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A questão identitária: diálogos e lugares de fala

No documento PASSAPORTE PARA A AMERICANIDADE (páginas 71-76)

CAPÍTULO II AMERICANIDADE: MODERNIDADE E IDENTIDADE

2.3 A questão identitária: diálogos e lugares de fala

A busca ou a perda da identidade afetam quase todos os indivíduos e sociedades. Na sua Teoria da Personalidade, Erich Fromm afirma que “a identidade é uma necessidade afetiva, cognitiva, e mesmo ativa”. Segundo ele, ela se expressa sentimentalmente e, ao mesmo tempo, em termos da consciência individual e social. Afirma que é a partir dela que o indivíduo faz uso da liberdade.

A questão identitária está relacionada, portanto, com a história de vida de cada cidadão. Afeta e é afetada pela idéia que fazemos do mundo e do lugar em que vivemos, seja uma identidade individual ou coletiva. Indivíduos, grupos e culturas vivem sistematicamente conflitos de identidade.. Podemos nos entender identitariamente como

brasileiros ou como americanos, mas, em geral, nossa identidade reflete o espaço até onde nossa cidadania – lugar de origem, raízes culturais e familiares, direitos e deveres - se estende.

Uma identidade coletiva é, ao mesmo tempo, comum com outros indivíduos e, concomitantemente, diferente. Apesar dessa individualização identitária, seja de uma perspectiva pessoal ou coletiva, ela tanto pode incluir outras representações identitárias, quanto ser incluída em outras. O caráter identitário valoriza e fortalece culturalmente as relações sociais, mas também pode contribuir para fragmentá-las e até segregar comunidades ou etnias específicas.

Toda identidade pressupõe alteridade e mudanças. Alteridade, porque permite perceber a identidade a partir do outro, Mudanças, porque apresenta um dinamismo referencial próprio, segundo o contexto histórico em que está inserida. Desse antagonismo, resultam os conflitos.

Ansaldi identificou, por exemplo, “alteridade ao contrario” na chegada dos espanhóis à América.

[…] “eso que descubrió Colón” se llamará América, pero el “descubrimiento” no incluyó a sus habitantes, quienes no serán admitidos” como un sujeto que tiene los mismos derechos que uno mismo , pero diferente(Todorov, 1987:57) . Los pobladores autóctones devinieron – por la invasión, conquista y colonización europeas – salvajes, bárbaros y definitivamente índios, expresión genérica creada pa identificar uniformemente – de Alasca a Tierra del Fuego – a quienes se conocían e definían con diferenciados nombres[…] (ANSALDI, 1997 .p. 30).

Sem compreender os povos que habitavam a terra que acabavam de encontrar, os colonizadores espanhóis, por oposição à sua própria identidade européia, que acreditavam, supõe-se, no limite do processo civilizatório da época do descobrimento da América, e por antagonismo à sua cultura, chamaram-nos generalizadamente de “’índios”, nominação que, na sua concepção, carregava consigo uma força semântica de representação de pessoas e comunidades historicamente atrasadas em relação aos seus usos e costumes, a quem atribuíram sinonimicamente adjetivos como “bárbaros” e “selvagens”. Esses povos eram simplesmente os

[...] abipones, achuares, aimaras, apaches, araucanos, arawaks, aucas, astecas, bayás, botocudos, caddoanes, calchaquíes, calchines, calpules, calumas, camahuas, canacos, canelos, caracarás, caracas, carajás, carapachayes, carapachos, caiacos, caribes, carios , cataubas, caiapas, cetés, siaguas, cocamas, cofames, comanches, comechingones, corondas, chaimás, charcas,

charruás, chibzhas, chichimecos, chimués, chiriguanos, chontales, chucumecos, chunchos, gandules, guaraníes, huaoranis, ieoqueses, gíbaros, lacandones, mapuches, mayas, maipures, matacos, misquitos, mochicas, nahuas, napos, omaguás, onas, orejones, octavalos, paparos, patagonios, payaguas, pawnees, pueblos, puelches, puruhaes, quechuas, querandíes, quichés, quijos, quibaiás, salasacas, salavirones, saraguros, secoyas, shuaras, sionas, sioux, taínos, tamanacos, tapués, tetetes, tobas, toltecas, tupíes, wankas, xavantes, xocléng, iaganys, yunbos, entre tantíssimos.(ANSALDI, 1997, p. 30 ) .

