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Categorias socioculturais ambíguas

No documento PASSAPORTE PARA A AMERICANIDADE (páginas 116-136)

CAPÍTULO III MERCOSUL: VERTENTE CULTURAL

3.3 Categorias socioculturais ambíguas

Os ancestrais europeus da americanidade têm uma historia também multiétnica, multicultural e, sobretudo, controversa. A Lusitânia e a Ibéria sofreram a invasão dos lígures, dos ilírios, dos ibéricos, celtas, fenícios cartagineses e gregos que chegaram à Lusitânia e a Ibéria românicas (séc.III a.C.), depois, os bárbaros (409), os árabes (711-1492) e os judeus. Todos esses povos tiveram forte influência na formação cultural e na configuração identitária do português, ao introduzir, cada um, línguas (latim, árabe), costumes (vestimentas, banhos) e práticas sociais (agricultura, ciência e comércio). A influência árabe foi marcante, sobretudo porque prolongada e extensiva. Depois de sete séculos de ocupação, eles deixaram a península ibérica praticamente oitos anos antes da descoberta da América e a dezesseis da descoberta do Brasil, por Pedro Álvares Cabral. O início da ocupação definitiva da América, tanto pelos espanhóis quanto pelos portugueses, começou quase 30 anos depois, paz relativa favorecida pelas disposições do Tratado de Tordesilhas (1494), em que Portugal e Castela dividiam o Atlântico e as terras banhadas por ele. A chamada fase da pré-colonizaçao foi marcada pelo extrativismo vegetal , quando a costa brasileira foi visitada por franceses, holandeses e espanhóis. Os portugueses estavam mais interessados em assegurar o comércio de especiarias com a Ásia, o ouro, o marfim e o escravo negro na África. Coube à expediçao de Martim Afonso de Sousa iniciar a ocupação colonial do Brasil, trazendo colonos, animais e sementes para o Brasil. Martim Afonso fundou a primeira vila no Brasil, São Vicente (1532) e instalou o primeiro engenho de cana- de- açúcar.

A partir daí, a Coroa portuguesa iniciou o modelo de donatarias e sesmarias (doações privadas de terras), mas sempre orientando seus súditos a ocuparem imediatamente a costa, especialmente as entradas e as margens dos grandes rios, entre, onde estão hoje, Belém e Laguna. A criação das capitanias hereditárias (1534) – um misto de poder econômico e político jurisdicionado, e de que originou, no século XIX, a divisão geopolítica do Brasil - e a instalação do governo-geral (1549) deram ao processo povoador português um forte impulso, atingindo, contudo, o seu ápice na primeira metade do século XVIII, com a descoberta do ouro e de outras pedras preciosas. Só em Minas Gerais teriam entrado 900 mil pessoas entre portugueses e negros escravos. Há uma forte miscegenação entre brancos, negros e índios. E é nesse mesmo período que se inicia o fluxo migratório açoriano para o Sul.

A nova cultura incorporou o banho de rio, o uso da mandioca na alimentação, cestos de fibras vegetais e um numeroso vocabulário nativo, principalmente tupi, associado às coisas da terra: na toponímia, nos vegetais e na fauna, por exemplo. As populações indígenas não participaram inteiramente, porém, do processo de agricultura sedentária implantado, pois seu padrão de economia envolvia a constante mudança de um lugar para outro. Daí haver o

colono recorrido à mão-de-obra africana. (Brasil Escola.

<http://www.brasilescola.com/> Disponível em 02.03.08).

Na ausência de fonte mais consistente, tomou-se do site “Brasil Escola”, a infomação de que é impossível precisar o número de escravos trazidos durante o período do tráfico negreiro, do século XVI ao XIX, mas “admite-se que foram de cinco a seis milhões”.

O negro africano contribuiu para o desenvolvimento populacional e econômico do Brasil e tornou-se, pela mestiçagem, parte inseparável de seu povo. Os africanos espalharam-se por todo o território brasileiro, em engenhos de açúcar, fazendas de criação, arraiais de mineração, sítios extrativos, plantações de algodão, fazendas de café e áreas urbanas. Sua presença projetou-se em toda a formação humana e cultural do Brasil com técnicas de trabalho, música e danças, práticas religiosas, alimentação e vestimentas. (Brasil Escola, idem).

Dentro desse período está aquele que foi chamado de “União Ibérica” (1580 - 1640), em que os reis da Espanha eram também reis de Portugal. Foi o momento em que a entrada de estrangeiros no Brasil estava proibida, mas isso não impediu que aportasem aqui os próprios espanhóis - que chegaram a fundar vilas no Brasil - judeus ibéricos, ingleses, franceses e holandeses. O Brasil recebeu ainda a visita de alguns cientistas, missionários, navegantes e piratas ingleses, italianos ou alemães.

