada de atitude, que instila o gérmen da curiosidade, o incômodo necessário à abertura de uma fresta em direção a uma perspectiva para além dos conteúdos que ficam restritos ao universo escolar. Um incômodo de todos os envolvidos no espaço da sala de aula. Um incômodo oportuno, porque reconhece a incompletude de qualquer domínio do saber, permitindo-o avançar.

Morin (2003, p. 335) revela a importância de não se perder de vista a estreita relação necessária entre teoria e método. Para ele o método deve ser entendido no seu sentido original e não naquilo que ele chama de perspectiva clássica, que entende como degradada, porque transformou-se num “corpus de receita” cujo fim é excluir todo o sujeito de seu exercício pensante. O método, nessa perspectiva, é técnica; a teoria, programa. Assim, “o método, para ser estabelecido, precisa de

estatégia, iniciativa, invenção, arte”.

Em conformidade com essa perspectiva, o trabalho de Silva articula necessariamente teoria e método, desdobrando-se nas estratégias mnemônicas, das quais falaremos posteriormente. Como ressalta Morin (2003, p. 337-338)

Aqui a teoria não é nada sem o método, a teoria quase se confunde com o método, ou, melhor, teoria e método são os dois componentes indispensáveis do conhecimento complexo.

O método é a atividade pensante do sujeito. Assim o método torna-se central e vital:

- quando há necessária e ativamente, reconhecimento e presença de um sujeito procurante, conhecente, pensante; (...)

- quando se sabe que o conhecimento não é a acumulação dos dados ou informações, mas sua organização; (...)

- quando se sabe que a teoria é sempre aberta e inacabada; (...)

- quando o conhecimento revela e faz renascer ignorâncias e interrogações.

Retomando Silva, destacamos um ponto alto na sua argumentação: a atitude que desmitifica o saber enquanto produto acabado e descortina a condição de todos os sujeitos envolvidos como “seres em falta” permite nivelar as condições do saber, investindo na autoconfiança do sujeito aprendente e pulverizando o peso de suas

carências cognitivas. Por isso, conferimos relevância às seguintes palavra de Silva (2009a, p. 5):

Os que adotam uma atitude molar conhecem o fato de sermos seres em falta, incapazes de dominar todos os aspectos, detalhes, perspectivas de um assunto ou de uma situação qualquer (...). Os que adotam a atitude molar sabem que é possível reter 85% (oitenta e cinco por cento) do que estudam e estão conscientes de que sempre algo escapará, pois a fugacidade da vida cria margem para o não previsto, para o outro não pensado, para a falta como constitutiva do desejo.

É fato que toda educação estabelece, em primeiro plano - ou acredita estabelecer - a democratização do saber. Temos ciência, contudo, de procedimentos didáticos que acabam por reforçar a ideologia de que o saber está à disposição de todos, mas adquiri-lo é condição inata reservada apenas para alguns. No artigo intitulado “Estratégias mnemônicas: um método para lembrar (lendo texto

gramaticais)”, Silva (2010, p. 2) torna essa defesa mais contundente.

Vimos observando esse mesmo fenômeno do ciclo recidivo do estuda-esquece em vários níveis de escolaridade na área do ensino das línguas. Temos tido contato com vários tipos de platéia constituídas de profissionais em formação, formados e pós-graduados na área de ensino aprendizagem de Português, e é quase unânime o relato da dificuldade em guardar o que se estuda na gramática. O que é relevante também é que esses públicos se sentem em dívida consigo mesmos por não ter uma considerável fatia dessas regras retidas. Isso para muitos deles ainda constitui evidência de falta de preparo e competência. Na verdade, o que queremos salientar com esses comentários é que a questão da retenção das regras gramaticais, no caso específico no momento, extrapola o meramente intelectual e já adentra o escopo da problemática emocional de profissionais do ensino de Língua. É nessa zona do emocional do exercício da profissão nossa de cada dia que desejamos atuar.

