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A especificação da crítica ao Romantismo

Capítulo 3 – A poética de Graciliano pari passu às diretrizes estadonovistas

3.4. A especificação da crítica ao Romantismo

Segundo penso, meu amigo, e me parece recomendar a estética, o artista não tem o direito de perder de vista o belo ou o ideal, posto que combinando-o sempre com a natureza (...) Li um precioso livro, intitulado – A ciência do belo – por Lévêque (...) Nunca mais me esqueci de um pedacito que lá vem, concebido nestes termos: “Se o artista não é senão o arrolador da vida de todos os dias, quero antes a vida em si mesma, que é viva, e onde não me demorarei com a vista senão sobre o que me interessar”288.

Portanto, ao mesmo tempo em que crítica, de maneira metonímica, certos pilares do Romantismo, presentes nas obras de Alencar, ainda estaria influenciado pela crítica romântica e por certa visada oriunda da filosofia idealista.

representação do espaço sertanejo estaria no fato de os literatos antigos darem preferência a modelos importados ao invés de procurarem se ater à observação do mundo que os rodeava.

Retomando o possível paralelo entre Graciliano e Távora, há aqui outro ponto de divergência.

O escritor cearense, apesar de defender a primazia da observação nas Cartas a Cincinato, ao escrever seus romances acabou dando preferência a personagens e episódios tomados da história como melhor caução para conferir autenticidade estética a suas obras. Dessa maneira,

“situando suas narrativas no século XVIII, o autor de O Cabeleira se privava da possibilidade de uma observação efetiva da realidade social que lhe servia de matéria, devendo contentar-se com pesquisar as fontes históricas”290. Portanto, por meio de sua prática como romancista, é possível depreender que quando revela predileção por certo romance “verossímil possível”, estaria tomando a verossimilhança mais como uma adequação a um conjunto de verdades documentado pela tradição291. Nesse sentido, acaba optando por um modelo extraído da crônica histórica romanceada.

Para o autor de Vidas Secas, tal procedimento de recuperar “retalhos de coisas velhas e novas importadas da França, da Inglaterra e da Rússia” era coisa do passado. Os escritores de seu momento de enunciação teriam passado a se fiar apenas em seus sentidos, ao mesmo tempo em que não precisavam mais exibir-se às portas da Garnier; assim, podiam ficar em suas cidades sertanejas, realizando uma “honesta reportagem” da vida do interior. Na sua opinião, tal iniciativa teria contribuído para o desaparecimento dos “processos de pura composição literária” nas obras que tematizavam o Nordeste. Por essa diretriz, subentende-se que seu conceito de verossimilhança colocava em primeiro plano a perspectiva de não se afastar do ambiente que se conhecia e observar atentamente a conformação deste (com ênfase na contemporaneidade). Outro ponto fundamental era não confiar demais na imaginação, o que sempre levava à criação de produtos fantasiosos.

No decorrer do texto, Graciliano particulariza seu argumento tomando como exemplos as produções de seus companheiros de geração Raquel de Queirós, Jorge Amado e José Lins do Rego. Sobre este último, chega a destacar:

290 ALMEIDA, José Maurício Gomes de. A tradição regionalista no romance brasileira. Rio de Janeiro:

Topbooks, 1999.

291 Idem, ibidem.

O sr. Lins do Rego criou-se na bagaceira de uma engenho, e julgo que nem sabe que é bacharel.

Conservou-se garoto de bagaceira, o que não lhe teria acontecido se morasse no Rio, freqüentando teatros e metendo artigos nos jornais. Aqui está bem. Quando o cheiro das tachas vai esmorecendo, dá um salto a uma engenhoca, escuta Zé Guedes, seu Lula, a velha Sinhazinha292.

O autor de Doidinho merece destaque por encontrar-se discursiva e afetivamente próximo da realidade que se propunha a tratar, trabalhando com certas tópicas sugeridas por fatos e cenas nordestinas, deixando de lado, na opinião do articulista, uma representação estereotipada e artificial da região. Para que esta última não tornasse a ocorrer colaborava muito a relativa proximidade física daquele que escreve com o mundo figurado em seus romances. Trata-se de um momento em que os principais expoentes da chamada geração de 1930 ainda se encontravam no Nordeste e se valiam dessa condição como argumento para reforçar a força e a “verdade” do romance de caráter regional que produziam.

