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União cultural – Cúpula de Fortaleza

No documento PASSAPORTE PARA A AMERICANIDADE (páginas 104-116)

CAPÍTULO III MERCOSUL: VERTENTE CULTURAL

3.2 União cultural – Cúpula de Fortaleza

Entusiasmado com o êxito do Mercosul, Diego Guelar, embaixador argentino no Brasil, constatou que o Acordo canalizava fluxos comerciais, mas também produzia convergências de interesses e curiosidades histórico-culturais. Foi ele um dos primeiros a constatar que “um fenômeno independente” estava emergindo do Mercosul, escreveu ele no artigo”Nação das nações”, publicado no jornal O Estado de São Paulo, em dezembro de 1996. Dizia que:

Mas o que de verdadeiramente extraordinário está ocorrendo é a crescente consciência da sociedade civil de que o que de fato se desencadeou foi um processo de aproximação e confluência, que está muito distante daquela visão (que poderíamos chamar de Mercosul mínimo) identificada com a idéia de facilitação do comércio ou criação, ao menos, de uma zona de livre comércio. Ao contrário, cresce um fenômeno independente dos precários mecanismos organizacionais existentes, tomando corpo numa multidão de encontros, seminários, associações e grupos que concentram de estudantes a empresários de todos os setores imagináveis, organizações sindicais e centros de profissionais liberais, músicos, cineastas, escritores e uma fauna interminável de expressões marginais ou quase clandestinas (underground) que se

identificam como “algo do Mercosul” (GUELAR, 1996).

O Mercosul começava a refletir uma condição, até então pouco percebida, a também de vetor da integração cultural. A problemática cultural no espaço do Mercosul indicava dois momentos inaugurais. O primeiro foi em 30 de novembro de 1985, com a Declaração de Iguaçu, quando os presidentes Raúl Alfonsin, da Argentina, e José Sarney, do Brasil, selaram o compromisso de uma integração das duas economias, preconizando ambos um estreitamento de relações que iria ter desdobramentos nos campos político, social e cultural. Com o documento, selava-se, em definitivo, o início do fim de uma desconfiança mútua que se arrastava desde as lutas pela independência e que mantinha distantes os dois povos. O outro momento inaugural aconteceu doze anos depois, no dia 27 de dezembro de 1996, com a Cúpula de Fortaleza, quando os discursos oficiais de ambos os lados levantavam a questão da integração da perspectiva de uma “supranacionalidade” que colocava os quatro países – mais o Chile e a Bolívia, que iriam ser aceitos na reunião como membros associados – dentro do universo de uma identidade comum, muito diferente do conceito de soberania nacional, até então defendido pelos diferentes países ali presentes.

Um grupo de intelectuais e pesquisadores iria se reunir ali em Fortaleza, paralelamente à reunião de Cúpula. Um dos coordenadores do encontro, o ex-embaixador argentino, Félix Peña, explicou, em entrevista à imprensa, que:

Não caímos na ilusão de que nas questões comerciais já saímos da selva para a planície, mas precisamos instalar no povo desses países a idéia da integração. Se o povo continuar a ter o pensamento que o Mercosul é só comércio, na primeira crise vão predominar as forças centrífugas (Gazeta Mercantil, 16 de dezembro de 1996).

Ao analisar o contexto em que ia se dar a reunião de Fortaleza, o embaixador argentino, Diego Guellar, publicara outro artigo nos jornais brasileiros e de seu país, no qual cobrava uma reflexão prévia dos participantes, que pudesse responder que tipo ou tamanho de Mercosul estaria sendo defendido no encontro de presidentes, ministros e embaixadores.

Quais os limites da integração? É somente comercial? Inclui aspectos políticos, sociais e/ou culturais?[...] Há um direito comunitário que está acima das legislações nacionais? Este direito comunitário pode ser exercido de forma direta pelos cidadãos?

Em seguida recorrendo ao léxico, reproduziu do dicionário de português a palavra integração20, destacando o seu sentido. Enfatizou que a palavra implicava em “incorporação”, tornar inteiro, tornar-se parte integrante: incorporar-se”. E, interpretando a realidade do Mercosul naquele momento, alertava para a clareza do significado do vocábulo: [...] só podem ser sujeitos ativos dessa ação unidades diversas que, juntas, formam uma entidade nova. Quando falamos em integração estamos nos referindo à

identidade diferente do todo e das partes [...] (GUELAR R. 1996).