O que é relevante nesta pedagogia é o fato de ela também democratizar o esquecimento como parte constitutiva do conhecimento, apaziguando a autoestima do sujeito aprendente. Além do mais, ao trabalhar com as possíveis associações existentes entre os itens dos conteúdos, uma pedagogia desse porte resulta obrigatoriamente na interpelação de todos os agentes envolvidos. Nessas condições de envolvimento, pode ocorrer de o aluno se antecipar ao professor. Não são poucas as vozes a assinalar o papel do afetivo na instância do cognitivo. Assim, para finalizar a seção, transcrevemos, especificamente, as apreciações de Asmann (2001, p. 31)

Não cabe dúvida de que o cérebro necessita do abraço para seu desenvolvimento, e as mais importantes estruturas cognitivas dependem deste alimento afetivo para alcançar um nível adequado de competência. Não devemos esquecer, como Leontiev destacou há bastantes anos, que o cérebro é um autêntico órgão social, necessitando de estímulos ambientais para seu desenvolvimento. Sem aconchego afetivo, o cérebro não pode alcançar seus ápices mais elevados na aventura humana.

Então, todo conhecimento abrange características individuais, existenciais e subjetivas, além das objetivas norteadas pela razão, pois, tratando-se de experiência e ação humanas, não se pode dissociá-las da emoção. Morin afirma (...) que é preciso considerar os aspectos da paixão, dor e prazer no ato do conhecimento.

O que estamos aqui defendendo é que, ao objetivar a produtividade do saber, não se pode desprezar a autoconfiança como um componente afetivo importantíssimo para a aprendizagem. Também, nesse sentido, Silva mostra sua preocupação com as condições afetivas da cognição. Trabalhar e assumir com os alunos os limites do saber como um problema de todos faz o estudante não se excluir afetivamente da condição potencial de aprendente das diversas frentes do saber. Por isso, é muito importante gerarmos mecanismos didático-pedagógicos que invistam em métodos de aquisição do saber e que não descuidem da autoconfiança do sujeito aprendente. Na seção seguinte, discorreremos sobre um desses possíveis métodos.

4.3. UM CAMINHO PARA SER MOLAR: AS ESTRATÉGIAS MNEMÔNICAS

Toda pedagogia, como vimos discutindo aqui, se desdobra em procedimentos didáticos e traz, nas entrelinhas desses procedimentos, os seus pressupostos. Até aqui, falamos de uma pedagogia que, como todas as outras, traz desdobramentos didáticos a fim de efetivar o que defende. Assim, cabe, no caso desta tese em especial, a seguinte indagação: como agir de forma molar?

Neste ponto, em função dos objetivos a serem desenvolvidos, iremos nos reportar à indagação específica em relação a um tópico de ensino de Língua Portuguesa – a concordância verbal na GN.

Da convivência com os saberes veiculados pela GN, Silva (2010, p. 1) atesta existir um coro significativo de vozes que resumem essa experiência da seguinte forma:

É quase unanimemente compartilhada a sensação de que “a Língua Portuguesa é muito difícil de ser aprendida”. Tanto leigos, ex-alunos, quanto profissionais de muitas áreas compartilham dessa idéia. Cabe perguntar que Língua Portuguesa é essa que é tão difícil de aprender? Ou a que aspecto da língua se referem aqueles que acreditam no mito da dificuldade de aprendizagem do Português? Com certeza, os que nessa ideia acreditam se referem à dificuldade de aprendizado dos preceitos e da metalinguagem da gramática normativa.

Uma das grandes dificuldades de compreensão dos preceitos se deve ao perfil arquitetônico dos textos normativos. É o que explica Silva (2010, p.1):

Tal tipo de texto tem como uma de suas características principais uma compleição digito-expositiva-informacional caracterizada pela atomização dos itens preceituais. Os textos se tornam de difícil leitura e necessitam, portanto, que se tomem determinadas providências para que as regras possam ser visualizadas com mais clareza pelo leitor. Faltam ao estudante ferramentas metodológicas para abordar esses textos de forma compreensiva.

