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Imaginário europeu sobre a América

No documento PASSAPORTE PARA A AMERICANIDADE (páginas 66-71)

CAPÍTULO II AMERICANIDADE: MODERNIDADE E IDENTIDADE

2.2 Imaginário europeu sobre a América

A descoberta das civilizações americanas, sem quaisquer vínculos com as culturas greco-romana, egípcia ou indo-chinesa que serviam de modelos para a sociedade européia, provocaram um impacto forte sobre a visão de mundo dos europeus. O relato dos descobridores e dos exploradores sobre a natureza e as potencialidades da terra descoberta, o contato com valores e costumes dos índios, com as peças da indústria dos ameríndios e com os próprios índios, que chegaram a ser levados para a Europa para servir de comprovação da existência de um novo mundo, a iconografia multifacetada, tudo concorreu para a disseminação de fantasias, histórias e idéias sobre a América e seus habitantes, gerando um imaginário polêmico e enviesado.

A primeira descrição da terra recém descoberta veio das tripulações das frotas dos descobridores e conquistadores e concentraram-se, especialmente, nas descrições dos hábitos, costumes, atividades e realizações individuais e comunitárias dos habitantes. Assim, a América, chamada num primeiro momento de Índias Ocidentais, ganhou no imaginário europeu a sua caracterização como um Novo Mundo, embora seus habitantes fossem apelidados de índios. Os relatos de viagem contemplavam, na sua maioria, um mundo da barbárie ou uma “visão do paraíso”.

Em carta datada de 1º de maio de 1500, endereçada ao rei D. Manuel de Portugal, descrevendo a terra recém descoberta, Pero Vaz de Caminha, membro da frota de Cabral, assim descreveu os primeiros contatos com os índios:

[...] que quando o batel chegou aa boca do rrio heram aly xbiij ou xx homees pardos todos nuus sem nhuua cousa que lhes cobrisse suas vergonhas [...] E huu deles lhe deu sombreiro de penas de aves compridas [...] a feiçam deles he seerem pardos maneira de avermelhados de boos rrostros e boos narizes bem feitos [...] traziam ambos os beiços de baixo furados e metidos por eles senhos osos de osso bramcos [...] os cabelos seus sam coredios e andava trosqujados [...] eles (índios) nam lavram, nem cryam. Nem comem, senão desse inhame, que aqui a muiito e dessa semente e fructos, que as árvores de si lançam¨[...] de que tiro seer gente bestial e de pouco saber e por ysso sam asy squjvos. Eles porem co tudo anda muyto bem curados e muyto limpos e naquilo me parece ajmda mais que sam coma aves ou alimareas moneses que ljhes faz hoaar mjlhor pena e mjlhor cabelo que aas mansas. Porque os copor seus sam

tam limpos e tam gordos e tam fremosos (CAMINHA,apud

CASTRO, 2003, p.29-67).

As primeiras representações do Novo Mundo surgem, portanto, cheias de surpresa, preconceito e discriminação, que vão servir para sustentar o maniqueísmo da existência de um oposto, que foi chamado de Velho Mundo – a própria Europa - como detentor da riqueza e da experiência civilizatória.. Como a noção de cultura abriga também conhecimentos, idéias, crenças, tipo de organizações sociais, localizadas nos níveis superestruturais do conhecimento, as representações da experiência humana desenvolvida

pelos europeus recebeu, num segundo momento, o impulso do discurso de comerciantes, religiosos e viajantes como Hans Staden (1549), Jean de Léry (1583), Saint Hilaire (1816- 1822), Charles Darwin (1832) e intelectuais que nunca estiveram na América como o abade e enciclopedista franco-prussiano Corneille De Pauw (1739-1799), que, segundo Andrade (1997), não acreditava na bondade natural do homem, defendida por Rousseau (1712-1778), segundo o qual o homem só podia se desenvolver material e espiritualmente vivendo em comunidade.

No imaginário de De Pauw, o homem americano era ambiguamente “crianças

incorrigíveis”, imaturo e também degenerado (ANDRADE, 1997:23). Suas representações

sobre a inferioridade os habitantes da América atraíram outros adeptos entre religiosos protestantes e católicos, gerando, por outro lado, uma ampla polêmica, da qual participaram também, mais tarde, intelectuais criollos e europeus. Enfim, as representações da América que corriam pela Europa enalteciam o índio e, ao mesmo tempo, o denegriam, com base nos valores da época.

