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5. O PRINCÍPIO ONTOLÓGICO DA CONCORDÂNCIA VERBAL

5.1. PRIVATIZAÇÃO E DESPRIVATIZAÇÃO NÚMERO-PESSOAL DO

Nesta seção, definiremos dois rótulos metalinguísticos cunhados por Silva ao longo dos nossos encontros de orientação. Esses dois rótulos, a nosso ver, assumem contornos fenomenológicos capazes de explicar e resgatar o elo sintático que desvendaria uma flutuação de possibilidades de concordância verbal. É essa flutuação responsável por conferir ao assunto um aspecto de vastidão intransponível que gera, para o estudante-leitor, a sensação de impossibilidade de aprendizado. O primeiro rótulo intitula-se: privatização número-pessoal do núcleo do sujeito e o segundo, desprivatização número-pessoal do núcleo do sujeito.

O termo privatização, no contexto de nossa tese, encontra sua referência primeira no dicionário. Significa “Ato ou efeito de privatizar”, isto é, “que não é

permitido a todos, só a alguns”; ou em outras palavras, “próprio de, exclusivo de”

(HOUAISS; VILLAR, 2009). Deste modo, quando falamos em privatização número- pessoal do núcleo do sujeito, estamos nos referindo à propriedade exclusiva de o núcleo fazer o verbo se flexionar para a ele se conformar. Assim, o conceito de

privatização por nós utilizado na tese é o dicionarizado. Foi a partir dele que cunhamos outro: desprivatização número pessoal do núcleo do sujeito.

A utilização dessa terminologia tem sua justificativa a partir do seguinte objetivo: por meio desses dois conceitos, pretendemos explicar o aparentemente variado número de casos particulares. Para nós, o conceito de desprivatização número-pessoal do núcleo do sujeito está em relação antonímica com o de privatização e expressa o fenômeno em que o verbo não mais terá que necessariamente se conformar ao número e à pessoa do(s) núcleo(s) do sujeito.

A fim de que possamos prosseguir em nossa exposição, é necessário encaminhá-la separando dois contextos subjetivos, de maneira a tornar mais didática a nossa reflexão sobre os dois conceitos nodais de nosso trabalho. Em primeiro lugar, faremos algumas considerações sobre o sujeito simples e, a seguir, sobre o sujeito composto.

No caso do sujeito simples, a fundamentação para o modo de ver aquilo que se chama regra geral estaria numa concepção de linguagem, entendida como representação da realidade. No núcleo, estaria a representação do ser: a concordância do verbo com esse núcleo poria a essência do próprio SER em evidência. Observemos os exemplos extraídos da gramática de Rocha Lima (2008, p. 388):

“um dia um cisne morrerá, por certo...” (Júlio Salusse) “Aqui outrora retumbaram hinos” (Raimundo Correia)

Mas existe também a possibilidade de ocorrer a concordância do verbo com o entorno do núcleo: o acidental, do ponto de vista das posições que os termos ocupam (o adjunto adnominal), que, de certa forma, ajudaria a particularizar esse SER. Vejamos o exemplo a seguir, extraído da gramática de Cunha e Cintra (2001, p.499):

“A maior parte destes quartos não tinham teto, nem portas, nem pavimento.” (C.C. Branco)

O núcleo do sujeito da frase em destaque é parte, palavra que está no singular. A concordância canônica, nesse caso, obedeceria à diretriz do núcleo; isto é, o núcleo no singular levaria o verbo para o mesmo número. No entanto, não é isso

que acontece no exemplo em questão, pois o verbo está no plural. O elemento do sujeito que está determinando a concordância do verbo no plural é o adjunto adnominal destes quartos. Desse modo, ocorre o que já denominamos aqui

desprivatização número-pessoal do núcleo do sujeito. Isto significa dizer: não é

mais o núcleo que determinará o número do verbo, mas outro elemento também constitutivo do sujeito, que gera a concordância surpreendente. Essa concordância também está a serviço de uma linguagem cujo foco ainda é a representação do SER.

