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A Psicologia da Religião e a Psicologia Cultural

O psicólogo holandês Jacob A. Belzen concebe que ―A Psicologia da Religião trata, em princípio, de um subconjunto de fenômenos, de certo número de fenômenos culturais aos quais denominamos fenômenos religiosos‖ (BELZEN, 2010, p. 43). As definições a respeito de ―religião‖, ―religiosidade‖ e ―espiritualidade‖, Belzen as deixa aos filósofos. Sua proposta (e minha também) é

a de pesquisar esses fenômenos que são claramente reconhecidos como religiosos numa dada cultura, e não tirar conclusões quanto ao verdadeiro e o válido para todas as religiões, uma vez que não existe essa religião-em-geral ou não existe essa religião separável de outras entidades e manifestações culturais (BELZEN, 2010, p. 35).

Na apresentação do livro de Belzen, Para uma Psicologia Cultural da Religião: princípios, enfoques, aplicação, Edênio Valle propõe que ―Além da bibliografia extensa e bem selecionada, o trabalho de van Belzen se coloca em uma perspectiva teórica e metodológica a que os psicólogos da religião no Brasil não estão muito afeitos: a da cultura e das culturas ou, melhor ainda, de cada cultura‖ (VALLE, 2010, p. 8; grifos meus). Eles estão mais afeitos com uma psicologia cujo ―modus operandi está marcado pela dessubjetivação e pela descontextualização na medida em que ela busca produzir, com isto, resultados válidos e universais‖ (BELZEN, 2010, p. 32). Segundo ele, com base em Wulff (1997) e em Spilka et al. (2003), a Psicologia da Religião se desenvolveu com muito esforço e é definida, especialmente nas últimas décadas, como um ramo da psicologia e, portanto, se orienta pelos diversos ramos teóricos da psicologia acadêmica em geral (e não, por exemplo, pela teologia) ―e, por isso, compartilha mais diretamente das vicissitudes da psicologia em geral‖ (BELZEN, 2010, p. 52).

Já, para a Psicologia Cultural, ―o tipo de conhecimento apresentado (...) é válido primeiro e antes de tudo — e muitas vezes até somente — para o lugar e para o momento em que ele acontece‖ (BELZEN, 2010, p. 15). E, ―fora do entremeado das culturas, não há como

compreender desde dentro (tarefa precípua da Psicologia) o que é original na experiência religiosa individual ou grupal‖ (VALLE, 2010, p. 9).

É citado por Belzen, entre outros, o psicólogo cultural Carl Ratner que ―se baseia em uma abordagem conceptual chamada de teoria da atividade‖ (RATNER, 2002, p. vi; tradução minha), que é uma articulação da natureza cultural da psicologia humana introduzida por Vygotsky, Luria e Leontiev. Segundo Ratner, Dewey, em 1910, expressou um princípio central da psicologia cultural: disse que os processos que animam e formam a consciência estão fora dela, estão na vida social. Portanto, devem-se usar os fenômenos mentais (como a percepção e emoções, por exemplo) como chaves para compreender os processos de vida que eles representam. ―Esta tarefa se assemelha a do paleontólogo que encontra um número e variedade de pegadas‖ (Ibid., p. 3)44.

A psicologia cultural deve penetrar a aparente fragmentação, incoerência e desordem e descobrir as regularidades e relações, pois a cultura é um sistema organizado e coerente. Os fenômenos psicológicos são compartilhados e distribuídos socialmente e têm origens,

características e funções sociais definidas. ―Como Hegel disse, o real é racional‖ (Ibid., p.

5)45.

De acordo Ratner, busca-se ―descrever e explicar as características dos fenômenos psicológicos que se originam em, são formados por e funcionam para promover atividades,

artefatos e conceitos culturais de um sistema social definido‖ (Ibid., p. 6)46. Pois, ―o pesquisador deve possuir uma compreensão abrangente, detalhada e profunda das atividades

44 ―In 1910 Dewey wrote a statement that expresses a central tenet of cultural psychology. He said that the

processes that animate and form consciousness lie outside it in social life. Therefore, the objective for psychologists is to use mental phenomena (e.g., perception, emotions) as clues for comprehending the life processes that they represent. This task resembles the paleontologist‘s who finds a number and variety of footprints‖ (Ibid., p. 3).

45―To be worthy of its name, cultural psychology must penetrate beneath apparent fragmentation, incoherence,

and disorder to discover regularities and relationships. This, after all, is the task of all science. Just as natural science has discovered parsimonious principles and laws that integrally explain an enormous diversity of seemingly disparate phenomena—the falling of an apple and the revolving of planets are all forms of gravity— so social science can discover that culture is an organized, coherent system; psychological phenomena are

socially shared and distributed; and psychological phenomena have definite social origins, characteristics, and functions. As Hegel said, the real is rational‖ (Ibid., p. 5, grifos meus).