Ao comparar as descrições do Brasil (América), Heidemann (apud ANDRADE, 1997, p. 34 a 37)) mostra como foi formatada a idéia de Brasil dentro do Novo Mundo. Os primeiros relatos causaram estranheza e curiosidade, contribuindo para atrair viajantes estudiosos como Hans Staden (1549), que vai conviver – e até ser preso - com os índios tupinambás e que, ao falar dos costumes indígenas no cotidiano, destaca que “sua maior honra é prender e matar muitos inimigos [...]. Não há divisão de bens entre eles. [...] Suas riquezas são penas de pássaros”. Jean de Léry (1557), que integrou a missão colonizadora calvinista de Villegagnon, fez o seguinte relato:

Não abominemos demasiado a crueldade dos selvagens antropófagos [...] guerreiam não para conquistar países e terras[...] não pretendem tampouco enriquecer-se com despojos dos vencidos[...] Confessam eles próprios serem impelidos por outro motivo: o de vingar pais e amigos presos e comidos no passado[...] (apud ANDRADE, 1997);

Fernão Cardim (1583), padre português que dirigiu a Companhia de Jesus, amenizou um pouco dizendo que: “[...] todos andam nus [...] parece que estão no estado de inocência [...] O clima do Brasil é temperado de bons delicados ares, donde os homens vivem até cento e mais anos [...]. Costumam estes índios tratar bem as mulheres [...] Antes de comer nem depois não dão graças a Deus, nem lavam as mãos antes de comer, e depois de comer as limpam aos cabelos, corpo e paus.” (CASTRO, 1985).

Georges-Louis Leclerc (meados do século XVIII), naturalista francês, descreveu animais do Novo Mundo, observando que eles “são inferiores ou mais débeis”. O Príncipe Maximiliano de Wied Neuwied (1815), também ornitologista via, conforme Andrade (1997):

“a rude insensibilidade é um traço predominante do caráter dos selvagens. É uma conseqüência necessária do modo de vida, porque é o mesmo que tornam o leão e o tigre sedentos de sangue [...] a vingança, um certo grau de inveja e um indomável amor à liberdade e à vida nômade lhe são peculiares[...]”.

A propósito das representações simbólicas da América, surgidas, em sua maioria, dos tableaux vivants, organizados para a recepção ou coroação de reis ou cerimônia da nobreza, com desfiles e procissões, numa delas, na Antuérpia, em 1564, foram apresentadas quatro moças vestidas alegoricamente, representando os quatro continentes: a Europa aparecia como uma imperatriz, carregando um orbe e um cetro; a Ásia era apresentada com roupas pesadas sobre o corpo; a África, uma negra quase desnuda, tendo ao seu lado a escultura de um sol abrasador; e a América, uma indígena, coberta de penas, segurando uma flecha e um arco, acompanhado de um papagaio, um braço ou uma perna humana decepados “em clara alusão ao canibalismo” (TEIXEIRA LEITE, 1996, p.44).

Para Auguste de Saint-Hilaire (1816 a 1822): “No Brasil trabalha-se pouco nos dias comuns, e nos feriados não se faz nada [...]. Todos consideram cumpridos os seus deveres cristãos ao assistirem a uma missa comum [...]”; para Jean Baptiste Debret (1816), que participou da missão artística contratada por D.João VI para fundar a Academia de Belas Artes no Brasil: “[...] Exteriormente o índio se apresenta como uma mistura de tristeza e apatia [...] repentinamente, movimentos de uma alegria convulsiva que ele manifesta por meio de gritos, cantos, contorções e saltos.” (ANDRADE, 1997).

Charles Darwin (1832), naturalista, na viagem pela América do Sul, da qual surgiu a Teoria da Evolução: “Era impossível desejar algo mais encantador do que passar assim algumas semanas em país tão magnífico [...] clima fértil, fervilhando de vida, as atrações são numerosas que mal se pode dar um passo”; Sir Richard Burton (1867), explorador, escritor e orientalista britânico, membro da Companhia das Índias:”. As leis brasileiras, ao contrário das nossas (inglesas), protegem muito mais a vida e a integridade física do que a propriedade [...].”

Aparentemente, ninguém fez tanto mal à América quanto o naturalista Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788), que declarou serem as espécies animais do Novo Mundo “inferiores ou mais débeis” e que descreveu também da “frigidez

sexual entre as características da América”; Montesquieu (1689-1755), que forjou a idéia “da dificuldade da manutenção de instituições livres em climas quentes” e a de que “as temperaturas quentes tornavam os homens preguiçosos e desprezíveis; e o abade franco- prussiano Corneille De Pauw com sua tese da “inferioridade dos índios da América”: A relação natural de escravidão descrita por Aristóteles (384-322) para diferenciar gregos e bárbaros, retomada por Tomás de Aquino (1225-1274), vai ser tomada por Juan Ginés Sepúlveda (1490-1573) para estabelecer uma diferença entre espanhóis e índios (ANDRADE, 1997: 24-25).

