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2. CONCORDÂNCIA VERBAL: UMA CONVERSA SOBRE VERBOS OU

2.1. CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DA GRAMÁTICA NORMATIVA: UM

Antes de discutirmos a influência da filosofia, no nascimento da GN, cumpre de imediato fazer uma distinção de dois momentos históricos relacionados ao contexto processual de gestação de tal disciplina. Trata-se da diferença entre cultura helênica e cultura helenística ou Greco-romana. Tal distinção é importante para entender o porquê do rumo que os estudos da linguagem foram tomando no mundo grego.

O primeiro momento compreende um longo período de florescimento e de amadurecimento dos valores tipicamente gregos e vai dos primórdios dessa civilização até o século IV a.C. Essa fase é marcada pelas seguintes etapas de evolução: a Grécia homérica; a arcaica, quando ocorre a criação de cidades como Atena, Esparta, Tebas, Megara, Samos etc; a clássica, quando a democracia se desenvolve e a vida intelectual e artística entra no apogeu.

O segundo momento, o helenístico (séc. IV-IIa.C.) é resultante do processo de fragilização das guerras fratricidas e do domínio de Alexandre, da Macedônia, que posteriormente à conquista do mundo grego se tornou adepto e difusor da cultura helênica. O período helenístico também compreende a dominação dos romanos. A conjunção dessas culturas marca uma fase, em que existe uma preocupação do mundo grego em preservar e até impor a sua tradição cultural como cultura absoluta aos demais povos com os quais passa a conviver.

Os diversos pontos de vista, determinados por diferentes condições históricas, determinam também o projeto civilizatório que se deseja. Desse modo, enquanto a cultura helênica se marcava pela criação, a helenística se ocupava em resguardar a identidade: toda a memória da produção do passado.

A disciplina gramatical, necessidade de um momento histórico, é uma criação da época helenística. Esse momento representa, em relação à helênica, uma diferença de organização política e social e, principalmente, o estabelecimento de um novo ideal de cultura. Esse é um momento de reflexão e crítica em relação a toda produção cultural do passado. Existe a necessidade de zelar por tudo o que a época helênica criou. À luz destas ponderações pode-se afirmar que foi no contexto helenístico que surgiu a necessidade de constituição de uma gramática, mas foi a cultura helênica que a possibilitou, em virtude das múltiplas vivências teóricas sobre linguagem.

Nesse contexto, a educação assumiu papel primordial na transmissão de valores de uma cultura que se opôs à introdução de outros valores de povos estrangeiros identificados como bárbaros.

Tal educação se baseava, enquanto atividade cultural por excelência, na transmissão de um patrimônio literário de grandes obras do passado. Em decorrência da contaminação daquilo que se considerou barbarismo na linguagem corrente, o mundo helenístico recortou uma realidade linguística como “autenticamente” grega, julgada capaz de oferecer os padrões ideais a serem preservados. Essa necessidade de preservação e divulgação da cultura helênica determinou o desenvolvimento dos conhecimentos literários e linguísticos a serem observados. Por isso, os textos genuinamente gregos, como os de Homero, serviram como fonte de pesquisa para os fatos caracterizadores da língua modelo. A esse respeito, vejamos o que dizem Casevitz e Charpin (2001, p.28)

Homero educou a Grécia, diz Platão. Se os poemas homéricos são primeiramente obras de aedos profissionais transmitidos pelos rapsodos no interesse de aristocratas letrados, todo grego confiado aos cuidados do mestre- escola aprende as suas letras em Homero e também nos velhos poetas didáticos e políticos, como Sólon. Mais precisamente, o ensino clássico visa formar um cidadão (...) capaz de participar da vida da cidade...

Assim, o que vai se flagrar na história do pensamento grego são as condições que determinaram a necessidade de inaugurar uma atitude prescritiva a respeito de um ideal linguístico. Por meio dessa atitude, ao longo do tempo, vai-se poder estabelecer a distinção de um modelo cidadão de linguagem. Esse ideal foi

estruturando um projeto pedagógico de Gramática que perpassou os séculos até os dias atuais. Um projeto pedagógico de sujeito-cidadão, cujo intuito foi excluir e incluir sujeitos, nos dois casos, interferindo com a identidade de ambos. Um projeto fundamentado no princípio da ontologia, que refletiu a ordem do mundo na ordem dos elementos da Gramática. Esse a ordem externa excluiu, naquele contexto histórico, estrangeiros, escravos, mulheres e alguns homens pobres e livres. Conforme ressalta Chaui (1995, p.376-377)

Em primeiro lugar, a economia era agrária e escravagista, de sorte que uma parte da sociedade – os escravos - estava excluída dos direitos políticos e da vida política. Em segundo lugar, a sociedade era patriarcal e, consequentemente, as mulheres também estavam excluídas da cidadania e da vida pública. A exclusão atingia também os estrangeiros e os miseráveis. A cidadania era exclusiva dos homens adultos livres nascidos no território da cidade. Além disso, a diferença de classe nunca era apagada, mesmos que os pobres tivessem direitos políticos (...)

O que procuramos apontar não foi a criação de uma sociedade sem classe, justa e feliz, mas a invenção da política como solução e resposta que uma sociedade oferece para as suas diferenças, seus conflitos e suas contradições (...).

No universo das questões políticas que destacamos, podemos entender que o ato pedagógico se funda numa determinada concepção de mundo e, a partir deles, busca os meios mais eficientes para efetivar os valores produzidos por esses ideais. Assim o projeto pedagógico - inserido aí o projeto de uma gramática - que se buscou construir na Grécia antiga foi aquele que representava o ideal do SER que passasse como natural em um universo restrito de condição cidadã.