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2. AVALIAÇÃO DA QUALIDADE E EFICIÊNCIA HOSPITALAR NO SUS

2.3 A qualidade em saúde no cenário internacional

A preocupação com a qualidade nos serviços de saúde é antiga, fomentando iniciativas por parte dos governantes no sentido de proteger os usuários. A primeira lei criada a fim de garantir qualidade nos serviços de saúde surgiu cerca de 200 anos a.C., a qual é conhecida como o Código de Hamurabi, notável imperador Babilônico. Essa lei tinha como princípio “não causar mal a ninguém”. Na mesma linha, está o famoso juramento de Hipócrates, datado de 400 anos a.C, destacando como fundamento da atuação médica “primeiro não causar dano” (QUINTO NETO et al., apud PORTELA e SCHMIDT, 2008).

As demais iniciativas voltadas para a qualidade em saúde conhecidas são historicamente mais recentes e datam do século XVIII. O médico Ernest Amory Codman, cirurgião do Hospital Geral de Massachusetts, hospital de ensino da Universidade de Harvard, propôs, em 1910, um sistema de padronização dos resultados finais das intervenções médicas. Tendo por base essa padronização, quando o tratamento não fosse efetivo, o hospital buscaria a causa e, consequentemente, modificaria o padrão anteriormente estabelecido, a fim de aumentar o êxito em casos similares. Esse profissional ajudou a fundar o Colégio Americano de Cirurgiões e a implementar, num momento posterior, um programa elementar de padronização nos hospitais (NOVAES, 2007).

Em 1912, Codman (1914) propôs pela primeira vez o termo quality of care. Para ele, a observação de tudo o que ocorre durante e após o processo de tratamento, é a melhor maneira de se avaliar os serviços de saúde.

Outra iniciativa importante voltada para a qualidade em saúde nos Estados Unidos foi o chamado Relatório Flexner sobre educação médica, datado de 1910. Esse relatório apresentou os resultados de uma investigação profunda dos cursos de medicina e dos hospitais existentes na época, além de propor medidas visando sua melhoria. A repercussão do relatório causou o fechamento de escolas e a criação de normas para o funcionamento de hospitais e qualificação da equipe funcional (TREVISO et al., 2009).

Em 1917, o Colégio Americano de Cirurgiões propôs o estabelecimento dos chamados “Padrões Mínimos para Hospitais”, criando o chamado Programa de Padronização Hospitalar (PPH). Numa das avaliações realizadas em 1918, visitas a 692 hospitais constataram que apenas 89 atendiam aos parâmetros estabelecidos como padrões mínimos. Novas avaliações

foram realizadas e em 1950 o número de hospitais aprovados chegou a 3.200 (NOVAES, 2007).

Diante da impossibilidade de continuar desenvolvendo suas atividades relacionadas à qualidade em saúde, o Colégio Americano de Cirurgiões uniu-se à Associação Médica Americana, Associação Médica Canadense, Colégio Americano de Clínicos e Associação Americana de Hospitais, criando em 1950 a Joint Commission on Accreditation of Hospitals, hoje denominada Joint Commission on Accreditation of Healthcare Organizations - JCAHO (TREVISO et al., 2009).

Como é possível notar diante do exposto, as iniciativas voltadas para a qualidade em saúde estavam concentradas quase que exclusivamente nos Estados Unidos, tido como o berço dos teóricos da qualidade. O interesse pela qualidade deu-se, internacionalmente e com maior ênfase, após a segunda guerra mundial, em virtude da escassez de recursos, tornando-se necessário produzir mais com menos. Esse movimento se estruturou inicialmente no âmbito industrial, nos Estados Unidos e chegou ao seu ápice no Japão, fazendo surgir diversos pensadores, os quais influenciaram também os serviços de saúde.

Para aplicar as teorias clássicas da qualidade aos serviços de saúde havia um grande desafio: adaptar o que foi criado para as indústrias aos serviços de saúde. Para Malik e Schiesari (1998), a transposição do modelo industrial da realidade americana ou japonesa para a brasileira requer bastante conhecimento a respeito das diferenças, vantagens e desvantagens, tornando-se ainda maior esse desafio ao aplicar o modelo ao universo dos serviços de saúde.

Ao discorrer sobre as diferenças entre o modelo concebido para as indústrias e o modelo a ser aplicado aos serviços de saúde, Donabedian (1993) ressalta as diferenças existentes nos seguintes aspectos: natureza da qualidade, escopo da qualidade, natureza do problema da qualidade, estratégias de garantia e melhoria da qualidade e métodos de monitoramento da qualidade.

Destacam-se para este trabalho as diferenças relativas à natureza da qualidade (quadro 1), tendo em vista o setor em que está sendo considerada: na industrial ou na assistência à saúde.

