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A recepção dos textos de Cultura Política

PARTE I – Divulgação e recepção dos textos e atrajetória jornalística de Graciliano Ramos jornalística de Graciliano Ramos

Capítulo 1 – Graciliano e a edição das crônicas

1.5. A recepção dos textos de Cultura Política

analogia com o caráter disciplinador e orgânico do Estado autoritário, ela orientava e hierarquizava de maneira mais efetiva o conteúdo do material veiculado em suas páginas.

Antes de ganharem suporte livresco descrito acima, três desses quadros sobre a vida provinciana, saídos originariamente em Cultura Política, foram estampados no periódico comunista Revista do Povo – Cultura e Orientação Popular. Tal fato controverso chama ainda mais a atenção para esse conjunto de narrativas, que apesar de escritas para um órgão de direita, foram republicadas, alguns anos depois, num veículo de esquerda. Trata-se das seguintes colaborações:

• “Quadros e costumes do Nordeste – O Carnaval”, Revista do Povo – Cultura e Orientação Popular, Rio de Janeiro, ano 2, n.4, abr. 1946;

• “Quadros e costumes do Nordeste – O Casamento”, Revista do Povo – Cultura e Orientação Popular, Rio de Janeiro, ano 2, n.5, maio/jun. 1946, p. 5 e 39;

• “Quadros e costumes do Nordeste – D. Maria”, Revista do Povo – Cultura e Orientação Popular, Rio de Janeiro, ano 2, n.6, jul. 1946, p.3-4.

O presente estudo não poderia se furtar ao exame de tal particularidade. Na medida em que se propõe a recuperar a especificidade da ambiência cultural de Cultura Política e os efeitos produzidos pelos textos do artista nesse espaço editorial, recobrará também os sentidos gerados pela republicação dos referidos “Quadros e costumes do Nordeste” no periódico comunista. Como se verá, a veiculação dos quadros regionalistas tanto na revista de direita e como na de esquerda diz muito a respeito do caráter ambivalente dos mesmos, bem como do ajuste semântico operado por ambos os suportes jornalísticos sobre as matérias que estampam.

nordestinos terem sido republicados, logo ao final do Estado Novo, no supracitado órgão comunista.

A partir da publicação de Viventes das Alagoas, tem início a trajetória de recepção dos

“Quadros e costumes do Nordeste”. De começo, na grande imprensa, tomam corpo resenhas e rápidas observações críticas, dando conta do lançamento do livro, por volta de abril de 1962.

Este é o caso de “Graciliano - Viventes e vivência”, de Barbosa Rolmes, texto saído na seção

“A semana e os livros”, do Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo. Aludindo a um aparente contexto de crise do romance brasileiro, o articulista trata a obra como um

“exemplo positivo”, a indicar o caminho a ser seguido pelos jovens ficcionistas:

[Em referência a Viventes das Alagoas]. Poderão objetar que se trata de série de páginas avulsas, escritas de 1941 a 1944, desenterradas de publicações esquecidas, constituindo uma coletânea de

“Quadros e costumes do Nordeste”. Neste livro encontram-se, porém, já com todas as características da arte do grande escritor, uma galeria de esplêndidos tipos, alguns dos quais seriam desenvolvidos mais tarde, pelo criador de Angústia nos personagens de seus romances. Além disso muitas das situações de vários de seus livros já se encontram, aqui, em embrião. Daí a importância deste Viventes das Alagoas51.

Rolmes não só não faz referência ao fato de boa parte dos textos, originariamente, ter sido publicada em Cultura Política, como procura, de maneira equivocada, relacionar os citados quadros nordestinos ao restante da obra do autor. Segundo ele, em tais páginas avulsas,

“desenterradas de publicações esquecidas”, encontrar-se iam, em germe, personagens e situações que seriam desenvolvidas posteriormente nos romances do escritor. Contudo, o resenhista se esquece de que em 1941, data em que começaram a ser escritos as crônicas as quais alude, Graciliano já havia publicado toda sua obra romanesca (Caetés, S. Bernardo, Angústia e Vidas Secas) e dedicava-se, sobretudo, a produção de contos e à escritura de suas memórias da infância e da cadeia.

As resenhas publicadas nos jornais Folha de S. Paulo52 e Última Hora, 53em abril de 1962, também não mencionam a publicação inicial dos textos de Viventes na revista getulista. No

51 BARBOSA, Rolmes. Graciliano Ramos - Viventes e vivência. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 28 abr. 1962.

Suplemento literário.