Diego Guelar afirmava, com entusiasmo um pouco exacerbado, que, embora muitos cidadãos não percebessem ainda o fenômeno Mercosul, “o processo de integração já está influenciando e mudando nossa vida cotidiana”, Segundo ele,

O extraordinário do nosso processo é que, enquanto presidentes, ministros e embaixadores nos reunimos em Fortaleza, organizações intermediárias de todo tipo, os povos de fronteira, homens e mulheres da cultura, políticos e sindicalistas, industriais, comerciantes e agricultores, juízes e advogados reúnem-se por conta própria, constituem-se em milhares de “Associações

20 “integrar, v.t., completar, tornar inteiro, totalizar, inteirar, fazer de {...} integração, s.f. totalização,

complementação. Identidade, s.f. qualidade de idêntico (Mat.) equação literal em que a igualdade é satisfeita para quaisquer valores dessas letras adj. Idêntico adj.perfeitamente igual, semelhante, análogo, consubstanciado” (BUENO, 1956).

Mercosul”, protestam e comemoram suas coincidências e diferenças sem que ninguém lhes ordene, aprove ou lhes autorize esses encontros. Sem que exista nenhuma decisão oficial, o risco de burocratização do Mercosul tem sido superado pela sociedade civil que, de forma crescente, exige-nos avançar na construção de um

destino comum (GUELAR 1996).

Na mesma linha de raciocínio, o embaixador João Clemente Baena Soares, também presidente da Fundação Alexandre Gusmão, uma das promotoras da reunião de intelectuais, observou que a reunião de Cúpula de Fortaleza estava cercada da percepção de que “a integração vai além dos assuntos econômicos, da forma objetiva como estamos tendo agora, não poderia vir antes do acelerado aumento do comércio que haverá entre os quatro países” (SOUZA, 1996).

Precedendo a reunião de Cúpula de Fortaleza, em que a “integração cultural” constituía-se, pela primeira vez21, no principal tema, o Itamaraty convidara, por meio da Fundação Alexandre Gusmão, para um encontro paralelo, vinte cientistas sociais, representantes dos países membros efetivos do Mercosul, mais os representantes chilenos e bolivianos, cujos países estavam chegando para se associar à organização. Para coordenar a reunião, foi convidado o antropólogo brasileiro Roberto da Matta, cujo entendimento era de que “[...] a troca comercial necessariamente conduz ao conhecimento do outro”. Ao explicar a reunião, da Mata informou ao enviado especial da Gazeta Mercantil que o grupo discutia um “paradoxo”. Segundo ele, a continuidade geográfica não despertava na população de cada um dos países da sub-região sequer curiosidade pela história do país vizinho. Surpreendia, por isso, o fato de se tratar de “países com fronteira viva, sem separações culturais fortes nem incompatibilidades religiosas e até com línguas inteligíveis, mas que se caracterizavam pela ausência de relações estreitas”.

Como um dos maiores incentivadores da integração cultural, o embaixador Guelar, lembrava que os achados arqueológicos demonstravam que a Europa está entre as regiões mais antigas da experiência humana na terra. Contudo, continuou, somente nos últimos 250 anos, os europeus promoveram entre si 140 guerras, 640 batalhas campais nas quais morreram mais de 100 milhões de cidadãos. Suas diferenças étnicas podem ser observadas a partir do número de idiomas expresso por esse grupo de nações. Os povos europeus falam 40 diferentes línguas nacionais, mesmo assim conseguiram um entendimento regional, embora tendo de transitar ainda por 12 idiomas.