Em “Suor”, texto saído na Folha de Minas de Belo Horizonte, em fevereiro de 1935, essa posição fica ainda mais destacada:

O escritores atuais foram estudar o subúrbio, a fábrica, o engenho, a prisão da roça, o colégio do professor cambembe. Para isso resignaram-se a abandonar o asfalto e o café, viram de perto muita porcaria, tiveram a coragem de falar errado como toda a gente, sem dicionário, sem gramática, sem manual de retórica. Ouviram gritos, pragas, palavrões, e meteram tudo nos livros que escreveram.

Podiam ter mudado os gritos em suspiros, as pragas em orações. Podiam, mas acharam melhor pôr os pontos nos ii293.

Além de ver de perto, estudando as paisagens a serem representadas, quase como repórteres, os romancistas, se quisessem construir obras verossímeis, deveriam trazer para o discurso artístico o modo de falar das pessoas que viviam nesses espaços. A noção de verossimilhança do autor, insistentemente, destaca tal exigência formal. Ele repudia os diálogos antigos, marcados por tabaréus bem falantes, por “pedantismos” colocados na boca dos matutos. Era preciso que o escritor fizesse com que seus personagens falassem “como toda a gente”. Essa preocupação, por sua vez, já aparecia nas Cartas a Cinicinato, sobretudo quando Távora se refere ao romance Iracema, de Alencar:

292 RAMOS, Graciliano. op.cit.

293 RAMOS, Graciliano. Suor. Folha de Minas, Belo Horizonte, 17 fev. 1935. Texto também publicado em Linhas Tortas (São Paulo: Martins, 2005) com o título “O romance de Jorge Amado”, p.129.

Há um grande erro de forma na obra do Sr. Alencar: essa linguagem sempre figurada, que ele põe a cada instante na boca dos bárbaros, como se fossem todos poetas.

Está enganado; o uso, que faziam dos tropos, era determinado tão somente pela necessidade, quando tinham de exprimir as idéias abstratas, para as quais lhes faltavam termos. Fora disso, o seu modo de exprimir havia de ser grosseiro, rústico e simples, porque a mais lhes não permitia subir o estado de embrutecimento intelectual e moral, em que seu espírito jazia imerso. É o que dizem todos os autores294.

Tal afirmação de Távora parece antes ancorada em autoridades estabelecidas (“dizem todos os autores”), do que na aparente observação efetiva do modo de falar do sertanejo, reivindicada pelo autor de Angústia. Em outro sentido, relaciona-se mais a retomada de um lugar-comum consolidado sobre os espaços interioranos: a idéia de se tratarem de regiões de hábitos bárbaros e licenciosos, de população embrutecida, que, portanto, deveria falar e agir segundo estas coordenadas. Graciliano também tem essa tópica em seu horizonte, mas enfatiza que ela seria melhor respaldada pelo contato “efetivo” do escritor com os habitantes de tais lugares incultos.

No prefácio de O Cabeleira, Távora volta a tratar das letras nacionais, focando sua atenção, sobretudo, no que nomeia como “literatura do Norte”. Nesse movimento, acaba lançando as sementes de um programa regionalista. Na sua opinião, as obras literárias produzidas na parte setentrional do país tinham mais elementos para se apresentarem como autenticamente brasileiras, filhas da terra, quando comparada às produções do Sul. Isso ocorreria porque a região nortista manteria seus costumes e tradições de forma mais intacta, uma vez que fora menos exposta ao influxo de estrangeiros, tal como acontecera com a porção mais meridional do país, sobretudo quando se pensava na Corte. Diante das condições latentes naquele espaço tradicional, o escritor cearense vaticina:

Por infelicidade do Norte, porém, dentre os muitos filhos seus que figuram com grande brilho nas letras pátrias, poucos têm seriamente cuidado de construir o edifício literário dessa parte do império que, por sua natureza magnificente e primorosa, por sua história tão rica de feitos heróicos, por seus usos, tradições e poesia popular há de ter cedo ou tarde uma biblioteca especialmente sua295.