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The theoretical and methodological approach I outline is not meant to apply to every aspect of human psychology. My approach is confined to describing and explaining the specific cultural content that is

embedded in psychological phenomena shared by members of a particular society (or subsociety). In other

words, I seek to describe and explain the characteristics of psychological phenomena that originate in, are

formed by, and function to promulgate particular cultural activities, artifacts, and concepts that comprise a definite social system (Ibid., p. 6, grifos meus).

sociais, artefatos e conceitos‖ (RATNER, 2002, p. 108)47. Portanto, na perspectiva da Psicologia Cultural, ao visar compreender o funcionamento do psiquismo dos indivíduos numa dada cultura, é necessário estudar as atividades, os artefatos e os conceitos culturais (BELZEN, 2010). Neste sentido, de acordo com Ratner, ―O sistema de atividades, artefatos, conceitos e fenômenos psicológicos é cultura‖48 (RATNER, 2002, p. 10; tradução minha). E segundo Belzen, os artefatos incluem ―ferramentas, livros, papéis, cerâmica, armas, utensílios para comer, relógios, roupas, construções, mobília, brinquedos e tecnologia‖ (BELZEN, 2009, p. 19)49. Compreendo, assim, que os artefatos são a cultura material de determinada etnia ou instituição.

Assim, é importante que o pesquisador de uma instituição religiosa, investigue todos os aspectos das atividades realizadas além do ritual religioso. E, nesse sentido a antropóloga Jeanne Favret-Saada testemunha:

por ter escutado, (...), uma grande variedade de discursos espontâneos, por ter experimentado tantos afetos associados a tais momentos (...), por ter visto fazerem tantas coisas que não eram do ritual, todas essas experiências fizeram-me compreender isso: o ritual é um elemento (o mais espetacular, mas não o único) (FAVRET-SAADA, 2005, p. 161).

E, portanto, é uma vantagem que eu faça parte da instituição em relação a outro pesquisador que só a conhece exteriormente e que corre o risco de analisar aspectos aparentes ou superficiais da mesma.

Portanto,

Longe de se tratar de um acontecimento que se dá na intimidade da psique, trata-se de um evento, primeiro, contextualizado em sua origem e desenvolvimento e, segundo, sempre narrado (recebido, transmitido e reelaborado) através de linguagens, uma vez que o ser humano é um ser da

linguagem (VALLE, 2010, p. 10, grifos meus).

Nesse sentido, ―a Psicologia Cultural permite que o pesquisador fique o mais próximo possível da realidade vivida pelas vidas de seus sujeitos, buscando, até por necessidade, a

47―The researcher must possess a comprehensive, detailed, profound understanding of social activities, artifacts,

and concepts‖ (RATNER, 2002, p. 108).

48 ―The system of cultural activities, artifacts, concepts, and psychological phenomena is culture‖ (RATNER,

2002, p. 10).

49 Segundo Ratner, ―Artifacts including tools, books, paper, pottery, weapons, eating utensils, clocks, clothing,

colaboração de outras abordagens que tentam interpretar estas vidas e suas vicissitudes‖ (BELZEN, 2010, p. 17)50. Belzen explicita essa necessidade:

Mesmo o fundador da psicologia experimental, Wilhelm Wundt, já contestou essa visão de que para compreender os sofisticados processos psíquicos deve restringir-se a pesquisar indivíduos. (...) O relacionamento entre o funcionamento do psiquismo e a cultura não pode ser estudado experimentalmente, mas precisa ser estudado através de métodos desenvolvidos por outras ciências humanas e sociais tais como a história, a sociologia, a antropologia e outras mais (BELZEN, 2010, p. 32)

Por isso, recorro ao método etnográfico, desenvolvido inicialmente por antropólogos. De acordo com Laplantine a etnografia é uma atividade de observação e, portanto, visual e de escrita do que se observa. Além disso, ―A descrição etnográfica enquanto escrita do visível põe em jogo não só a atenção do pesquisador (...), mas um cuidado muito particular de vigilância em relação à linguagem‖ (LAPLANTINE, 2004, p. 10)51

. Ele destaca, ainda, a importância do ―ver‖ no Brasil, ―sociedade visual por excelência, na qual a comunicação cotidiana é pontuada por numerosos veja e olha, enquanto que um francês teria tendência a dizer tu sais (sabe)‖ (Ibid., p. 14). Mas, além disso, ―Através da vista, do ouvido, do olfato, do tato e do paladar, o pesquisador percorre minuciosamente as diversas sensações encontradas‖ (Ibid., p. 20). Assim, nada melhor que a perspectiva desse autor para pesquisar uma religião

do sentir, como é a UDV.