No momento de toda essa discussão centrada no desenvolvimento das ciências naturais (Organicismo Naturalista) e da questão das raças (Evolucionismo), o naturalista Humboldt (1769-1859) questionou a preocupação protecionista dos espanhóis (Las Casas, Quiroga) com os índios, dizendo que isso servia para confirmar as teses daqueles que proclamavam a sua debilidade como raça.. Significava que a própria legislação protetora das populações nativas ajudavam a fixar a idéia da fragilidade física, mental e moral do homem da América, ao deixar evidente a necessidade da tutela do Estado para essas populações indígenas.

Enfim, segundo Dinair Andrade, foram três séculos de discussão de teorias, axiomas, hipóteses, leis, especulações sobre o índio americano “arrastados e impelidos pela torrente impura até as areias dos novos tempos” (ANDRADE, 26).

A polêmica se deu até a independência dentro do próprio Velho Continente entre europeus simpatizantes da América ou mesmo criolos que viviam na Europa. A partir da independência, os brios nacionais começaram a se levantar. Veio a reação dos intelectuais americanos. Contudo, as contestações, especialmente às matrizes rígidas do discurso racionalista de De Pauw e a de Buffon, eram genéricas e apresentavam mais agressividade contra o Velho Mundo que um conjunto de reflexões sistemáticas capaz de sustentar pontos de vista claros em defesa da América (ANDRADE, 1997, p. 27).

Contestações às teses de Buffon e de De Pauw e outros absurdos pretensamente científicos partiram de intelectuais de várias regiões da América: Peru - Dávalos (1758- 1821), Pavón (1755-1833), Condemarin (1854); Colômbia – Caldas (1771-1816); Chile – Salas (1796); Paraguai – Iturri (1818); México – Teresa de Mier (1763-1822); Buenos Aires – Moreno (1777-1811);821) . Publicada em Buenos Aires (1818) e no México (1821), a Carta Crítica do paraguaio Francisco Iturri, contestando as teses de Buffon, de De Pauw e do espanhol Muñoz, foi considerada como o primeiro “manifesto de americanismo”. O hondurenho Cecílio del Valle(1880-1834), responsável pela Declaração de Independência da América Central (1821) questionou , por sua vez, as vantagens trazidas para a América pelo sistema político espanhol , atribuindo a eles o atraso da Hispaño-América. Segundo ele, os vícios e leis humanas anulavam os benefícios das tão decantadas leis naturais. Cecílio del Valle manifestou-se antes do presidente norte-americano James Monroe (1751-1831) sobre a interferência dos europeus nos assuntos da América e, com Bolívar (1783-1830) propôs a criação de uma federação de nações americanas. As preocupações com a questão racial terminaram, contudo, levando à “descoberta do mestiço da América” (ANDRADE, 1997, p.28-35).

Ao longo de toda essa discussão, as descrições e representações da América e de seus habitantes no campo da ciência, da política, das trocas comerciais e pela incipiente

literatura americana (BETTEL, 1991), terminou por forjar de fato um imaginário sobre a América, gerando já não apenas uma curiosidade ou um interesse pela América, mas uma matriz identitária culturalmente híbrida e mestiça, que não significava exatamente uma progressiva superposição darwiniana de raças e culturas, e sim um entrecruzamento cultural e racial, forjado no embate entre as culturas nativas e os processos civilizatórios, dos quais participaram intelectuais de todo o continente e da Europa.

Não está descoberta ainda a americanidade, enquanto uma representação da cidadania americana. Mesmo porque existem, no mínimo, duas Américas: a Ibero-América e a América Anglo-Saxônica, cujos caminhos apresentavam-se diferenciados. A idéia da latinidade da América ou hispano-americanidade como uma decorrência, delimitando uma marca identitária dos povos da América, surgiu por iniciativa dos franceses, na sua ânsia de ter privilégios também na América, ainda em plena era napoleônica (MAGNOLI, 1997). Os espanhóis responderam imediatamente, tratando de cultivar a idéia da hispano- americanidade com uma forma de proteger seus interesses hegemônicos, inclusive dentro do continente, já em plena revolução republicana na América, e contra as pretensões territoriais e comerciais dos norte-americanos e ingleses.