O problema, como já assinalamos, não é só a falta de compreensão dos textos, mas também a retenção. No caso em pauta, a concordância, de um modo geral, é um dos índices materiais que as pessoas mais utilizam para medir a qualidade da sua linguagem e da linguagem alheia. Por esses motivos, retê-la é, como já dissemos, um dos objetos de desejos das pessoas.

Objeto do desejo ou não, é fato necessário resolver o “ciclo do estuda-

esquece” que “tem sido recidivo e frustrante” (SILVA, 2010, p. 1). Pensando nesse

círculo vicioso, Silva (2010) elaborou uma metodologia com nove estratégias mnemônicas, aqui mencionadas na ordem de apresentação do autor: definição, motivação, fundação, regrão, inclusão, exclusão, discriminação, universalização e sucata mnemônica.

Antes, porém, de aplicarmos as estratégias mnemônicas ao capítulo de concordância verbal, faremos algumas considerações acerca dessas estratégias.

A primeira delas relaciona-se ao estabelecimento de dois objetivos principais delimitados por Silva (2010, p. 2).

1 – guiar o aluno-leitor na leitura dos textos das gramáticas normativas do português;

2 – ser uma espécie de fio condutor para a memória (mnemônico) que ajude o aluno-leitor a lembrar o conteúdo estudado a fim de que toda vez que precisar fazer uso das informações do assunto, essas informações lhe venham à mente através de um processo de associação por similitude e contraste sistemáticos.

A segunda consideração está relacionada ao fato de Silva (2010, p. 3) assinalar que esta metodologia exige do leitor uma grande atividade mental: trata-se do desenvolvimento de “processo associativo que se dá através do estabelecimento

de relações de semelhanças e contrastes que vão muito além da linha textual”.

Nessas condições, o leitor tem que assumir uma atitude ativa, para investigar no texto as informações passíveis de serem incluídas num mesmo conjunto. Ele deverá procurar, por trás das diferenças arroladas – as aparentes exceções - no texto gramatical, um elo comum, aquilo que permitirá a recategorização do assunto

numa perspectiva mais econômica. Pode ser redundante repetir, mas essa metodologia contribui muito para a retenção do conteúdo gramatical: além de enxugar as informações, ativa a memória por processo de significação associativa.

A terceira e última consideração vem a propósito de assinalar que as nove estratégias não precisam figurar na ordem em que o autor as apresenta, tampouco um determinado texto gramatical requisita a aplicação de todas elas. Sobre essa questão, é relevante introduzir considerações feitas por Silva (2010, p. 5) presente em pé de página:

Todos os rótulos por nós usados para denominar as estratégias, trazem em si muito do significado que essas palavras têm na língua portuguesa, por exemplo, DEFINIÇÃO é a estratégia que visa encontrar o que o preceito quer dizer, em que ele consiste. Tomamos essa providência intencionalmente, pois ela já facilita a memorização do nome da estratégia, já que ela tem a ver com o significado corrente da palavra em nossa língua (...)

Foi proposital a escolha da terminação – ão presente nas designações das estratégias para fins mnemônicos também (...). Esse sufixo – ão, dentre outros significados em nossa língua, remete à noção de ação. O trabalho mnemônico que as estratégias esperam realizar é muito ativo cognitivamente e nada melhor do que palavras que trazem em si a ideia de ação para caracterizar essa atividade de processo. Ademais estabelecemos uma espécie de paralelismo rimático entre os nomes das estratégias que facilita sua lembrança. Todas essas providências têm o objetivo de tornar internamente coerente um método cujo objetivo principal é fazer lembrar o que se estudou.

Com o propósito de continuarmos desenvolvendo esta pesquisa, antes de falarmos com detalhes de cada uma das estratégias mnemônicas, vamos estabelecer, no próximo capítulo, dois conceitos necessários ao trabalho de organização molar do texto de concordância verbal. Para tal fim, retomaremos uma questão inicial, já problematizada no capítulo I desta tese. Trata-se da necessidade de estabelecer com maior nitidez o que venha a ser regra geral e casos