Em nosso caso, a aventura de criar uma nova forma de soberania, compartilhada com instituições que deveremos inventar dois

21

“No que se refere à esfera da cultura, cumpre destacar que, apesar de as iniciativas precursoras terem ocorrido também durante a fase de transição (um primeiro encontro de secretários de Cultura ocorreu em março de 1993). A primeira reunião especializada aconteceu somente dois anos depois (março de 1995). Os primeiros instrumentos efetivos vieram a ter forma nos anos seguintes com a assinatura do Protocolo de Integração Cultural do Mercosul, em dezembro de 1996 e a adoção em 1977, pelo Grupo Mercado Comum, de norma relativa ao tratamento aduaneiro para a circulação de bens integrantes de projetos culturais”. (VAZ, 2003, p.29).

idiomas que adoramos misturar e um pacífico sentido de sensualidade expressa no tango e na milonga do Rio da Prata, no samba carioca e no forró nordestino, se nos apresenta como um apaixonante projeto para este fim de milênio. Essa nova “nação das nações” já cumpriu metade da sua tarefa: deu aos povos que a integram garantias de paz e estabilidade política e econômica. Agora, não nos resta desculpa alguma para não atacar o capítulo pendente: alcançar a justiça social como dimensão impostergável dessa nova identidade comunitária (GUELAR, 1996).

Para o ex-embaixado, o sucesso do Mercosul trouxera para os países membros o desafio de encontrar uma identidade comum capaz de enriquecer a todos a partir da experiência de cada um, sem que cada um perca o que construiu. Observava ele que, no fundo, sem que se atrevessem a confessá-los, os argentinos sempre admiraram os brasileiros, recíproca que sempre pareceu também verdadeira da parte dos brasileiros.

Depois de um curto período de desconfiança, e até medo, produzida pela ampliação das virtudes e dos defeitos recíprocos, os povos, desde os de fronteira até os das regiões mais afastadas procuram se aproximar, se conhecer e se relacionar como se, em nosso inconsciente coletivo, essa idéia tivesse estado reprimida por tanto tempo que precisássemos compensar o tempo perdido, com certo frenesi irreprimível. (GUELAR, 1996).

Guelar chamava a atenção para o fato do Mercosul não ser mais uma abstração e destacava que os governos e as populações dos países membros do Mercosul, tinham pela frente, a partir de então, um desafio ainda não experimentado, que era da “Soberania

Compartilhada”. Advertia as autoridades nacionais para a responsabilidade de identificar o

rumo dessa marcha, que não se constitui nem em uma “abstração intelectual”, dizia, nem em uma “curiosidade mórbida”, e que não podem delegar a condução desse debate, senão “dar-lhe a vida e expandir participação para cada uma de nossas cidadanias em questão”.

A meu ver, a pergunta “qual é o Mercosul mínimo e qual é o máximo?”já foi respondida: o mínimo é a zona de livre comércio sul-americana, com sua agenda de liberalização progressiva de todo o comércio. O máximo, uma agenda sem teto que desenvolverão os países que assumam o desafio de tornarem-se membros plenos, cuja profundidade e organização será ditada pela vontade soberana de cada um dos povos que o integram e expressa por seus dirigentes democraticamente eleitos. Essa nova “Soberania Ampliada” ou “Soberania Compartilhada” ou, finalmente, “Nação de Nações” será o resultado de nossa livre vontade comum (GUELAR, 1996).

3.2.1 Identidades compartilhadas

Ao estudar as condições culturais do Mercosul, o pesquisador José Flávio Sombra Saraiva (2003) observou que os cidadãos acostumaram-se a ver no Mercosul o lugar de fala da alta diplomacia, das reuniões de cúpula, dos encontros empresariais voltados para o tema do comércio intrabloco, o que, somado à visibilidade limitada, decorrente principalmente da cobertura feita por um pequeno grupo de jornalistas correspondentes regionais, dava ao Acordo uma aura mística e distante. Essa falta de sensibilidade e “erudição” sobre participação das comunidades nacionais no Mercosul, somada às inflexões não impediram os avanços. Ao contrário, permitiram discussões longas, cujo aprofundamento, levou à compreensão mútua, ao invés de conflitos, pelos quais muitos de fora da região torciam.

José Flávio Saraiva salientou, entretanto, em tom de alerta, que “o balanço histórico de mais de uma década de experiência de integração sub-regional no sul das Américas indica que permanece um grave déficit societário no mais relevante experimento de cooperação e integração na história do hemisfério americano”. Nesse sentido, destacava a existência de um “gargalo estratégico” impedindo o aprofundamento da integração. Citava,

como exemplo, três aspectos: a “forma atabalhoada” como o Mercosul se desenvolvera; as “assimetrias” econômicas; e o “economicismo”. Os espaços para as instituições comunitárias, segundo ele, estavam mal delineados.