Assim compreendido, a variação flexional do verbo é privativa do núcleo do sujeito. A regra geral compreende, portanto, o reconhecimento do fato de que o verbo precisa sofrer ajustes flexionais de número e pessoa para adequar-se igualmente ao núcleo do sujeito: se o núcleo está numa determinada pessoa no singular, o verbo assume respectivamente o mesmo número e a mesma pessoa; se está em outra pessoa no plural, o verbo igualmente se adequa a essa pessoa e a esse número.

É importante também destacar outra constituição do sujeito: trata-se do sujeito composto que pode ser configurado por dois ou mais núcleos substantivos no singular/plural, de acordo com o que ilustra o exemplo seguinte (ROCHA LIMA, 2008, p. 390).

“Um gesto, uma palavra à toa logo me despertavam suspeitas.” (Gracialiano Ramos)

Também nesse caso pode ocorrer a desprivatização de um dos núcleos do sujeito composto, havendo a concordância com apenas um deles.A explicação para a desprivatização número-pessoal dos núcleos do sujeito composto obedece ao mesmo princípio ontológico utilizado para explicar a desprivatização número-pessoal do núcleo do sujeito simples: o verbo, privativo dos núcleos do sujeito composto, deve considerar todos eles, como forma de referenciação de todos os seres. Mas, na concepção da ontologia clássica, os seres expressos pelos núcleos poderão ser hierarquizados.Em vez de o verbo concordar com o conjunto dos núcleos, ou seja, ir para o plural, concorda somente com um, ficando no singular.

“A grandeza e a significação das coisas resulta do grau de transcendência que encerram.” (M. Torga)

Porque se foi distorcendo, ao longo do tempo, o foco do princípio ontológico acerca da linguagem, a GN costuma resolver a imprevisibilidade da desprivatização pelos caminhos plurais da interpretação semântico-estilística de cunho meramente subjetivo – atitude nada metódica17. Esse é o caso do exemplo que acabamos de destacar da gramática de Cunha e Cintra (2001, p.510), cuja explicação sobre a desprivatização de um dos núcleos transcrevemos a seguir:

“quando os sujeitos são interpretados como se constituíssem um conjunto, uma qualidade, uma atitude.”

Defendemos que, muitas vezes, a aceitação da norma fica comprometida pela falta de visibilidade do estudante-leitor, em torno da justificativa fundada na interpretação apresentada pelo árbitro; ou ainda pela falta de compatibilidade entre o que os dois produzem em termos de sentido. Assim, o exemplo, deslocado da obra de Miguel Torga, não produz necessariamente para o estudante-leitor o mesmo sentido apontado por Cunha e Cintra, principalmente porque deslocado do texto. Se o argumento semântico-estilístico não convencer, só resta a imposição normativa, fato que, inúmeras vezes, poderá fazer o aluno-leitor apresentar resistência, mascarada na forma de esquecimento.

A respeito da abordagem interpretativa diante dos recursos sintáticos da concordância verbal, gostaríamos de ressaltar sua validez no espaço que é próprio - o texto, território da fluidez polissêmica em que o aluno também precisa aprender a transitar. O estudo focado no fenômeno da privatização/desprivatização número- pessoal do núcleo do sujeito quer conferir sanidade que estruture e explique coerentemente a regra e o desvio.

A partir da análise de exemplos da GN, cremos ser possível conferir um mesmo tratamento descritivo tanto aos casos de sujeito simples como aos de sujeito composto. Vejamos os exemplos:

17

Apesar de os lógicos sonharem “com uma linguagem que pudesse ser confiavelmente exata e precisa” (VOESE, 2004, p. 32), não podemos negar que na concepção da ontologia clássica, a linguagem, tomada como representação da realidade, também não está livre de comprometimentos semânticos. E é por influência dessa tradição, que os primeiros gramáticos encontraram dificuldade em descrever com coerência estritamente linguística o quadro dos episódios sintáticos. Por isso deixaram uma lacuna referente a esse nível de articulação da língua, que permanece presente nas nossas gramáticas normativas atuais. A nossa restrição ao tratamento semântico dado às ocorrências sintáticas pela GN, portanto, está relacionada ao fato de que, no lugar da lacuna deixada pelos clássicos em torno de episódios mais complexos e mais dispersos da linguagem, os gramáticos partiram para inscrever em manuais normativos, aspectos plurais de sua subjetividade que não permitiram a sistematização necessária, compatível com um manual que se denomina didático-pedagógico.

a) “A maior parte de suas companheiras eram felizes.” (C. C. Branco)

b) “Quantos dentre vós que me ouvis não tereis tomado parte nas romagens para Aparecida?” (A. Arinos)

c) “O amor e a admiração nas crianças compraz-se de extremos.” (A. Ribeiro) d) “Um e outro é sagaz e pressentido.” (A. Feliciano)

e) “Afirma-se que nem um nem outro falou a verdade.” (Frei Luiz de Sousa)

f) “Tanto uma, como a outra suplicava-lhe que esperasse até passar a maior correnteza.” (J. Alencar)

Observamos em a a desprivatização número-pessoal do núcleo de terceira pessoa do singular do sujeito simples, uma vez que o verbo está flexionado na terceira pessoa do plural, concordando com o adjunto adnominal de terceira pessoa do plural. Em b, ocorre a desprivatização número-pessoal do núcleo de terceira

pessoa do plural do sujeito simples, já que o verbo no plural não concorda com a

terceira pessoa, mas com o adjunto adnominal de segunda pessoa no plural. Poderíamos chamar a atenção para o fato de que há uma diferença de ordem numérica entre as desprivatizações que ocorrem entre a e b. Mas quando a finalidade que governa o estudo é didático-pedagógico, o mais importante é fazer sobressair as afinidades. No caso da desprivatização, a percepção da constante dessimetria de relações flexionais entre o verbo e o núcleo do sujeito - movimento estruturador da desprivatização número-pessoal do núcleo do sujeito - é bastante significativa para a memória. Os exemplos de desprivatização número-pessoal do núcleo do sujeito percebidos em c, d, e e f obedecem rigorosamente ao mesmo movimento estruturador: a desprivatização ocorre em virtude de o verbo concordar apenas com um dos núcleos do sujeito composto18. Como já sabemos, a GN desdobra essas ocorrência em diferentes casos.

Do que acabamos de expor, especialmente no que se relaciona aos quatro últimos exemplos, podemos adiantar que os conceitos de privatização e desprivatização número-pessoal do núcleo do sujeito reduz o aparentemente variado número de casos da GN a esse dois fenômenos, mostrando que essa organização molecular do assunto não é necessária.

18

Os exemplos ilustram uma discussão de variação numérica. No entanto, mesmo quando a questão só envolve o número,optamos por identificar pelo mesmo rótulo metalingüístico – (des)privatização número-pessoal do núcleo do sujeito – todas as situações de concordância do sujeito com o verbo. O motivo de nossa opção se deve ao fato de ser a pessoa o traço morfológico mais configurador da categoria lingüística do verbo.

Em consequência, esses mesmos dois fenômenos poderão conferir também uma organização molar às ocorrências discriminadas pela GN, já que será o conceito de privatização número-pessoal do núcleo do sujeito o que explicará a tendência da concordância verbal, isto é, a de fazer o verbo concordar em número e pessoa com o núcleo do sujeito. Por outro lado, será o conceito de desprivatização número-pessoal do núcleo do sujeito o que explicará a conduta excepcional e desviante da concordância verbal, ou em outras palavras, o de fazer o verbo não mais concordar com o número e a pessoa do núcleo do sujeito. Em síntese, estamos aqui sinalizando para o fato de que as inúmeras situações “desviantes” estão sob a égide de um mesmo princípio.

5.2. CASOS PARTICULARES: A CONVIVÊNCIA DA PRIVATIZAÇÃO E DA