• Nenhum resultado encontrado

2. CONCORDÂNCIA VERBAL: UMA CONVERSA SOBRE VERBOS OU

2.4. O HELENISMO: VALORES EXTERNOS CONFIGURANDO A LÍNGUA

Ao longo dos séculos, as reflexões filosóficas sobre a linguagem trazem à discussão, como vimos, a sua origem natural e convencional. Agora os estóicos, no contexto de desestruturação da pólis - época helenística – tecem, seguindo ainda essa mesma direção, suas considerações sobre a linguagem. Herança de Platão e Aristóteles, a crença de que saber é ter idéias em conformidade com as coisas da natureza enraíza-se definitivamente. A situação histórica determina, muito providencialmente, que tais considerações ganhem especial relevância.

O falar, enquanto atividade físico-motora, é comum a todos, mas as representações mentais são criadas por homens de capacidade privilegiada. A

linguagem articulada é produto do intelecto.

É por esse motivo que os estóicos, considerando importante a busca da expressão, colocam a linguagem no centro da lógica. Segundo eles, só se pode conhecer o pensamento se expresso pela linguagem. Por seu intermédio, pode-se conhecer tudo. A linguagem certa é aquela que está afinada com a natureza das coisas.

Embora anteriormente já se tivesse dado destaque à proposição4, foram esses pensadores que, elegendo-a como unidade de significação, dão especial relevo ao campo da expressão e do conteúdo. São deles, portanto, os primeiros esforços no sentido de delimitar o campo de estudos da linguagem. O conhecimento tem origem na apreensão do Ser, e, por consequência, nos eventos, nos fatos e nas relações entre eles. Trata-se, portanto, de uma lógica de enunciados que discutirá a) aqueles que são fronteiriços à proposição, mas que não podem ser assim

considerados por faltar um termo;

b) a formação de proposições simples – formadas de um sujeito (substantivo ou pronome) e de um predicado expresso por um verbo. (para eles o predicado não pode ser considerado uma proposição, pois requer um sujeito);

c) a formação de proposições complexas, em que se busca determinar um fato desconhecido por intermédio das relações com um fato conhecido (são seis essas proposições: 1. de implicação – prop. hipotética; 2. de inferência – prop. consecutiva; 3. de conjunção – prop. coordenada com conj. e; 4. de disjunção – conj. ou em que uma das proposições é falsa; 5. de causa - 6. de comparação).

A dialética estóica vai estudar a representação mental que uma forma linguística evoca, em outras palavras, os significados, (as proposições, os predicados, os verbos ativos e passivos, os gêneros e as espécies) e o corpo fonológico que dá a significação, em outras palavras, os significantes (os sons, as elocuções, as partes do discurso, os solecismos, os barbarismos, a poesia). No entanto, essa relação entre representação mental e corpo fonológico não pode ocorrer de forma aleatória. Ela vai ter que estar ancorada no uso da classe dominante.

Aqui retomamos a ideia do parágrafo primeiro desta seção, quando afirmamos que existia, por parte dos gregos, um desejo de manter erguida a identidade cultural, produzida ao longo do período helênico. Nada mais oportuno, no confronto entre culturas, do que a crença na existência de uma linguagem capaz de, em conformidade com a natureza, expressar com justeza, adequação e correção a verdade das coisas. Esse é enfim o argumento que vai fazer valer consistentemente a distinção entre as formas ordinariamente usadas e aquelas consideradas padrões.

4 Formulação linguística de um juízo, podendo ser verdadeira ou falsa. Tradicionalmente considera-se o juízo como um ato mental e a proposição como sua expressão linguística (JAPIASSÚ e MARCONDES,1996).

O reconhecimento da estreita relação entre linguagem e pensamento, nesse contexto, permitiu aos estóicos investigar, com origem nas sensações, o modo de conceber os conceitos, a partir de princípios, por exemplo, da oposição, da analogia, da transposição, da alteração. Os nomes, os conceitos se originariam não da reflexão subjetiva, mas a partir de experiência sensorial e que, por isso, seriam verdadeiros.

Em outras palavras, numa relação íntima com o objeto, os nomes, criados naturalmente, revelariam a verdade. Acreditando nesse pressuposto, os estóicos dedicam-se aos estudos etimológicos. Como nos esclarece Neves (1987, p. 95),

A etimologia, buscando uma correspondência entre a linguagem e a coisa pensada, procurava mostrar formações lingüísticas diretas por impressão clara, pela evidência dos sentidos (onomatopéia), ou pela inferência analógica. Pesquisando a etimologia, porém, os estóicos deparam com a anomalia dos fatos lingüísticos.

Se a linguagem é um desdobramento consequente da verdade, a regularidade universal observada na natureza deveria corresponder à regularidade linguística. Contudo, a investigação dos estóicos provou nem sempre ser essa uma relação simétrica.

No mundo helenístico, de confronto de culturas e de trocas linguísticas, processos evolutivos como alterações de som e de sentido, quando atestavam falta de correspondência “natural” entre os conceitos e os nomes, eram interpretados como perversão. Nascem assim as considerações em torno dos conceitos de analogia e anomalia. Em outras palavras, ao se procurar a regra, depara-se também com a exceção. Isto significa dizer que vem à tona, com maior nitidez, o funcionamento da língua.

Esses dois conceitos, nascidos no seio da lógica estoica, quando são transportados para o campo dos estudos da linguagem, vão, por abstração, fornecer, respectivamente, as noções de regularidade e irregularidade, a partir do qual todos os usos serão avaliados.

No campo da linguagem, nesse momento da História, mais do que antes, tornam-se exemplares as produções literárias, como as de Homero. A partir dos manuscritos, cotejam-se variações com vistas à padronização de muitas formas e segregação de outras tantas, consideradas incorretas. O que, na verdade, nesse momento, começa a se procurar é uma simetria entre os elementos da língua, não considerados em si mesmos, mas na relação destes com fatos que lhe são externos,

ou seja, aqueles aspectos ligados à perspectiva histórico-cultural. Pode-se afirmar que, em virtude dos imperativos ideológicos, procura-se estabelecer a simetria com a língua dos homens “exemplares”. Aquilo que poderia ser considerado uma anomalia, se encontrasse parelha em “uso modelar”, era então abonado.

É desse modo que o helenismo se vincula estritamente com o princípio da analogia. Na linguagem como um todo se abstrai o que é constante, que, então, é considerado autenticamente grego e passa a constituir a regra sob cujo critério são examinados todos os modos de expressão (...). O helenismo não é, pois, o uso assimétrico, variado e ocasional, o qual, na verdade, é o oposto da analogia; ele é, sim, o denominador constante, regular e regrado, que, por isso mesmo, exclui também o dialeto. (NEVES, 1987, p. 98)

O modo de compreender o que seria a língua grega vai interferir no processo de constituição da GN, com determinações significativas até os dias atuais.