Saraiva tem razão, mas, as experiências comunitárias, tanto as corporativas quanto as relações entre os povos, aos poucos iam adquirindo uma maior familiaridade, diminuindo-se a curiosidade e o distanciamento que o encontro de um e outro despertava. Naquele momento, registrava-se uma troca massiva de visitantes entre um e outro país. Haviam sido criadas e estavam se expandindo espaços para instituições sociais, como representações sindicais regionais, programas culturais, cursos de espanhol ou português nas escolas de fronteiras e outras tantas manifestações, mas ainda distantes do que se poderia chamar de processo integracionista sistemático com características culturais soberanas compartilhadas. Tudo parecia muito embrionário. A perenidade maior ou menor do processo integracionista requeria, por parte das diferentes coletividades, atitudes de alteridade, ou seja, de reconhecimento e aceitação das diferenças identitárias nacionais e até regionais ou locais e, ao se conseguir isso, encontrariam nelas o que Edgar Morin chama de “possibilidades” de integração dentro de uma multiculturalidade (MORIN, 2004 p. 54).

Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai desenvolviam rapidamente o comércio regional, cada um mantendo suas histórias nacionais, seus heróis fundadores, mas suas populações e comunidades estavam envolvidas apenas indiretamente, como representações, na construção dessa integração ainda embrionária. O perfil identitário adquirido por cada um dos países membros do Mercosul deveria passar, entretanto, cedo ou tarde, pelos referenciais culturais, pela língua e, subsidiariamente, formataria uma economia política regional; visão de uma perspectiva marxista, e mereceria reparos. Cada nação, cada povo que habita o território abrangido pelo Mercosul, construiu-se dentro de uma estrutura sociocultural própria, com representações diferenciadas e um imaginário, mesmo que

amalgados ao longo do tempo, o que desembocou em uma identidade, em uma imagem interna de si mesmo e outra externa, gerando uma configuração cidadã identitária que os diferencia entre si e dos estrangeiros.

O Mercosul chegou em um momento de entusiasmo pela integração mas, tratando ainda, com relativa indiferença , o papel da cultura. O reconhecimento do outro de uma perspectiva integracionista da legitimidade do lugar de fala do outro constituiu-se, e ainda constitui-se, num desafio à cidadania regional, representada por um patronímio regional, que é a “americanidade”, desejada no processo integracionista ainda pouco explorado. Trata-se de uma cidadania multifacetada, como a figura de um poliedro – sólido, limitado por superfícies planas - apenas manifesta, cujo perfil este trabalho tenta delinear. Não se trata, contudo, da busca de uma homogeneidade cultural, ou da construção aleatória de uma identidade. Buscam-se marcas identitárias que possam revelar possibilidades, matrizes, matizes e até tendências comuns reconfiguradoras.

Os países membros do Mercosul tornaram-se nações autônomas e soberanas, com seus respectivos povos, de um lado, por força da presença física e da disputa territorial entre as coroas espanhola e portuguesa, que procuraram montar um modelo de organização da vida social na região do Rio da Prata. Por outro lado, deve-se aos colonizadores a desestruturação e desmantelamento das organizações sociais originais dos índios e suas civilizações, pelo avanço do processo exploratório monopolítico, que alterou a forma de subsistência dessas populações; e à catequese, responsável pela introdução de costumes e práticas religiosas cristãs diferentes de seus mitos e lendas e, mais tarde, pela adoção das políticas de imigração de povos europeus, estranhos aos nativos.

A história tem valorizado o modelo de desenvolvimento, organização social e cultura dos incas, maias e astecas, descrevendo, até com parcimônia, as atitudes vigorosas de dominação exercida sobre os grupos e cultura incorporados por eles. Com isso, tem-se esquecido de que, na América Meridional, houve também culturas indígenas extensivas significantes, com suas marcas próprias, cujas estruturas internas nem sempre correspondiam aos modelos de análises usados para descrever a organização das chamadas “grandes civilizações” da América.

A partir dessa matriz, comparada ainda ao modelo de civilização desenvolvido pelos europeus, os demais povos passaram a ser vistos etnocentricamente como “bárbaros” pelos viajantes e estudiosos que não tinham conhecimento adequado da sua existência, do seu imaginário e das suas práticas. Assim, o domínio, por exemplo, da língua tupi (tupinambás, tupiniquim, tupiguara e dezenas de outros,), no centro e no leste do Brasil, carregava consigo, por um território enorme, matrizes configurativas desse tronco lingüístico, contribuindo para a percepção e organização de uma identidade comum entre dezenas de grupos indígenas, o que facilitou em muito a comunicação dos portugueses com a maioria das comunidades que habitavam a costa brasileira.

