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Hoasca: chá misterioso, enteógeno e sagrado

Hoasca é conhecido também como ―chá misterioso‖ (Jornal O Alto Madeira, 7 de outubro de 1967 apud BRISSAC, 2004, p. 581). E, segundo um depoimento que ouvi do Mestre Florêncio, que é o Mestre responsável pelo início da UDV em Manaus e é membro do Conselho da Recordação dos Ensinos do Mestre Gabriel (CREMG), este chá é conhecido pelos seringueiros como ―cinema de índio‖. E, como diz a pesquisadora Tatiana Carvalho

Para alguns pesquisadores a classificação do Vegetal como ―alucinógeno‖ é uma imprecisão, pois o mesmo não causa perda do contato com a realidade – como pressupõe o termo – mas sim um grau ampliado de percepção que permite a compreensão da realidade com maior clareza ou transcendência. Nesse sentido, pesquisadores da área de Etnobotânica têm proposto a classificação do Vegetal como ―enteógeno‖, ou seja, substância que ―gera uma experiência de contato com o divino‖ facilitando o auto- conhecimento e o aprimoramento pessoal. (CARVALHO, 2005, p. 18-19).

MacRae explicita que a palavra enteógeno é ―derivada de entheos, palavra do grego antigo que significa literalmente ‗deus dentro‘ e era (...) aplicada aos transes proféticos, (...), assim como aos ritos religiosos onde estados místicos eram experienciados‖ (MACRAE, 1992, p. 16). Ainda segundo Tatiana, sob o efeito da Hoasca

O movimento é de integração de todos os conteúdos da personalidade. Algo análogo ao processo de individuação da terapia junguiana, quando o sujeito é levado a ver a sombra e a luz dentro de si e a lidar com os conteúdos antes inconscientes. (CARVALHO, 2005, p. 28). Mas, segundo esta autora, para diferenciar de outros enteógenos, ―é melhor usar o termo ―estado expandido de consciência‖‖ e ela utiliza, ainda, ―o termo transe numinoso de interiorização. Transe em referência ao estado expandido de consciência, numinoso em referência ao termo cunhado por Rudof Otto para definir o encontro com o sagrado, e interiorização como o movimento que proporciona o autoconhecimento.‖ (Ib., p. 29).

E, segundo o psicólogo cognitivo Benny Shanon, ―a experiência da ayahuasca levanta sérias questões filosóficas. Entre elas há questões relacionadas às inquietações humanas e à natureza da cultura, à estética, ética, teologia e ao misticismo; muitas trazem enigmas e mesmo mistérios‖ (SHANON, 2003, p. 145).

Nesse artigo (que faz parte de uma investigação fenomenológica mais ampla que busca estudar a Ayahuasca por uma perspectiva psicológico-cognitiva), a respeito do conteúdo das visões do chá em diversos grupos9 e em diversos contextos, religiosos ou não, para ―informantes indígenas quanto para não-indígenas‖, veteranos ou iniciantes10

, ele afirma:

os seres divinos são comuns em todos os conjuntos de dados examinados aqui e que na grande maioria dos casos constituem uma das categorias de mais alta posição. Assim, o contexto religioso pode certamente ter seus efeitos, mas o material de cunho religioso que aparece nas visões não depende absolutamente de tal contexto (tampouco, aliás, de experiências prévias com a infusão) (SHANON, 2003, p. 132).

E, mais adiante, diz que ―as sessões caracterizadas pelos bebedores como suas melhores experiências tendem a incluir elementos de conteúdo religioso e/ou espiritual‖ (Id., p. 133). E continua, no resumo dos resultados e visão geral:

Sublinhe-se que tais conteúdos também aparecem em relatos da primeira sessão de iniciantes sem nenhum conhecimento ou contato prévio com a ayahuasca. Por vezes, há grande semelhança até mesmo entre descrições específicas de certos elementos de conteúdo, feitas por diferentes informantes. Além disso, tomados em sua totalidade, os elementos de

9 Esse quadro ―(...) se manifesta em relatos feitos por pessoas que não se conhecem mutuamente, vêm de

diferentes lugares e têm diversas origens pessoais e socioculturais‖ (SHANON, 2003, p. 135).

10 Shanon destaca que ―É significativo que essas categorias incluam elementos que não têm relação com a vida e

conteúdo mais comuns nos relatos parecem definir um quadro único e coerente, ligado, em grande parte, ao mundo do fantástico, do maravilhoso e do encantado. (Id., p. 135).

Em outro artigo ele diz que ―definitivamente não menos importante, estão as experiências espirituais e místicas. Estas sempre têm impacto profundo nos indivíduos que as experienciam e não raro resultam em transformações pessoais significativas‖ (SHANON, 2004, p. 686).