É impossível reconhecer uma identidade sem reconhecer a alteridade que a apresenta. Por isso, com o Descobrimento, tem início também um grande massacre das populações americanas pelos espanhóis descobridores e colonizadores. O não reconhecimento da identidade cultural daqueles povos, representados por diferentes nações ou comunidades – mais de 400 na América - tornou-se numa ameaça, criada pelos europeus, para eles mesmos, transformando-se na violência que desfigurou sua organização comunitária, seus mitos e religiões, segundo Rojas Mix (MIX, apud ANSALDI, 1997).

[…] la aventura de América comienza con grandes rupturas de identidad. Para someter al aborigen, la política de colonización tuvo por función borras la[s] cultura[s] originaria {s}. eso se expressava en los dos grandes temas del discurso del conquistador: civilizar y evangelizar.[...] Los aztecas, los mayas, los aymaras… no sólo debieran utilizar otro language para comunicar-se , sino que incluso debieron adoptar nuevas formas para expresar su sensibilidad. De ahí nasció el colonialismo cultural […]. Para ser indios tuvieron de dejar de ser aztecas; para ser súbditos, cesar en la obediencia a sus reyes. Non ser más quienes eran. (MIX, apud ANSALDI, 1997; p. 31).

A identidade está, portanto, no centro da formação de uma personalidade individual ou comunitária. Ela evolui, está em constante mudança, mas sua afirmação ou diferenças, sempre presentes, são sistematicamente buscados em imagens, fragmentos, recordações, histórias e nas relações rituais da vida cotidiana. Mas na América, a Independência “non resolvió ninguna de estas incertitumbres”. Segundo Rojas Mix, as Independências criaram outras incertezas identitárias:

[...] al definir limites y fronteras que separaron brutalmente a pueblos que se sentian uno desde la aborada de los tiempos: los guaranies fueron repartidos entre Paraguay, Argentina,y Brasil;

los aymaras entre Bolívia, Peru e Chile; los mapuches entre Chile e Argentina; como los onas e los yaganes; los quéchuas fueron declarados ciudadanos del Perú, Bolívia, Argentina e Chile [...] El índio, como se lê llamó desde entonces para consumar la negación, tuvo que olvidar quién hábia sido, sin llegar tampoco a saber quién era.(MIX apud ANSALDI, 1997; p. 30).

Alguns colonos e jesuítas tinham uma visão dupla dos silvícolas: identificavam- nos como um ser humano, […] poseedores de los mismos derechos que los conquistadores [...], porém diferentes “en términos de superioridad e inferioridad,

siendo sempre inferiores los conquistados […].” Por meio de determinadas

representações e práticas sociais – as festas, o trabalho, as liturgias religiosas e da repressão violenta – os índios iam assimilando os valores dos conquistadores.

O delineamento da identidade envolve ajustes internos (individuais) e externos (sociais), bem como novos saberes, e implica numa auto-avaliação e na conformação de um processo de auto-estima. A alteratidade terminou por se dar numa relação entre espanhóis de comunidades originais, mas significando a negação do outro (p.30).

Assim, a busca de matrizes identitárias para os povos que habitam o espaço geopolítico do chamado Cone Sul, refletidas num de seus lugares de fala - o Mercosul - implica em penetrar em alguns episódios da história dos povos originários da América, para tentar desenterrar matizes da originalidade desses povos que nos antecederam. Esses matizes podem indicar vestígios de uma ancestralidade identitária que pode refletir o sentimento interno de unidade. Identificados, esses traços comuns poderão permitir a sua reconstrução ou a reconfiguração de uma visão mais homogênea das relações com o mundo, de maneira singularizada e diferenciada do outro.

Esse resgate não significa uma volta ao passado, mas de uma forma dinâmica e criativa fazer emergir afinidades e laços identitários que possam ser percebidos como marcas comunitárias comuns na região do Mercosul. Assim, chega-se a uma identidade como totalidade, reconhecida pela sua universalidade, construída sobre partes e subsistemas culturais.