52 ARROYO, Leonardo. Vida literária, Graciliano e as crianças. Folha de S. Paulo, São Paulo, 22 abr. 1962.

Além de Viventes das Alagoas, trata também do volume Alexandre e Outros e Heróis, voltada preferencialmente para o público infantil, que também vinha de ser lançado naquele momento pela Martins Editora.

53 PEREZ, Renard. Literatura – Graciliano: obra póstuma. Última Hora, Rio de Janeiro, 25 abr.1962.

entanto, diferentemente do escrito anterior, ambas reforçam o caráter documental, sociológico e memorialístico dos quadros nordestinos do autor. Veja-se a segunda delas:

Em Viventes das Alagoas (Quadros e costumes do Nordeste) foram reunidas em livro, pela primeira vez, as crônicas publicadas por Graciliano na imprensa – em sua maioria, no período de 1941 a 1944. Aí o seu mundo sertanejo aparece na base do documentário. Tipos e festas populares de Alagoas e da Paraíba, apresentados em geral no tom de reminiscências, são fixados pelo escritor dando-nos o livro, em seu conjunto, um quadro expressivo e humano do Nordeste54.

De maneira semelhante, Eneida, em artigo publicado no Diário de Notícias, também destaca que uma das constantes das crônicas do escritor seria “a fixação de costumes, tipos e aspectos da vida sertaneja”55. Porém, ao contrário dos demais resenhistas arrolados acima, não deixa de destacar que os textos reunidos em Viventes das Alagoas56 teriam sido publicados inicialmente em Cultura Política, “uma “revista do DIP”57. Expressas tais informações, a escritora, em perspectiva biográfica, inicia o relato de suas experiências pessoais com o velho Graça. Para tanto, recupera trechos de uma matéria sobre este, escrita por ela mesma, em 1949, para a revista de orientação comunista Esfera.

Entre os episódios da vida de Graciliano presenciados por Eneida estava a passagem do artista alagoano pelo veículo getulista:

Fui visitá-lo algumas vezes na pensão do Catete onde pontificavam outros: o quarto era ruim, sujo, a pensão triste como todas as pensões familiares. O velho continuava a chamar de burro todo o mundo.

Assistia sua revolta e seu nojo (sic) em colaborar na Cultura Política, aquela célebre realização do Estado Novo.

– Mas Graça, precisas viver, que diabo! Só sabes escrever que outra coisa poderias fazer?

– Mas é sujeira.

Os encargos da família crescendo, as meninas precisando estudar, Heloísa procura emprego, o velho Graça numa vida dura, roendo as unhas58.

54 Idem, ibidem.

55 ENEIDA. Graciliano Ramos: Viventes das Alagoas. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 15 abr. 1962.

56 Mais de uma vez, a escritora grafa erroneamente o nome do referido volume como Viventes das Almas (Idem, ibidem).

57 Idem, ibidem.

58 Idem, ibidem.

Como forma de afastar qualquer possibilidade de comprometimento de Graciliano com o regime de 1937, a escritora toma a vida do autor como fundamento para se determinar a significação das colaborações deste com a revista dipiana. Preterindo a análise dos textos propriamente ditos, tratados rapidamente como quadros sertanejos, vale-se de tal depoimento para destacar a distância do artista dos postulados estadonovistas. Dá a entender que se ele colaborava com o periódico oficial, isso ocorria tão somente em função das dificuldades financeiras enfrentadas por sua família, pois se enojava com a situação de manter-se vinculado a um órgão do DIP.

Adotando perspectiva diversa, Raul Antelo, nos anos de 1980, privilegiou a análise textual do conjunto das colaborações de Graciliano com Cultura Política, paralelamente ao exame da vinculação do artista a tal publicação dipiana. Segundo ele, haveria correspondência entre o ponto de vista assumido pelo narrador das crônicas e o lugar ocupado pelo escritor na máquina estatal:

Graciliano tende ao ponto de vista do forte e do fora. Narrador urbano, já distanciado desses viventes ora evocados, sua mediação se estabelece a partir de uma posição – no caso, claríssima – no aparelho de Estado. O romancista de prestígio “dentro” e entre os fracos é pago para fixar quadros e costumes do Nordeste, ou seja, congelar o mutável no marco de uma visão autoritária e exterior. A ironia e a saudade revelam o compromisso com o que ficou fora, a confiança na inevitabilidade e a necessidade do progresso, tal como está sendo construído, o que, em última análise é tributo do olhar do forte59.