Essa sociedade teve a participação de indígenas brasileiros, negros, africanos e toda sorte de gente vinda de Portugal europeu e dos outros portugais, isso é, aqueles que ele havia plantado nas ilhas e no Oriente. Madeirenses e açorianos constituíam mesmo contingentes apreciáveis nessa façanha étnico-cultural. Tinha chegado desde os primeiros dias, atirando-se ao trato da terra com sofreguidão, ensinando técnicas de vida que significavam, senão uma renovação, um enriquecimento ponderável. Colonos, soldados, degredados, homens de origem humilde, como de clãs nobres, solteiros ou casados, haviam composto uma vasta gama humana que se adaptara facilmente ao meio físico, a ele se ligando para a permanência definitiva. (História da Cultura Brasileira, 1973, vol. I, p.102)

A historiografia tem salientado as regiões de Trás-os-Montes e Alto Douro, o Minho, a Ilha da Madeira e os Açores como pontos principais da migração portuguesa para a América; e, na Espanha, os povos de Castela e os do sul da península, esses últimos com formação cultural fortemente influenciada pelos árabes, e cujos tipos físicos variavam segundo o padrão humano deixado pelas ondas de povos bárbaros invasores.

A herança trazida pelos imigrantes madeirenses e açorianos foi fundamental para a organização da vida social na colônia. Distribuídos praticamente por todo o Brasil, os madeirenses trouxeram experiências administrativas, e os açorianos, desembarcados sobretudo no Sul (Santa Catarina e Rio Grande do Sul) um formato de núcleo familiar (casais de açorianos) e que se difundiu rápido na medida em que ocupavam e organizavam o território com as estâncias privadas, a produção agropecuária, o comércio no interior e a fundação de núcleos, vilas e cidades que dariam cobertura às forças imperiais, muitas das quais absorvidas como habitantes locais. Foi em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul que o açoriano mudou sua posição social e, ao fazê-lo, trouxe um disciplinamento moral, ou seja, um padrão colonizador baseado na formação da família. (História da Cultura Brasileira, 1973, Vol. 1, p.47-63). A ordem jurídica fundamentava-se nas ordenações manuelinas (Dom Manuel), filipinas (Felipe II e III) e afonsina (Afonso VI).

Umas das grandes devidas entre os historiadores tem sido se a construção da América e, particularmente, do Brasil, por sua configuração multiétnica e multicultural teria de fato sido a “conseqüência de um grande, imenso plano de estado, concebido demorada e não inopinadamente, face a fatos diários que exigiam a adoção de uma ação política objetiva, permanente, decisiva?”. No livro “Raízes do Brasil”, Sérgio Buarque de Holanda fala, no capítulo IV – O Semeador e o Ladrilhador - da fundação das cidades (1977) como instrumento de dominação nas colônias espanholas, dizendo, por analogia aos romanos, que era uma espécie de “triunfo da aspiração de ordenar e dominar o mundo conquistado”, e que eles entendiam que o predomínio espanhol sobre as terras conquistadas devia se dar “mediante a criação de núcleos de povoação estáveis e bem ordenados”. Para isso, traçavam seus mapas e cartas geográficas. Os portugueses, embora tenham tido no passado uma escola cartográfica de primeira linha, a de Sagres, tornaram-se, depois, mais práticos. Trabalhavam como estrategistas, cuja predominância estava na “exploração comercial”, “fomentar a povoação”, sobretudo da costa. Contudo, por meio de missões avançaram também na cartografia e na iconografia, identificando os elementos comuns da flora e da fauna. (Dossiê Brasil dos Viajantes, 1996).

A restauração da monarquia portuguesa, independente da Espanha, foi o momento da separação definitiva do processo, quase conjunto, de colonização da América entre Espanha e Portugal. Foi quando apareceram frentes de colonização interna, abertas pelas bandeiras e bandeirantes, disputando territórios com os índios e espanhóis.

Já em 1643, Salvador Correia de Sá propunha à Coroa a tomada de Buenos Aires, a fim de abrir caminho para o controle das riquezas de Potosi. Alguns anos depois o padre Antonio Vieira somava-se aos adeptos da conquista da cidade portenha. Este projeto acabou dando lugar a um outro – a fundação da Colônia do Sacramento – que perseguia essencialmente o mesmo fim: a projeção sobre o estuário platino (MAGNOLI, 1997, p.71).