Ocupada pelos colonizadores, com a estrutura social das populações desmantelada pelos conquistadores, as populações americanas experimentavam a insegurança da hibridização cultural e a falta de uma identidade que conduzisse ao próprio reconhecimento e à sua inserção na comunidade internacional. A literatura americana ainda rústica (BETHEL, 1991) vagava sem rumo pelo cotidiano ou reproduzia a visão tendenciosa de ex-governantes sobre o próprio papel na história regional..

Nesse cenário surgiram na América dois intelectuais preocupados com a confusa realidade social e política da América e com uma identidade capaz de distinguir o homem americano no universo das cidadanias que povoavam o mundo conhecido. Vão se apresentar como precursores da idéia da cidadania americana, que eles vão chamar de americanidade. Trata-se dos jornalistas Sarmiento (1811-1888), de origem argentina, e José Martí (1853-1895), cubano. O primeiro publicou em 1841, no jornal El Mercúrio, um trabalho intitulado “La publicación de libros em Chile”, e o segundo, um ensaio chamado “Nuestra América” no El Partido Liberal. Embora nascidos em épocas diferentes, eles ainda se cruzaram em vida.

Preocupado em criticar o ditador Juan José Rosas, Sarmiento, que esteve exilado no Chile, estudou e descreveu a realidade argentina numa série de artigos editados pelos jornais locais e que se transformaram em dois livros: “Civilización e Barbárie” e “Vida de Juan Facundo Quiroga”, em que mostra o domínio do campo sobre a cidade, o atraso da sociedade, as tendências conflitantes, refletindo um pensamento já corrente na Europa e nos Estados Unidos (ANDRADE, 190). Na sua crítica, personificou o ditador Rosas na figura de Facundo, identificando nele a representação da “barbárie”, fruto da herança espanhola dentro da sociedade gaúcha. E aí descreve o que veio a se transformar na representação de um gaúcho. Depois de viajar pela Europa e pelos Estados Unidos, a serviço do governo do Chile, Sarmiento convenceu-se da idéia da reconstrução da Argentina e de uma Hispano-América a partir de um processo acelerado de educação e imigração européia não-ibérica como alternativa civilizatória. Sarmiento pregava o progresso, citando como modelo o desenvolvimento norte-americano.

O cubano José Martí, também jornalista e exilado nos Estados Unidos, assistiu indignado e denunciou a execução da política expansionista norte-americana em direção ao Oeste, ao Pacífico e depois em direção à América Espanhola: a anexação do Texas, a compra da Flórida, da Califórnia e do Novo México, e, em seguida, as tentativas de ocupação da América Central. A possibilidade de se obter uma união dos povos do continente, a partir de propostas nascidas nos Estados Unidos, e que entusiasmava a intelectualidade hispano-americana, encontrou resistências nos escritos de José Martí, que defendia a necessidade de se buscar uma identidade hispano-americana, mas fundada nas “genuínas raízes histórico-culturais da região”. Uma identidade nacional, segundo ele, não poderia surgir da importação indiscriminada de idéias e modelos estrangeiros, que, insistia, “contribuem para ofuscar a originalidade hispano-americana”. Para ele, “o problema da independência não era uma questão de mudança de forma, mas de espírito”. Pregou a criação de universidades na América onde se ensinassem “rudimentos da arte de governo a partir da análise dos elementos peculiares dos povos americanos” (MARTI, 2006).

Sarmiento criticou Marti, elogiando-o primeiro para depois falar da sua visão retrógrada. de acomodação, o provincialismo e o descomprometimento como instâncias onde se abrigavam frustrações, impotência e os sentimentos de inferioridade, o que gera uma descrença nos valores das próprias sociedades. Dizia que “A hispano-americanidade soava como uma idéia abrangente para intelectuais como o venezuelano Andrés Bello (1781-1865), considerando que a Hispano-América estava fragmentada e habitada por povos que não se conheciam”.

Os grandes contingentes de índios, mestiços e negros que participaram das guerras de independência estavam completamente à margem dos projetos da elite criola que, apesar da posse de bens materiais, os reduziram a uma situação de inferioridade. Já os crioulos, vistos com desconfiança pelos espanhóis, não tinham cargos públicos. Raras foram as exceções.

“Há uma tendência então em associar o atraso no processo de colonização, Assim, a cultura hispânica, como cultura imposta, passa a ser questionada na medida em que se identifica com o próprio passado colonial.” (ANDRADE, 1997, p.133). Por oposição, essas colocações integram um discurso americanista que vai sendo apropriado, com variações, pelas distintas correntes do pensamento vigentes na Hispano-América.

No documento PASSAPORTE PARA A AMERICANIDADE (páginas 66-71)