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A visada “classista” no tratamento do sertanejo

Capítulo 3 – A poética de Graciliano pari passu às diretrizes estadonovistas

3.5. A visada “classista” no tratamento do sertanejo

como se verá a frente, deve ser enquadrado num contexto específico de disputas no campo literário.

policiam. Já para a “cambada mesquinha e suarenta”, “as instâncias do coração” não achariam obstáculos sociais para se manifestarem. Entre tais extratos menos favorecidos, não haveria espaço para formalidades ou pudores; os desejos amorosos se processavam rapidamente por meio de “diálogos curtos, vivos, sem rodeios, sem metáforas”304. Essa oposição entre comportamentos de ricos e pobres, revelava-se interessada e servia de argumento para o autor defender sua perspectiva retórico-poética no trato do sertão: enquanto a literatura de feição romântica seria pudica, palavrosa e dominante (pois predominaria nos escritos e nas verdades construídas sobre o lugar), a outra, realista, que procurava consolidar seu espaço no cenário cultural brasileiro, não se furtaria a apresentar aparentes indecências de maneira rápida e direta, em linguagem usualmente tida como baixa.

Por esse aspecto, no qual o cronista combate frontalmente certa visão dominante que se fazia sobre o sertão, ele acaba construindo para si o lugar de uma figura iluminada, que vai tirar da sombra ou reorientar as verdades que se produziam sobre o lugar. Acredita que assim colaboraria para que determinadas práticas, costumes e personagens sertanejas passassem a ter existência ou mesmo ganhassem uma forma que supunha mais adequada, seja porque eram preteridos pelo modelo literário anterior, seja por que eram idealmente formulados por este.

A tal papel, o cronista acrescenta ainda a função de atuar diretamente sobre as matérias apresentadas. Nesse sentido, caberia a ele não só apresentá-las e explicá-las, sem concessões ou meios-termos, como também corrigir certos elementos delas julgados improcedentes. O narrador do texto, portanto, ao tratar dos assuntos, pretende colaborar para transformá-los.

Melhor dizendo, dentro das premissas do raciocínio marxista, ao formular antíteses, ele trabalharia para construir uma síntese, a qual implicava a destruição do modelo dominante.

Essa postura “revolucionária” tinha sua matriz na escolha da própria diretriz literária adotada pelo escritor: enquanto sua literatura se identificava com a “canalha” 305, com aqueles que seriam, supostamente, os sujeitos históricos da mudança, as convenções idealistas e

304 RAMOS, Graciliano. Natal. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 21 dez. 1940. In:______. Viventes das Alagoas. São Paulo: Martins, 1962, p.13.

305 De certa maneira, Távora, em O cabeleira, ao selecionar, da história de Pernambuco, não exemplos de grandeza moral, mas “vultos infelizes”, pertencentes a uma classe social menos nobre, parece se ajustar a essa perspectiva (além disso, José Gomes fora cantador ao mesmo tempo em que figurava como tema recorrente nos versos dos trovadores, outro indício de seu aspecto popular). No entanto, enquanto tal autor adotara uma perspectiva moralizante (do homem naturalmente bom que se corrompe e depois se regenera), Graciliano vale-se de um tom de denúncia, dando privilégio para aspectos econômicos, políticos e sociais no trato do espaço e do homem sertanejos.

românticas diriam respeitos à classe dominante, que, até então, controlava o poder econômico e a produção das verdades sobre o espaço.

Subentende-se que os rebaixados socialmente, as vítimas de exploração, seriam mais autênticos, pois não estariam presos às convenções e artificialismos da classe dominante.

Dessa maneira, o procedimento do cronista de identificar sua literatura ao grupo social menos privilegiado seria uma forma de validá-la e de conferir-lhe maior estatuto de real.

Tal perspectiva já poderia ser vista na crônica “Suor”, apresentada anteriormente. Nela, Graciliano se vale de uma oposição binária semelhante, contrapondo, de maneira direta, os literatos passadistas bem colocados socialmente (que se ufanavam com seu país) aos escritores atuais (que não achavam que as coisas iam tão bem, assim):

Há uma literatura antipática e insincera que só usa expressões corretas, só se ocupa de coisas agradáveis, não se molha em dias de inverno e por isso ignora que há pessoas que não podem comprar capas de borracha. Quando a chuva aparece, essa literatura fica em casa, bem aquecida, com as portas fechadas. E se é obrigada a sair, embrulha-se, enrola o pescoço e levanta os olhos , para não ver a lama nos sapatos. Acha que tudo esta direito, que o Brasil é um mundo e que somos felizes. (...)