Preocupando-se em expandir as fronteiras para mais longe possível a oeste, o expansionismo português fez uso inteligente da lenda indígena sobre a existência de um

grande lago no centro do continente para erguer a mitologia cartográfica da “Ilha Brasil”, segundo a qual, o Brasil era uma ilha e os rios Amazonas e Paraguai estariam unidos por um grande lago (Lago de los Xarayes). Difundiu-se ainda, a existência de uma unidade cultural ameríndia, integrada por uma cultura e uma língua (a língua geral) comum dos nativos: o tupi, da qual surgiu um dicionário, Vocabulário da Língua Brasílica e a primeira gramática publicada na língua tupi-guarani, utilizados ambos como o idioma oficial da conversão do gentio.

Coube aos bandeirantes24, especialmente aos paulistas, refazer a trajetória dos povos nativos, desenvolvendo uma verdadeira epopéia nacional – o bandeirismo - e, com ele, a fundação do proto-Estado brasileiro, já que as bandeiras, acentua Magnoli (1997), personificavam “um poder público móvel”. Raposo Tavares foi encarregado de promover a “bandeira dos limites”, segundo a qual ele percorreu “o perímetro ocidental da Ilha - Brasil”. Com eles, configurou-se uma geografia aparentemente científica, em substituição à geografia mítica (MAGNOLI, 1997, p. 52-53). Magnoli (apud LINS, 1965, p.183, “Com o bandeirante, o Brasil autocoloniza-se” (p.59):

O bandeirismo, de instrumento direto ou indireto do poder colonial nas suas estratégias expansionistas, torna-se fator de subversão da soberania lusitana e de difusão territorial de uma nova soberania brasileira (p.59)[...] o discurso sobre o bandeirismo tende a mascarar o papel desempenhado pela União ibérica na expansão luso-brasileira para além do meridiano de Tordesilhas[...] (MAGNOLI, p.61-62).

A obsessão espanhola pela organização administrativa centralizada e pela urbanização abrira espaço para a mobilidade dos portugueses, que ocuparam as principais entradas fluviais do continente, desde a Amazônia ao Prata. Enquanto isso, os espanhóis entregavam para a Companhia de Jesus a ocupação dos limites orientais, deixando livres seus conquistadores para procurarem novas riquezas. Os portugueses se aproveitaram para ocupar as terras já conhecidas. Mas, observa Magnoli (1997, p.69) “É inegável que tanto os portugueses quanto os espanhóis atribuíram aos religiosos funções de ocupação e controle de faixas imprecisas de fronteir”.

Em 1632, o padre Cristóvão de Mendoza fundou o povoado de São Miguel, considerado o marco principal na América da civilização jesuítico-guarani. Agregou à sua iniciativa também a introdução do gado que ficou conhecido como “gado franqueiro”. O cavalo já era conhecido na região desde que chegaram ali os primeiros exploradores. Em

24 Os bandeirantes penetraram os territórios do interior do Brasil a partir do século XVI para aprisionar índios,

explorar o território continental, definir as posses da Coroa portuguesa e para expandir o comércio. Descendiam dos portugueses, mas eram, em geral, amestiçados, fruto do cruzamento com os índios. Falavam o tupi que aprenderam com os jesuítas e penetravam o interior acompanhados de grande caravana de escravos e índios. Exerciam uma ação violenta sobre as populações que encontravam. Por isso, foram condenados pelos jesuítas.

pouco tempo o cavalo tornou-se o maior patrimônio guerreiro dos índios charruas, jaros, guaranis, minuanos, etc., que habitavam a região do Tape, margem esquerda do rio Uruguai, em território, hoje, do Rio Grande do Sul. As reduções jesuíticas conseguiram o cavalo a partir de investidas sobre os charruas que haviam desenvolvido a sua criação, tendo se tornado hábeis cavaleiros. Surgiu daí uma nova raça: o “cavalo criolo”, adaptado ao ambiente dos campos gerais e que demarcava uma nova soberania. Os dois abriram o

caminho da convivência campeira naqueles territórios.

(http:<//www.sougaucho.com.br/animais/index.htm> Disponível em 20.01.07).