Essa profecia parece de ter sido atendia nos anos que se sucederam. Referindo-se especificamente à produção que se fazia no Nordeste (nesse momento, já uma região

294 TÁVORA, Franklin. op.cit, p.250.

295 TÁVORA, Franklin. O Cabeleira. São Paulo: Ática, 1977, p.11.

autônoma, desmembrada do “Norte”, antiga divisão administrativa)296, Graciliano parece confirmar a realização de tal prognóstico, lançado por Távora:

O trabalho que há no Nordeste é mais intenso do que em qualquer outra parte do Brasil, tão intenso que um crítico, visivelmente alarmado com as produções daqui, disse ultimamente que não é só no Norte que se faz literatura. De certo. Era indispensável, porém, que nossos romances não fossem escritos no Rio, por pessoas bem intencionadas, sem dúvida, mas que nos desconheciam inteiramente297.

No entanto, ao exaltar a literatura de sua região natal, o escritor alagoano não se detém naquilo que ela apresentava de pitoresco. Muito pelo contrário. Para ele, o principal motivo de sucesso dos livros nordestinos seria a suposta “fidelidade ao real” de seus realizadores. No momento em que Graciliano enuncia tal posicionamento o chamado “romance de trinta” já desfrutava de destaque nos meios intelectuais. Deixava de ser taxado como puramente regionalista, para ser alçado à condição de representante da nacionalidade. Trata-se de um momento em que ganha ênfase a análise sociológica do homem brasileiro, num contexto de institucionalização pelo Estado da cultura popular, o que confere às produções de Jorge Amado, José Lins do Rego, Raquel de Queirós, entre outros, o estatuto de obras preocupadas com a nação e com seu povo, mestiço, pobre, inculto em suas manifestações sociais. “A literatura passa a ser vista como destinada a oferecer sentido às várias realidades do país; a desvendar a essência do Brasil real”298.

Em “Um romancista do Nordeste”, crítica estampada na revista carioca Literatura, em junho de 1934, Graciliano se dedica a examinar a obra de José Lins do Rego, que naquele momento vinha de lançar Doidinho. Depois de exaltar a produção do romancista paraibano, chegando, inclusive, a afirmar que a obra dele tinha mais coesão que a de Vitor Hugo, Anatole France, e Machado de Assis, o articulista repudia justamente as passagens mais “pitorescas” de Menino de Engenho: as descrições de uma seca e de uma queimada. Na sua opinião, esses trechos poderiam desaparecer sem desvantagem para o conjunto, uma vez que, apesar de bem feitos,

296 Termo utilizado pela primeira vez, em 1919, para designar a área de atuação da Inspetoria Federal de Obras contra as Secas (IFOCS); tal região seria uma parte do antigo Norte, caracterizada por longos períodos de estiagem. Em função disso, requisitava uma atenção maior do poder público federal. “O Nordeste é, em grande medida, filho das secas; produto imagético-discursivo de toda uma série de imagens e textos, produzidos a respeito desse fenômeno, desde que a grande seca de 1877 veio colocá-la como problema importante para esta área” (ALBUQUERQUE, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana; São Paulo: Cortez, 1999, p.68).

297 RAMOS, Graciliano. O romance do Nordeste, Diário de Pernambuco, Recife, 10 mar. 1935, 2ª seção, ano 110.

298 ABUQUERQUE, Durval Muniz de. op.cit, p.107.

já haviam sido explorados por literatos de outras épocas, entre eles José de Alencar e Graça Aranha.

Graciliano, portanto, considerava o “excesso de tintas” prejudicial, sobretudo, na abordagem dramática de tais lugares-comuns sertanejos, fundados em certa idéia de que a vida nos espaços interioranos seria guiada pelos ciclos da natureza. Ao mesmo tempo, para o romancista, os escritores precisavam deixar de lado também os pormenores “inúteis”, cultivados pela escola realista, e mostrar os personagens por dentro, “vivos” e “inteiros”. Tais pontos de vista se consubstanciaram, sobretudo, em seu romance Vidas Secas (1938). Em carta, na qual trata da obra, o autor comenta:

Fiz um livrinho sem paisagens, sem diálogos. E sem amor. Nisso, pelo menos, ele teve alguma originalidade. Ausência de tabaréus bem falantes, queimadas, cheias e poentes vermelhos, namoros de caboclos. A minha gente, quase muda, vive numa casa velha de fazenda. As pessoas adultas, preocupadas com o estômago não têm tempo de abraçar-se. Até a cachorra é uma criatura decente, porque na vizinhança não existem galãs caninos299.