Tendo como base tal análise empreendida por Antelo, bem como outros trabalhos sobre o regime de 1937, com destaque para o estudo de Cultura Política realizado por Mônica Pimenta Veloso60, Facioli ressalta os vínculos materiais do escritor alagoano e das colaborações deste com a revista getulista. No contexto da biografia intelectual produzida sobre Graciliano, o crítico destaca:

Graciliano escreve pois, na revista da elite e para a elite intelectual, sob a tutela do DIP, onde a ambigüidade e mesmo a oposição eram toleradas, o que permitia ao escritor, ao mesmo tempo, manter as ilusões de sua independência pessoal e receber vantajosa remuneração por seus textos, de vez que aquela revista era que melhor pagava (e em dia...) os seus colaboradores. Tudo no interior do mesmo

59 ANTELO, Raul. Literatura em revista. São Paulo: Ática, 1984, p.34

60 VELLOSO, Mônica Pimenta. Cultura e poder político: uma configuração do campo intelectual. In:

OLIVEIRA, Lúcia Lippi et al. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.

projeto ideológico evidentemente. Por isso é que os textos de Graciliano preenchem seções da revista previamente fixadas por seus responsáveis, homens do DIP, os “intelectuais orgânicos”. E os temas, em geral, enquadram-se no circuito de “descoberta e produção” do homem novo pretendido pelo Estado Novo, onde o aparelho de Estado aparecia como capaz de “traduzir a vocação popular”, através do estímulo ao conhecimento da realidade brasileira, em seus aspectos de “observação sociológica e investigação da psicologia nacional”61.

Tomando tal posicionamento como uma afronta a memória de seu pai, Ricardo Ramos rechaça qualquer aproximação entre o autor de Vidas Secas e o Estado Novo. Assim como Eneida, vale-se do “homem Graciliano Ramos” como categoria crítica para explicar a obra do

“artista Graciliano Ramos”, preterindo a análise dos quadros nordestinos, propriamente ditos, ou mesmo o exame do papel desempenhado por tais produções na revista getulista62. Na verdade, ao tratar dessa questão, em meio ao ordenamento de suas reminiscências, seu principal objetivo parece ser o de desqualificar o trabalho de Facioli, ao qual se refere de maneira indireta, mas contundente:

A colaboração na revista Cultura Política vem a seguir. Com um agravante, ao que se pretende, a colaboração na revista luso-brasileira Atlântico, entre salazarista e estadonovista. Sim, não há nada a observar: Graciliano publicou nas duas crônicas e contos. Aquilo de, se não me censuram, publico até no Diário Oficial. Com maior ênfase estranha-se o seu trabalho de preparador de textos, revendo originais. Um capinar, escoimar, melhorar de escrita avulsa. Naturalmente remunerado, profissional.

Não há porque sugerir um “bico no DIP, ou mais”. De certo a revista se subordinava ao Departamento de Imprensa e Propaganda. Mas ele nunca trabalhou lá, obviamente, escreveu e assinou suas crônicas na Cultura Política, emendou a prosa de colaboradores. Falar em DIP, insinuar entendimento maior, seria leviandade. Que significa esse “ou mais”? Além de leviana, a simples dúvida é desrespeitosa para com Graciliano63.

Esse afastamento entre artista e Estado, enfaticamente repisado por Ricardo, ganha outros contornos no livro de memórias de Paulo Mercadante, amigo da família Ramos, que também se referiu às colaborações de Graciliano saídas em Cultura Política. Se Facioli considerava os quadros nordestinos do autor como partes ajustáveis ao projeto político-ideológico conduzido pelo Estado Novo, o trabalho de Mercadante procura, em sentido contrário, separá-los do

61 FACIOLI, Valentim. Um homem bruto da terra (biografia intelectual). In: BOSI et al. Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1987, p.68.

62 Tal fato se justifica em função dos propósitos de seu livro Retrato Fragmentado, centrado não na análise de aspectos da obra de Graciliano, mas na exposição de memórias afetivas relacionadas ao seu falecido pai.

63 RAMOS, Ricardo. Retrato fragmentado. São Paulo: Siciliano, 1992, p.217-218. A expressão “Bico no DIP (ou mais?)”, rejeitada por Ricardo, aparece como intertítulo da quarta parte da biografia intelectual de Graciliano escrita por Facioli.

conjunto das produções dois demais autores estampadas em Cultura Política, como se o escritor alagoano, longe de servir ao regime realizasse uma crítica intersticial a este:

A colaboração de Graciliano na Cultura Política abrange o período de abril de 1941 a agosto de 1944.