Ao comentar sobre as dificuldades em se implantar programa de qualidade em serviços de saúde, Gurgel Júnior e Vieira (2002) destacam as suas especificidades. Dentre elas, os autores ressaltam que para esse tipo de serviço, as leis de mercado, como as leis da oferta e da procura, por exemplo, não se aplicam em virtude de sua natureza não mercantil.

Quadro 1 – Diferenças relativas à natureza da qualidade

Descrição Modelo industrial Modelo da Assistência médica Qualidade Aquilo que o consumidor

deseja e compra

Aquilo que é bom para o consumidor, definido por ele e pelo prestador de serviços

Interação cliente/fornecedor Pouco relevante Relação médico-paciente complexa Consumidor Coprodutor de qualidade via

uso

Idem, com maior peso Baixo Custo Componente da qualidade Menor importância

Otimização e equidade Menor importância Grande importância, dependendo de políticas e de sua implementação Fonte: Donabedian (1993)

Ao comentar sobre as dificuldades em se implantar programa de qualidade em serviços de saúde, Gurgel Júnior e Vieira (2002) destacam as suas especificidades. Dentre elas, os autores ressaltam que para esse tipo de serviço, as leis de mercado, como as leis da oferta e da procura, por exemplo, não se aplicam em virtude de sua natureza não mercantil.

Além disso, o cliente tem dificuldade em escolher entre opções de consumo, visto que o mesmo em geral é leigo, não tendo capacidade de julgar o tratamento proposto. Na relação médico-paciente, os autores questionam até mesmo a denominação de cliente dada ao paciente, pois para tal é necessário cumprir alguns requisitos básicos: primeiramente, um cliente tem que ter o direito de escolha sobre o que lhe é oferecido, o que não ocorre nos serviços de saúde. O segundo requisito refere-se ao tipo de contrato entre o indivíduo e quem vai lhe oferecer o produto ou serviço. Tal contrato deve ter fundamento comercial, o que não ocorre em hospitais públicos, já que os serviços são mantidos pelos impostos, caracterizando- se num contrato social (GURGEL JUNIOR e VIEIRA, 2002).

Os conceitos de qualidade nos serviços de saúde podem variar dependendo de vários fatores. Não é fácil definir o que seja um bom serviço de saúde, visto que isso depende dos padrões estabelecidos em cada país pelas agências reguladoras. No entanto, não seria demais trazer à luz alguns conceitos de qualidade aplicados especificamente aos serviços de saúde.

No ano de 1990, segundo Zanon (2000, p. 14), a Joint Comission on Accreditation of Health Care Organization (JCAHO) definiu a qualidade da assistência médico-hospitalar como “o grau segundo o qual os cuidados com a saúde do paciente aumentam a possibilidade da desejada recuperação do mesmo e reduzem a probabilidade do aparecimento de eventos indesejados, dado o atual estado de conhecimento”.

O foco dessa definição está na recuperação do paciente e na redução da possibilidade de ocorrência dos eventos indesejados, a partir do conhecimento disponível. É interessante o

destaque para o estado do conhecimento, visto que podem ocorrer situações novas em virtude da possibilidade do surgimento de novas tecnologias e novas doenças ao redor do mundo.

Para Novaes e Paganini (apud FELDMAN et al., 2005, p. 214), qualidade é entendida como

[...] um processo dinâmico, ininterrupto e de exaustiva atividade permanente de identificação de falhas nas rotinas e procedimentos, que devem ser periodicamente revisados, atualizados e difundidos, com participação da alta direção do hospital até seus funcionários mais básicos.

Esta definição destaca a qualidade como um processo que deve ser contínuo, realizado a fim de eliminar as incorreções e que conte com a participação de todos os membros da organização de saúde.

Segundo Donabedian (1980), qualidade é o cumprimento de requisitos básicos de segurança e processos, garantindo a conformidade do atendimento.

Essa definição de Donabedian relaciona-se com sua abordagem de análise da qualidade em saúde. Conforme já apresentado, o quadro de referência de Donabedian (1980) fundamenta-se em três componentes da qualidade: estrutura, processo e resultado. Segundo Gonzalez (2009), Donabedian é considerado o fundador da garantia da qualidade nos serviços de saúde e sua abordagem tornou-se clássica nas avaliações de qualidade. Dada a sua aplicabilidade e relevância, dificilmente são encontrados artigos na literatura que não se baseiem ou citem, com destaque, o trabalho desse autor (REIS et al., 1990).

Como é possível perceber, o surgimento e as primeiras iniciativas voltadas para a qualidade em saúde concentravam-se no cuidado médico no âmbito dos hospitais. Para Azevedo (1991), os esforços pioneiros dos Estados Unidos na avaliação de serviços de saúde, eram voltados inicialmente e exclusivamente para o trabalho médico, sendo esta avaliação realizada por pares, num contexto predominantemente qualitativo, subjetivo e carente de estrutura.