Ou seja, confirma o caráter enteógeno do chá (e, daí, o seu caráter de sacramento nas mais diversas culturas que o bebem) e das plantas professoras, que ensinam a respeito do Divino, religando as pessoas que o bebem a Deus. Shanon continua:

As cenas grandiosas impressionam bastante os bebedores, apresentam narrativas elaboradas e trazem mensagens a que os sujeitos atribuem importância. A sensação é que a experiência visionária não é meramente visual, mas também ideacional, e por ela algum ensinamento é transmitido à pessoa que vê (SHANON, 2003, p.137)

Ele sintetiza: ―Para mim, a ayahuasca é um instrumento para descobrir novos territórios inexplorados e desconhecidos da mente humana - seja a mente de um índio ou de um ocidental (ou seja, eu também me incluo)‖ (SHANON, 2004, p. 684).

1.1.1 O chá utilizado por povos nativos

De acordo com Dobkin de Rios, ―anterior à conquista europeia, dominação e aculturação da América do Sul, iniciada no século XVI, a hoasca foi largamente utilizada pelos nativos em rituais com propósitos mágicos e religiosos, presságios, bruxaria e tratamento de doenças‖ (Dobkin de Rios, 1972 apud GROB et al., 1996, p. 2). Seu uso pelo povo indígena da região, de acordo com Harner, tinha ―o propósito de libertar a alma do confinamento do corpo‖ e permitir ―uma variedade de experiências mágicas, incluindo o acesso à comunicação com os espíritos ancestrais‖; antropólogos que realizaram ―estudos etnográficos dos habitantes nativos da Bacia Amazônica descrevem fenômenos comumente induzidos pela hoasca, como visões‖ de animais, de ―pessoas distantes, cidades e paisagens, a sensação de ‗ver‘ o entrelaçamento detalhado de acontecimentos misteriosos recentes e a sensação de contato com o sobrenatural‖ (HARNER, 1973, p. 2).

O uso desse chá por povos nativos da América do Sul é uma tradição pré-histórica, como sacramento, ritual xamânico ou catalizador (FURST, 1976; BRAVO; GROB, 1989, GROB et al., 1996, p. 2) e também é considerado um grande ―medicamento‖, utilizado tanto no diagnóstico como no tratamento de doenças (SCHULTES; HOFMANN, 1992, GROB et al., 1996, p. 2). Segundo Hultkrantz, ―Durante um rito xamanístico, um visionário inspirado, o xamã, entra em transe profundo e, em nome da sociedade a qual serve e com a ajuda de espíritos protetores, estabelece relações com as entidades espirituais‖ (HULTKRANTZ, 1989 apud MACRAE, 1992, p. 18).

Já Andrade (1995), refere-se a essas práticas como ―fenômeno do chá‖: ―trata-se de um complexo místico-religioso dentro do qual encontramos todos aqueles que ingerem o chá ayahuasca, sob denominações diversas, em rituais de cura ou religiosos, tanto entre os indígenas em geral quanto entre os ‗civilizados‘‖ (ANDRADE, 2004, p. 594). Essa vertente indígena ele denomina genericamente ―religiosidade xamânica‖; e a não-indígena, também genericamente, ―religiosidade cabocla‖ (ib.).

1.1.2 Práticas religiosas ayahuasqueiras contemporâneas

O uso da hoasca para propósitos de cura e sustentação religiosa, durante os séculos de aculturação européia da Amazônia, emergiu de domínios exclusivamente tribais da floresta tropical e tem sido incorporado na estruturação da sociedade rural e urbana contemporânea, particularmente entre a população de mestiços indígenas do Peru, Colômbia e Equador. Identificada como um auxílio valioso em práticas populares de cura, a hoasca é ritualmente administrada pelos ―ayahuasqueros‖ para grupos cuidadosamente selecionados de pacientes (DE RIOS, 1972 apud GROB et al., 1996, p. 3).

Ainda segundo Grob et al. (1996), esses curadores do povo empregam similarmente a sacramental Hoasca com objetivo de diagnóstico e cura, presságios e como um caminho de acesso aos reinos do sobrenatural, aderindo integralmente aos modelos xamânicos praticados pelos povos aborígenes. ―Durante o século XX, o uso do hoasca tem crescido dentro do contexto de movimentos religiosos sincréticos modernos, particularmente no Brasil. Uma destas ‗igrejas‘, (...), é a União do Vegetal (UDV)‖ (GROB et al., 1996, p. 3).

Segundo Andrade (1995), que atribui a esses movimentos o nome de ―religiosidade cabocla‖, se ―compõe de quatro grupos: os nativos, não-indígenas; o Santo Daime; as ‗Barquinhas‘; e a União do Vegetal‖ (ANDRADE, 2004, p. 594). É desta que trato mais

especificamente neste capítulo; e discutirei em relação aos três primeiros grupos nesta tese quando se fizer necessário.