Nos anos de 1637 a 1641 o bandeirante Raposo Tavares, atrás de

mão-de-obra cativa, destruiu as reduções situadas entre os rios Taquari e Caí, obrigando os jesuítas a refluírem para a margem direita do Uruguai. A partir de então, o gado abandonado, sem interesse para os bandeirantes, esparramou-se, tornando-se gado "chimarrão”, gado selvagem. Formaram-se então as Vacarias do Mar, que estendiam-se até as margens do rio da Prata, e as Vacarias dos Pinhais, manadas de gado selvagem que ocuparam boa parte do Planalto Central e dos Campos de Cima da Serra, e que iriam mais tarde atrair os gaúchos. [...] ocupados com o ouro e as pedras preciosas das Gerais, esquecem os índios. A grande quantidade de gado criado solto e sem dono atrai o interesse de portugueses que passam pela região e que começam a invadir as estâncias dos índios. Quando os índios perceberam a situação, voltaram para as missões, reclamando seus direitos. Com isso iniciou-se o segundo período da catequese dos jesuítas espanhóis. (<http://www.terraeasfalto.com.br/destinos/riograndedosul/missoes/i ndex.htm> Disponível em 20.01.07)

Haviam sido descobertos ouro e pedras preciosas em Minas Gerais, provocando uma enorme mobilização de pessoas do Rio de Janeiro, São Paulo e nordeste brasileiro, em busca do enriquecimento no garimpo em Minas. Esses “garimpeiros” como ficaram conhecidos, passavam o dia inteiro escavando, e tinham de importar a comida. Para atendê- los, os fazendeiros do Rio Grande do Sul passaram a vender-lhes a carne seca (charque), o que gerou um grande desenvolvimento econômico nos pampas. Os peões dessas fazendas, que preparavam o charque, eram nada menos que os descendentes dos índios guaranis, com larga experiência na criação de gado adquirida quando ainda nas missões (ALVES JR, 2007).

Em princípios do século XIX, a exemplo de Azara, outro funcionário da Coroa espanhola, Gonzalo de Doblas, fez um relato sobre as condições na Colônia, informando que nas jurisdições de Rio Grande, Rio Pardo e Porto Alegre, espanhóis abandonados, cujos costumes eram livres e até pervertidos, misturavam-se aos índios evadidos das missões. Eram pessoas que, expulsas ou fugidas das reduções, conheceram a liberdade e preferiam viver livres dos controles oficiais. (DOBLAS, 1948, p. 32, apud WILDE, 203), que ficaram conhecidas como gaúchos. Somava-se a constante ingerência portuguesa, procurando atrair essa população, com facilidades e abrigo, para o território ocupado por eles. Assim, nascia uma população nômade, campesina da região chamada de Campanha e que se estende pelo

Rio Grande do Sul, Uruguai, Argentina, que recusava a tutela do Estado, e que havia feito, da fuga e mobilidade, estratégias para sua sobrevivência.

A historiografia refere-se a essas populações e período como os de práticas sociais violentas, envolvendo o saque às estâncias, o roubo de gado e seqüestro de mulheres. Alguns relatos falam de grupos de índios minuanos, outros referem-se a "índios cristianos", por analogia aos guaranis missioneiros desertores, que se recusavam a viver de maneira "estable" e segregada num povoamento cristão, no qual mesclavam com os "infieles", mas gostavam de ser reconhecidos como “cristianos" , o que revelava já um certo conflito de crenças e, particularmente, o início de uma crise identitária.. Podiam, conviver, entretanto, com diferentes identidades, transitando, portanto, no espaço da ambigüidade. Segundo Wilde (2003),“ Los guaraní misioneros fugitivos fueron actores centrales en la creación de espacios de "ambigüedad" y confusión en los que se diluía temporariamente la lealtad hacia

la corona española y la condición de cristiano”. Misturavam-se com grupos

desterritorializados da Campanha, com índios não evangelizados, portugueses e espanhóis desertores.

Una carta escrita hacia el final de la década de 1770 por el corregidor guaraní y otros representantes del Pueblo de Yapeyú, señala que las estancias y Pueblos están combatidos de los "charruas, minuanes asociados de los guaderíos, portugueses y españoles" (AGN IX.39.5.5). Por la misma época otro informe observa en relación con las partidas de salteadores que se componen de un número elevado de indígenas, cerca de mil, que viven en las toderías de los minuan "incluyendo en este número los naturales guaraníes que se han desertado y se hallan abrigados con ellos, el de varios españoles, portugueses, mulatos, y negros que se han incorporado a aquella nación" (AGN IX.39.5.5, apud WILDE, 2003).