Contudo, o reconhecimento e o respeito universal passam, primeiro, pela sua aceitação a nível local ou regional. Além do que “Tener identidad es tener dignidad en las relaciones humanas [...]”, escreve a pesquisadora mexicana María de la Luz Casas Pérez. (PÉREZ, 2007).

2.3.1 Caos identitário

“Tupi or not tupi”: desde que os nativos da América começaram a perceber que a colonização européia os havia despojado dos seus valores e crenças e que, por analogia, a origem americana os colocava numa posição socialmente inferior em relação aos colonizadores, afloraram os primeiros indícios de uma ambigüidade identitária entre os

povos do continente que se estenderia por duzentos anos.

Os tupis, os tamoios, os guaranis, os mapuches, fizeram guerra contra a invasão das suas terras pelo colonizador mas, por outro lado, deixaram na cultura um flanco a descoberto para os religiosos. Colonizadores e religiosos deram uma enorme contribuição, desde a descoberta, para o desmantelamento gradual da estrutura tribal, social e cultural dos grupos nativos, seja pela força, pelas idéias, por meio da miscigenação e mesmo pelo suborno. Fragmentados em pequenos grupos e até civilizações, na sua ingenuidade, os índios foram vagarosamente incorporando a idéia da supremacia espanhola ou portuguesa no Continente, demonstrada, por exemplo, nas Guerras Guaraníticas, na revolta dos tamoios contra os portugueses, na perseguição aos charruas, na insurgência conduzida no Vice- Reinado do Peru pelo índio Tupac Amaru e dezenas de outras, em que todos terminaram massacrados pelas armas dos colonizadores.

De tal forma foram subjugados que, quando aconteceu a Independência , já no início do século XIX, havia se passado trezentos anos de dominação branca, de maneira que a luta de libertação da América foi toda conduzida por descendentes dos europeus que aqui haviam fincado raízes a partir de culturas e práticas sociais transplantadas, e que tinham, portanto, interesses a preservar. Os índios remanescentes foram usados para a legitimação de um modelo cultural híbrido na base do qual estava a exploração das riquezas econômicas da terra e do trabalho. Refletindo esses interesses, as lutas pela independência geraram autonomias geopolíticas regionais, ancoradas no prestígio dos caudilhos revolucionários e, com elas, uma fragmentação identitária.

Num primeiro momento então, os nativos tiveram a sua identidade violentada; no seguinte foram deserdados pela divisão e redistribuição de suas riquezas, seus territórios e nações. Julio César Melatti (MELATTI, 1970) mostra que os povos originais da América tiveram quase uma origem comum, embora remota. Couto de Magalhães (1837-1898) observava que as línguas de diferentes grupos, quando confrontadas, pareciam se encaixar em vários aspectos, semânticos ou rituais. O processo de colonização na América, dividido entre espanhóis e portugueses, desagregou grupos, famílias e territórios, destruiu a maioria das manifestações, tradições e práticas sociais que possibilitavam uma visão de conjunto que hoje precisa ser reconstruída.

O caos identitário instalado pela colonização espanhola e portuguesa em algumas regiões da América, sobretudo no Sul, somado à miscigenação autônoma entre brancos, índios e também escravos, tornou quase impossível a configuração de um perfil identitário dos povos da América a partir de uma derivação do nome dado ao próprio Continente, devido à instabilidade de nações e territórios, à heterogeneidade cultural e à quantidade de línguas nativas, confrontando entre si e com aquelas transpostas para o continente pelos colonizadores, jesuítas e depois pelos imigrantes..

Seria extremamente difícil refazer na América o caminho do “ideologema” da americanidade (BERND, 2002, p.9-26) retraçando, segundo a pesquisadora, deslocamentos, transferências culturais, o que faz com que ele seja às vezes reivindicado, outras rejeitado. Por outro lado, pensar ou propor a adesão a uma identidade comum, com a junção das grandes culturas ou a interpenetração das identidades, significaria romper com referenciais étnicos, lingüísticos e nacionais; seria quase um etnocídio.

No documento PASSAPORTE PARA A AMERICANIDADE (páginas 71-76)