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Ambigüidade identitária

No documento PASSAPORTE PARA A AMERICANIDADE (páginas 76-79)

CAPÍTULO II AMERICANIDADE: MODERNIDADE E IDENTIDADE

2.4 Ambigüidade identitária

Problemas dessa magnitude não podem condenar em definitivo os povos da América a um isolamento social tal que os impeça de pensar em novas formas de manifestação de sua autenticidade, de expressar o enraizamento e de habitar a terra, enfim, definir o seu pertencimento. Parece, entretanto, que, por um longo tempo, os americanos vão ter de conviver com a ambigüidade no seu processo identitário. O desafio que se coloca aqui é, portanto, detectar matizes dessa pertença americana, reconfigurá-la ou configurar matrizes que possam dar suporte a uma identidade continental, a americanidade, a exemplo dos europeus (europeidade), africanos (africanidade), etc. para além das nacionalidades geopolíticas, dos gêneros ou das etnias, conforme coloca Zilá Bernd.

De uma maneira geral, as nacionalidades que emergiram – colombiana brasileira, argentina – não parecem guardar uma relação direta com a cultura ou as etnias originárias dos territórios transformados em países. Dá-se o mesmo como os conceitos de

americanidade/ americanidad/americanité, categoria que expressaria a identidade

continental e cidadania dos povos criolos da América que falam o português, o espanhol ou o francês. Expresso em qualquer uma dessas línguas esse pertencimento não parece contemplar, na sua associação com a prática social, cerca de 600 etnias efetivamente nativas do Continente, senão subsidiariamente, nem mesmo dezenas de etnias africanas transladas para aqui desde o início da colonização.

O ideologema da americanidade mostra-se, em alguns casos, segundo Zilá Bernd, muito mais associado a uma resistência ao estrangeiro que a uma convergência identitária. Não cabe, contudo, sua aplicação de uma perspectiva ideológica ou ideologizante. Nesse sentido, o que se pretende aqui é tentar aglutinar matizes culturais remanescentes, sobreviventes da fragmentação cultural imposta pelo passado colonial e pela fragmentação territorial trazida posteriormente pelos caudilhos da independência, acenando com a esperança de uma autonomia cultural plena em relação aos povos de outros continentes, a partir de uma visão multiculturalista.

[...]Léffort se justifie car ce concept est intimement associé aux question identitaires et peut correspondre á son besoin d´affirmation identitaire plus élargi, au-delá des nationalités, des genres e des ethinies, car il s´agit d´un défi d´identification continentale. Si on réfléchi à l´extraordinaire hétérogéneité du continent americain[...] ( BERND, p.10).

Quando se fala em americanidade, fala-se da origem e das idéias dos povos da América, das formas fixadas no imaginário – rituais, místicas, belicosas – daquilo que è genuíno, das semelhanças e da sua configuração, envolvendo uma rede de complexidades psicoculturais. A discussão da cultura conduz, por sua vez, também intrincamentos próprios, já que importa em conhecimentos, crenças, arte, moral, lei, costumes e hábitos humanos (TYLOR, apud MONTE MÓR, 2002). Pode ser também um comportamento apreendido de uma sociedade ou de um subgrupo (MEAD, apud MONTE MÒR, 2002, p.145-161). Para Raimond Williams (1966), um dos maiores estudiosos ingleses da cultura, ela inclui a organização da produção, das estruturas da família e das instituições que expressam ou

governam as relações sociais, ou ainda, as formas características pelas quais os membros da sociedade se comunicam” (WILLIAMS, 1966, apud MONTE MÓR, 2002, p.148-161).

A pesquisadora Walkyria Monte Mór (2002) resolveu contrapor essas visões com outras concepções de cultura a partir das definições desses autores. Observa que aquelas definições talvez conduzam a idéia, segundo Tyler, de que a cultura deve congregar conhecimento, crença, arte, moral e leis como reguladores de padrões a serem seguidos por quem pretende ser membro de uma dada sociedade; que a cultura levaria o homem a compreender que uma integração cultural passaria pela aprendizagem de comportamentos padrões (MEAD, apud MONTE MÓR); ou que a cultura poderia ser entendida no espaço das relações de poder geradas tanto pelas estruturas familiares quanto institucionais (WILLIAMS, apud MONTE MÓR); ou, finalmente, de uma perspectiva individualmente mais comprometedora por parte daquele que a escreve: “[...] a cultura deva ser vista como uma construção da qual todos participamos, logo temos responsabilidade sobre as histórias que construímos, ou deixamos de construir, e sobre a que reconstruímos (GEERTZ, apud MONTE MÓR, 2002, p.147).

A tentativa de contrastação fornece pistas daquilo que a sociedade absorve ou aceita como cultura e do que se tenta historicamente sistematizar . A idéia e a organização da cultura parece transitar por origens comuns: uma no Iluminismo; outra, na Era das Incertezas. Em meados do século XIX, após a Independência dos Estados Unidos, a Revolução Francesa e as guerras napoleônicas geraram instabilidades tais que passaram a requerer controles, padrões, regras e distinções, mesmo que a pedagogia que os regia ou geria tivesse um cunho maniqueísta, ou seja, atribuísse valores a cada ação, tais como “certo e errado”.