Os tupis também eram tupi-guaranis. Misturavam-se, embora os guaranis se distinguissem geograficamente, ocupando os campos centrais da América Meridional, desde o Paraguai às planícies do sul do Continente. Outro grupo foi o dos mapuche (araucano), localizados entre os territórios do leste do que hoje é o território da Argentina e a parte oeste, andina, do Chile. Ali existiu uma grande civilização mapuche que, apesar da repressão desencadeada, continua a existir e a participar da mestiçagem existente na região,

sem perder os vínculos culturais com as próprias tradições. Os charruas tinham vários grupos espalhados pelas planícies dos pampas Também a região do Chaco, envolvendo territórios do Brasil (Mato Grosso), Bolívia, Paraguai e Argentina, era entendida como a terra dos aimarás, que mantinham contato com os incas e alguns grupos falavam a língua quechua, e que com a repressão e o avanço dos estrangeiros, recuaram parcialmente para o interior da Bolívia. Mas a marca da cultura aimará pode ser encontrada em quase todos os grupos que habitam ainda a região. No Brasil, os remanescentes são os cadiuéu e os terenas, principalmente.

De qualquer forma, observa Eduardo Bueno (2007), a simples presença do nativo, chamado erroneamente de índio por Cristovam Colombo, já era um enigma para os estrangeiros que aqui chegaram como colonizadores, e depois como imigrantes.

Quem seriam aqueles homens "nus, pardos, de bons narizes e bons corpos", que negros não eram, nem mouros, nem hindus? Descenderiam de qual das dez tribos de Israel? Ou de qual dos três filhos de Noé? Teriam alma? Em caso afirmativo, como poderiam ter vivido tanto tempo à margem de Deus?[ ...] índios os portugueses sabiam que não eram. O que seriam então esses "negros da terra"? Bons selvagens, como sugeriu Pero Vaz de Caminha (e os filósofos Rosseau, Montaigne e Diderot ecoaram), ou antropófagos bestiais, como quiseram outros cronistas? Defini-los de que forma, se alguns eram brutais e intratáveis, como os aimorés - que comiam carne humana "por mantimento e não por vingança ou pela antiguidade de seus ódios" -, e outros tão mansos e pacíficos, como os carijós, "o melhor gentio da costa"?(BUENO, Acesso em: 25.01.07)

O pesquisador argentino Guilhermo Wilde (2003) analisou, em artigo publicado na revista “Horizontes Antropológicos”, as representações do Estado, impostas aos povos que habitavam a região do rio da Prata, construídas como “alteridade”, e as contradições de suas política e organização sobre os cidadãos locais, com suas dinâmicas cotidianas próprias, suas percepções do território e do Estado, e as estratégias para fugir do controle das autoridades.

Por mucho tiempo la heterogénea población que habitaba la región Río de la Plata, en las fronteras entre España y Portugal, hacia fines del siglo XVIII fue asociada con la barbarie. Con el fin de homogeneizar a esta población y ajustar su comportamiento a las leyes indianas, la monarquía española implementó varias políticas de control. Sin embargo, en el corto plazo estas políticas no lograron modificar las prácticas económicas, políticas y simbólicas de esta población ni su débil percepción del Estado. Por el contrario, los actores locales mantuvieron sus dinámicas

relativamente autónomas hasta casi la mitad del siglo XIX (WILDE, 2003).

Para Wilde, as histórias nacionais têm gerado uma imagem excessivamente

simplificada sobre o passado colonial da região do rio da Prata, confundida, em não raras ocasiões, com as fronteiras estabelecidas no final do século XIX. Os limites naturais ajudaram a travar, na realidade, um pouco as pretensões dos caudilhos regionais, que enxergavam uma continuidade territorial. De uma perspectiva externa, a região era vista como integrando o chamado “Sistema Atlântico”, que vinculava, por exemplo, o porto de Buenos Aires aos portos europeus. Internamente, havia uma complexidade de relações entre

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