As relações entre os guaranis missioneiros e "infieles" foram mais ambíguas que hostis, certamente instáveis, alternando momentos de indisposição, amizade e intercâmbio, algumas vezes motivadas até por relações de parentesco. Devido a uma prática de trocas constantes entre esses grupos, a idéia de “infieles”, teria sido incorporada, dentro de um espaço semântico, segundo uma das versões correntes, para referir-se a "no pertenencia" ou a lealdades flexíveis ao Estado ou à religião, em oposição à ordem estabelecida. É nesse ambiente de flexibilidade e de adaptabilidade que vão surgir novas categorias de identificação sociocultural, entre as quais a figura do gaúcho ou “gauderìo”, um vaqueiro desterritorializado, da segunda metade do século XVIII, como fruto dessas populações nômades da Campanha, envolvidas com atividades pecuárias ilegais, cujo modo de vida também não se ajustava aos costumes transmigrados das metrópoles. Miguel de Lastarria, secretário del Virrey Avilés em 1800, o descreveu assim:

Hay hacendados que poseen mas de cinquenta leguas; y que cuentan mas de dos cientos dependientes sin oir el Santo Sacrificio de la Misa; ni asistir á concurso de fiestas ó diversiones publicas; cuyo estado de barbaridad, é indecencia he descripto distinguiendolos con el nombre que les dan de Guaderios, Gauchos y Camiluchos (LASTARRIA, 1914, p. 245, apud WILDE, 2003).

A descrição textual do gaúcho25 se dava paradigmaticamente por meio de uma oposição entre “civilidad-incivilidad”. As autoridades identificavam assim as pessoas que vagueavam pela Campanha e viviam da captura ou do roubo de gado. Eram muitas vezes chamados de ladrões, malfeitores ou vagabundos e eram classificados socioculturalmente com desdouro como "gente da Campanha", que se moviam marginalmente sem controle por diferentes espaços territoriais e culturais.

Wilde (2003) destaca o fato de que essa estigmatização do gaúcho conduz à idéia de que eles não mantinham uma sociabilidade, ou viviam à margem das atividades políticas. Contudo, observa, estudos recentes têm procurado encontrar indícios que permitam reconstruir, dentro de uma lógica própria, a sociabilidade da Campanha. (BRACCO, 2003; GARAVAGLIA, 1997; GARAVAGLIA; GELMAN, 1995; RODRIGUEZ MOÇAS, 1994; ZURUTUZA, 1994, apud WILDE, 2003). A vasta região se estende como um braço da sub- região do Chaco à Patagônia, tendo de um lado, a Costa e, de outro, os Andes, atravessando, pois, o Prata. Trata-se de um espaço identitário do gaúcho, mas também espaço de integração entre centenas de populações e grupos sociais ligados direta ou indiretamente à Campanha.

3.3.1 Campanha: espaço ambíguo da interação

A sociabilidade na Campanha se fazia representar por duas frentes: a primeira, as estâncias, a propriedade privada; a outra, as atividades consideradas ilegais. Ambas geravam muitos espaços de sociabilidade e também categorias socioculturais de pertencimento, representadas por um grande número de pessoas que vagavam pelos campos, cujo perfil foi se ajustando aos novos tempos, sem alterar sua conformação identitária original.

Os habitantes da região pertenciam a três grandes complexos civilizatórios: no norte do atual Rio Grande do Sul viviam, sobretudo, a comunidade de língua jê,

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El gaucho es un hombre-jinete de la pradera, no responde a un tipo étnico único, fruto del mestizaje de la región rioplatense, su origen está vinculado a las singulares condiciones políticas, históricas y económicas de su medio. Pertenece por igual a las zonas ganaderas de la Argentina, sur del Brasil y Uruguay, el área geográfica del gaucho coincide con una región natural. Puede afirmarse con seguridad que su tipo primigenio nació en la Banda Oriental a lo largo del siglo XVIII. El vocablo gaucho proviene de la expresión quechua "huachu", que quiere decir huérfano o vagabundo. Los colonizadores españoles transformaron el término, a los huérfanos pasaron a llamarlos "guachos" a los vagabundos "gauchos". En el sur del Brasil suele llamársele "gauderio" o "gaúcho" (O GAUCHO, 1967).

especializada na exploração das florestas e na coleta de pinhões; nos campos abertos sulinos, os povos pampianos, que se tornaram exímios cavaleiros; no litoral, margens das lagoas, vales dos grandes rios, os povos guaranis e depois os imigrantes açorianos. Aldeias jês, pampianas e guaranis dominavam grandes extensões de terras, necessárias para sua sobrevivência. Suas terras comunitárias eram explorados em forma familiar e associada. A propriedade territorial era praticamente privada desconhecida por ali (MAESTRI, 2003) até a chegada dos paulistas e açorianos.

A propriedade privada no atual Rio Grande do Sul, legalmente constituída no

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