Havia necessidade urgente de mecanismos que facilitassem regular o funcionamento da sociedade a partir de um ideal prescritivo que passou a ser chamado pelos iluministas de “harmônico” e “civilizado”. Desenvolve-se, então, um processo de configuração cultural, capaz de fornecer moldes e modelos para uma sociedade que seria qualificada como civilizada ou ápice da “civilização”. Segundo Walkyria Monte Mór, aprendeu-se a valorizar a “uniformidade”, a ter uma visão monolítica, estivesse ela no campo do vestuário ou do pensamento; e também a “linearidade”, como um tipo de organização do raciocínio, cujos padrões viriam a ser desenvolvidos pela escola no cotidiano.

O que vem caracterizando as últimas décadas, no entanto, vem a ser o fato de que a variedade, a diversidade, a divergência, a pluralidade de crenças, pensamentos, comportamento e valores tornaram-se socialmente visíveis. Daí compreende-se, talvez, a razão de Geertz (op.Cit.) ter descrito a cultura dos tempos atuais com uma feição não acabada, uma vez que se compõe de histórias criadas e recriadas sobre seus participantes e personagens. (MONTE MÓR, 2002. p. 148).

Assim os “extremos” na política (HOBSBAWM, 1995) e as “incertezas” na economia (GALBRAITH, 1998), que impactaram a vida contemporânea, apresentam

reflexos expressivos, provocando ajustes e mudanças de comportamentos sobre as crenças e valores, seguidos imediatamente de aberturas para novos padrões de relações sociais, num desafio às expectativas e desejos fabricados de organizações sociais. Contudo, tanto para Hobsbawn, com a sua “Era dos Extremos”, quanto para Galbraith, com a “A Era da Incerteza”, a escala ainda tem sido humana. A chegada das tecnologias digitais e espaciais operou como paradigmas novos para provocar um desmoronamento cultural ainda maior, afetando o pensamento e as formas de relacionamento, a participação e a integração e a produção cultural. Ela ganhou perfis variados, diversidade e pluralidade.

Divergências pouco conhecidas emergiram, distâncias encurtaram, particularidades tornaram-se globais. Sem as fronteiras físicas e ideológicas o mundo se viu abandonado à contaminação cultural, de que fala Jacques Derrida: [...] a precariedade ruinosa de uma estrutura formal que não explica mais nada, não sendo nem um centro, nem um princípio, nem uma força, nem mesmo a lei dos eventos [...] (DERRIDA, SAVIAN FILHO, 2007. p. 43). As identidades nacionais tornam-se mais fluídas, sob a influência das outras e por força da própria influência sobre as demais, abrindo um leque de opções para as identidades em crise. Estabeleceu-se um mundo das identidades ambíguas aberto à convivência dentro da diversidade cultural, onde se distinguem incluídos e excluídos, que, aceitos por todos, mas sem poder político de expressão, fazem-se presentes, como força de resistência, com a sua “vivência nostálgica” (MONTE MÓR, 2002, p.160). realizando seus cultos, ritos e práticas sociais..

Agregar a idéia de americanidade à nossa cidadania parece conduzir ao tempo presente e a uma viagem dentro da nossa própria experiência multicultural. Nativo, índio, brasileiro, por analogia, os canadenses mostram como, num ambiente desse de globalização e negação das nacionalidades, o sujeito percebe sua identidade, enquanto nacional:

Some days now I feel like the only Canadian. Some days I feel like the last Canadian. Some days I feel that being a Canadian is impossible. I like to think that all of these feelings are essential to being a Canadian. Every Canadian must feel this alone. All Canadians must feel that their own personal history is quite the same history; they live alone in their Canadian identity. When we talk of being Canadian we speak not of national myths, but of our own lives. To be a Canadian is to be an autobiographer. (BUSS/CLARKE, apud MONTE MÓR, 2002, p.158).

Os canadenses vivem a sua individualidade de canadenses, percebendo-se como um sujeito, um humano, e também como um cidadão enraizado num país, que contribui para que ele se reconheça e também seja reconhecido pela sua identidade, devido às características intrínsecas dos nativos na região. O canadense tem se recusado a aceitar a sua americanidade como um processo de "americanização", para evitar ser confundido com os norte-americanos ou os nascidos nos Estados Unidos, ou seja, transita pela abordagem de uma cultura de resistência; ao mesmo tempo, não inclui na sua expectativa de americanidade uma similitude com o comportamento mais rude dos americanos do sul. Gérard Bouchard (BOUCHARD, 2000) é da opinião que os canadenses têm dificuldades de ancorar a sua representação identitária. No trecho das "memórias distantes" da descrição patronímica

acima, parece que o próprio indivíduo constrói a sua identidade, ou seja, ela não seria representada a partir do Estado, seria imaginada. Diz Bouchard que o canadense se autobiografa enquanto cidadão da América.

No documento PASSAPORTE PARA A AMERICANIDADE (páginas 76-79)