Laplantine (2004) afirma que ―nossos comportamentos, por mínimos que sejam (gestos, mímicas, posturas, reações afetivas), de fato não têm nada de ‗natural‘‖ (Ibid., p. 14). Assim, o conhecimento das outras culturas nos conduz ―especialmente a reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única.‖ (Ibid., p. 15). Essa concepção ―implica um descentramento radical, um esfacelamento da ideia que existe um ‗centro do mundo‘ e, correlativamente, um alargamento do saber e uma mutação de si

mesmo‖ (Ibid., p. 15, grifos meus). E, portanto, a tarefa da etnografia por excelência ou a

experiência ‗do campo‘

50 Este autor acrescenta que, ―Abordagens inovadoras como a do Construcionismo Social (GERGEN, 1985;

SHOTTER, 1993b), a Psicologia Narrativa (BRUNER, 1990, 1992; JOSSELSON; LIEBLICH, 1993), a Psicologia Retórica (BILIIG, 1987, 1991), a Psicologia Discursiva (EDWARDS; POTTER, 1991; HARRÉ; GILLET, 1994; HARRÉ; STEARNS, 1995), somente para nomear alguns rótulos, apresentam-se como alternativas variáveis que são promissoras também para a Psicologia da Religião‖ (BELZEN, 2010, p. 53).

consiste em nos espantar com aquilo que nos é mais familiar (aquilo que vivemos cotidianamente na sociedade em que nascemos) e tornar mais familiar àquilo que nos parecia inicialmente estranho e estrangeiro (os comportamentos, as crenças, os costumes das sociedades que não são as nossas, mas nas quais poderíamos ter nascido) (LAPLANTINE, 2004, p. 15). Ele sintetiza, mais adiante: ―Construímos o que olhamos à medida que o que olhamos nos constitui, nos afeta e acaba por nos transformar‖ (Ibid., p. 21, grifos meus). Há, assim, além de uma coincidência da valorização do sentir de Laplantine e da UDV, também a da valorização da transformação.

Esse autor destaca para a realização de uma etnografia a importância de se desenvolver ―a capacidade de olhar bem e de olhar tudo, distinguindo e discernindo‖ o que se observa e isso ―supõe uma aprendizagem (...) em ficar atento, mas também e, sobretudo em ficar desatento, a se deixar abordar pelo inesperado e pelo imprevisto‖ (Ibid., p. 18, grifos meus). Ele explicita que

o conhecimento dos seres humanos não pode ser observado à maneira de um botânico examinando uma folha ou de um zoólogo analisando um crustáceo, mas sim comunicando com eles e partilhando seus modos de vida de forma duradoura (...). O etnógrafo deve ser capaz de viver no seu íntimo a tendência principal da cultura que está estudando. Se, por exemplo, a cultura tem preocupações religiosas, ele deve rezar com seus hóspedes (Ibid., p. 22). Portanto, ―a etnografia é antes de tudo uma experiência física de imersão total‖ e o etnógrafo deve interiorizar a instituição estudada ―através das significações que os próprios

indivíduos atribuem a seus próprios comportamentos. É esta apreensão da sociedade, tal

como ela é apreendida do interior pelos próprios atores sociais com os quais mantenho uma relação direta‖ (Ibid., p. 23, grifos meus). Essa ―construção daquilo a que Marcel Mauss chamou o ‗fenômeno social total‘ (...) supõe a integração do observador no próprio campo

da observação‖ e é por isso que ―Não existe etnografia sem confiança mútua e sem intercâmbio, o que subentende um, itinerário durante o qual os parceiros em ação conseguem

se convencer reciprocamente a não deixar perder formas de pensar e atividades únicas‖ (Ibid., p. 24, grifos meus).

E, ―Jeanne Fravret-Saada mostra que ela começou verdadeiramente a observar a feitiçaria a partir do momento em que ela mesma se encontrou sendo ‗objeto de feitiços‘‖ (Ibid., p. 25). De forma distinta, mas também semelhante a essa antropóloga, que me

encontrei em meu campo de pesquisa: distinta porque em meu caso, no lugar da feitiçaria52 está a ―burracheira‖, mas, de forma semelhante a ela, me encontro fazendo parte do meu

campo de estudo.