Ora, não é verdade que tudo vá assim tão bem. Umas coisas vão admiravelmente, porque há literatos com ordenados razoáveis; outras vão mal, porque os vagabundos que dormem nos bancos dos passeios não são literatos nem capitalistas. Nos algodoais e nos canaviais no Nordeste, nas plantações de cacau e de café, nas cidadezinhas decadentes do interior, nas fábricas, nas casas de cômodos, nos prostíbulos, há milhões de criaturas que andam aperreadas. (...) É natural que a literatura nova que por aí andam construindo se ocupe 306.

Portanto, ao reivindicar um contato “íntimo” entre escritores e matérias narradas, pressupondo que os primeiros, além de se identificarem à “canalha da roça”, deveriam ter vivido no sertão, para então produzirem textos “sinceros”, Graciliano não tem em mente apenas a imagem que, intradiscursivamente, constrói-se de determinado escritor (a partir da leitura dos livros dele), mas sim representações preliminares e exteriores de tais sujeitos. Em outras palavras, dava a entender, em seus textos críticos (não em seus romances, contos e memórias), que o homem deveria se sobrepor ao artista. Assim, como se recusasse o fato de que as próprias histórias de

306 RAMOS, Graciliano. Linhas Tortas, São Paulo: Martins, 1962, p.127-128.

vida dos autores seriam mediadas pela ficção, acabava privilegiando, neste caso, uma interpretação predominantemente biográfica da obra literária307.

Tendo em vista a pressuposição dessa aparente correspondência entre obra e mundo, como visto até aqui, o romancista alagoano julgava que a história de vida de um escritor era determinante para conferir “verdade” aos textos por ele produzidos. Para se ter uma idéia melhor do peso deste quesito no horizonte crítico do autor de Angústia, ele afirmou que a produção romanesca de seu colega José Lins do Rego entrara em franco declínio a partir do momento em que este se esquecera de suas “origens”. Na opinião de Graciliano, o autor paraibano, após o Ciclo da cana-de-açúcar, terminado com o volume Usina, de 1936, deixara de lidar com lugares e acontecimentos conhecidos, referentes à zona da indústria açucareira, onde fora criado, para tratar de assuntos que ele não conhecia bem:

Pureza (1937) é uma pequena estação que ele viu de longe, da janela do trem. Em Pedra Bonita (1938) desejou estudar a epidemia religiosa que houve em Pernambuco no século passado, mas teve preguiça e inventou beatos e cangaceiros. Sacrificou até a geografia: pôs sua gente numa vila do Anum, que não existe. A primeira parte de Riacho Doce (1940) passa-se toda na Suécia. Embreando-se nessas regiões desconhecidas, José Lins do Rego repetiu muito do que já havia dito308.

Graciliano trata a fidelidade à própria trajetória como condição fundamental para a produção literária, pois somente dessa maneira um artista conseguiria manter-se fiel à “realidade” que desejava representar. Enquanto ficcionalizou suas experiências pessoais, Zé Lins teria produzido livros “cheios de vida”, escritos na arcaica “língua dos descobridores”, mantida em certas paragens do interior nordestino. Ao adotar perspectiva diversa, arriscou-se em

“digressões perigosas”.

307 Como complemento interpretativo, se levarmos em conta certos pressupostos oriundos da sociologia da literatura, pode-se considerar que Graciliano escreve num momento de desterritorialização pessoal e social, num contexto de decadência da sociedade nordestina patriarcal e de substituição desta por uma outra de caráter mais urbano-industrial (MICELI, Sérgio. A expansão do mercado do livro e a gênese de um grupo de romancistas profissionais. In:_____. Os Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.141-194). Esse é o tema que, de uma maneira geral, predomina no “romance de trinta”. Os autores dessa geração, em sua maioria descendentes de famílias tradicionais e decadentes, vivendo um processo de marginalização, deixavam de ter um compromisso direto com os grupos dominantes aos quais estavam ligados originariamente. Em contrapartida, procuravam se aproximar da “arraia miúda”, adotando temas e formas de expressão de matriz popular como forma, sobretudo, de denunciar as condições sociais em que se vivia.

308 RAMOS, Graciliano. A decadência do romance brasileiro. Literatura, Rio de Janeiro, ano 1, n.1, set. 1946, p.23.

Ao propor tal conceituação estrita, Graciliano deixava em segundo plano a análise dos modelos literários e dos protocolos discursivos de que os artistas se valiam para construir suas obras e produzir o efeito de real sobre o auditório. Não que o escritor alagoano recusasse a importância da técnica na fatura de um livro, muito pelo contrário, como revela sua própria produção romanesca, mas seus textos críticos concedem privilégio a certa noção de autenticidade da experiência, a qual orientava suas análises e interpretações.

Guiado por essa convicção, separa os escritores dispostos a “abandonar o café e o asfalto”

para verem de perto as misérias sertanejas, daqueles, que sem saírem do conforto de seus gabinetes, “sem se molharem nos dias de inverno”, tratavam das paragens interioranas em suas obras. Como se verá, o presidente Getúlio Vargas utilizava categorização semelhante para se referir aos homens de letras.