Não lhe parecerá contrária a seus pontos-de-vista, pois o que se devia levar em conta era o texto escrito e não a publicação. O que fizera foi relatar as condições de vida no Nordeste, denunciando a miséria e o atraso, o abandono do homem, a brutalidade da exploração agrária. Aceitar a sua literatura, postas nestes termos, seria uma incoerência do editor, jamais do autor, que não mentia em seu libelo, só contribuindo para que os governantes se alertassem quanto às injustiças sociais. Nesse ponto, no que dizia respeito a sua consciência, estava tranqüilo. Sua pena não se punha a serviço dos reacionários, quando a verdade da exploração era revelada. A revista, posto que feita com recursos oficiais, continha um protesto dos flagelados64.

Nos anos 2000, tal perspectiva que se, por um lado, não foge a análise dos “Quadros e costumes do Nordeste”, mas, por outro, procura estabelecer um lugar diferenciado para estes, isolando-os das demais colaborações veiculadas pela revista oficial, ganha espaço no meio universitário. Faz-se referência aqui, mais precisamente, aos trabalhos de Ana Amélia Melo e Nádia Regina Bumirgh. A primeira ressalta que, sorrateiramente, o artista alagoano valia-se do espaço ocupado no periódico getulista para criticar o regime de 1937, como se a única função de seus quadros nordestinos fosse conspirar contra a ordem estabelecida:

Escrevendo numa revista conhecida por um cunho ideológico claro, informado pelo discurso autoritário, Graciliano procura, nesse espaço destinado à recuperação do “verdadeiro” país, a fórmula de sua contraversão. Lendo-o ao reverso podemos compreender o alcance de sua visão crítica. A alternativa de recusar a oferta de trabalho estava fora de possibilidade, restava então o uso precioso da palavra. Da perspectiva tutelar da política getulista, de propagandear um movimento de cultura brasileira firmado na recuperação das raízes nacionais, de tom ufanista, era preciso escapar através da ironia, ou de um retrato cru dessa realidade. O tom acrimonioso desfaz os louros comemorativos da redescoberta do Brasil. Se a proposta de Graciliano era a de se firmar na realidade brasileira, esta aparecia sem meios tons e não era motivo de glória. Opondo o Brasil matuto, sertanejo, antiquado, ao litoral macaqueador das civilizações do outro mundo, sua crítica recai sobre o artificialismo bem pensante que, sob o fraque, esconde a tanga65.

64 MERCADANTE, Paulo. Graciliano Ramos: o manifesto do trágico. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994, p.123-124.

65 MELO, Ana Amélia M. C. Pensando o Brasil: os escritos de Graciliano no Estado Novo. In: ALMEIDA, Ângela Mendes de (org). De sertões, desertos e espaços incivilizados. Rio de Janeiro: Faperj; Mauad, 2001, p.69. Tal artigo é fruto da tese de doutorado De fraque e tanga: o impasse do moderno na literatura graciliana, defendida pela autora também no ano de 2001, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Bumirgh adota viés semelhante, afirmando que Graciliano não poderia recusar o acesso a um meio de comunicação “para denunciar injustiças e misérias sociais”66 e revelar o “retrato cru”

da realidade nacional67. No entanto, diferentemente de Melo, assume uma postura aberta de defesa do autor, como se a imagem dele tivesse sido maculada pelos estudos de Antelo e Facioli e precisasse ser reabilitada:

Sabendo-se que existe a insinuação por parte de alguns críticos literários de que o conjunto das crônicas produzidas por Graciliano, durante o Estado Novo, abraça o projeto cultural e político getulista, a pesquisa sobre a sua participação em Cultura Política tornou-se imprescindível para a defesa do não atrelamento do escritor alagoano aos ditames ideológicos estadonovistas68.

Além de propor tal abordagem interpretativa de cunho “salvacionista”, o objetivo final de Bumirgh é preparar uma edição crítica de Viventes das Alagoas. Valendo-se de procedimentos técnicos e científicos extraídos da crítica textual e genética, a pesquisadora recupera e examina detidamente manuscritos, recortes de periódicos e diferentes edições da obra, com o propósito e estabelecer o texto ideal do autor. De maneira geral, esse processo parece incidir sobre sua proposta analítica dos “Quadros e costumes do Nordeste”, pois por mais que leve em conta o suporte jornalístico de Cultura Política, a autora tem em mente o livro, ou melhor, uma imagem acabada e inteiriça do artista, que o processo de edição dos quadros nordestinos em livro ajuda a construir. Nesse sentido, levando em conta o perfil acabado e consolidado de Graciliano, volta-se contra o efeito de contradição e incoerência que tais escritos possam produzir.