Portanto, nada de tragédias hiper-dimensionadas pela apresentação dramática do espaço ressequido e castigado pela seca, nada de namoros romanceados, nada de heroísmos, com o propósito de exaltar os sertanejos. O pressuposto do autor, de acordo com as coordenadas apresentadas até aqui, parece ser o de atribuir uma vida ordinária aos retirantes, procurando simultaneamente articular o espaço (físico e social), a ação, os personagens e a linguagem utilizada por estes. Nesse processo, acaba enfeixando uma trama sem grandes peripécias, em que se destaca a pobreza da fala dos tipos colocados em cena. Tais aspectos parecem mimetizar e vivificar as tópicas da monotonia associada ao sertão, bem como do embrutecimento dos habitantes que lá habitavam, destituídos de subsídios lingüísticos para compreenderem o mundo em que viviam.

Se em Távora há a perspectiva de exaltação e mitificação do dado regional (especificamente a natureza “magnificente e primorosa”, a história de feitos heróicos, usos e tradições)300, em

299 RAMOS, Clara. Mestre Graciliano – confirmação humana de uma obra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p.129.

300 No que diz respeito ao sertão e a seus habitantes, é com O sertanejo (1875), de José de Alencar, que essa perspectiva de engrandecimento ganhara maior destaque. Nessa obra, por mais que procurasse conferir estatuto de real ao relato, localizando a ação num meio sociocultural que lhe era próximo (sua terra natal), o autor imprime tanto ao herói como ao espaço representados dimensão épica e um tratamento mítico. Dessa maneira,

Graciliano o propósito é muito mais de exposição (denúncia) dos problemas (econômicos, políticos e sociais) enfrentados por aquele espaço e por seus viventes301, norteando-se por um protocolo analítico que mesclava doses de sociologia e psicologia em meio ao tratamento da matéria ficcional. Portanto, não há a perspectiva encomiástica ou saudosa dirigida aos personagens ou ao próprio lugar representado. Seu objetivo seria dar a conhecer aquele espaço arruinado, bem como os habitantes deste, norteando-se pela necessidade maior de estudo da “realidade do país”. O autor de S.Bernardo, portanto, adota uma perspectiva nacionalista crítica, sem rasgos de nostalgia pelo passado ou de euforia pelas mudanças futuras. Parece defender a hipótese de que só se conhecendo as ruínas nacionais se poderia construir algo novo: as feridas só seriam curadas se se convivesse com elas.

Vale ressaltar que nesse processo a sempre aludida “realidade da região Nordeste” seria tomada por Graciliano como algo pré-existente, como uma espacialidade natural que deveria ser captada “fielmente” pelo discurso literário. No entanto, como se sabe, longe de apenas representar esse mundo, seus romances, bem como os de seus companheiros da geração de 1930, participaram ativamente do processo de invenção da própria região. Ao proporem uma nova visibilidade e dizibilidade para o sertão pressupunham a emergência ou a resignificação de conceitos, temas, objetos, figuras, imagens que permitiriam ver e falar de forma diferenciada. Quando o escritor alagoano rebaixa o protocolo romântico e reivindica uma outra maneira de produzir sentido sobre aquele espaço, mostra ter tal perspectiva em seu horizonte.

No entanto, por mais que Graciliano aparente ter consciência de que o espaço é uma construção discursiva, reconhecendo as relações de poder e saber que o instituíam historicamente302, o escritor se coloca como detentor de uma verdade transcendente sobre região nordestina, a qual deveria ser por ele revelada. Nesse sentido, sua estratégia seria a de culpabilizar e diminuir o modelo romanesco anterior e, paralelamente, afirmar a superioridade realística da produção de Jorge Amado, José Lins do Rego, Raquel de Queirós e de outros artistas que naquele momento se dedicavam a escrever sobre o Nordeste. Tal procedimento,

continua considerando a arte literária como uma forma de afirmação e glorificação da nacionalidade ao tratar do homem e da paisagem sertaneja.

301 Em sua produção cronística e ficcional é comum o escritor se referir à população sertaneja por meio do termo

“viventes”, o que atribuía a esta certa brutalização e animalização. A palavra, inclusive, está no título do livro póstumo Viventes das Alagoas. Segundo Ricardo Ramos, filho de Graciliano, a sugestão de nome desta obra fora dada por Jorge Amado (RAMOS, Ricardo. Retrato Fragmentado. São Paulo: Editora Siciliano, 1992, p.35).

302 Noção extraída, sobretudo, dos capítulos “O olho do poder” e “Sobre a Geografia” do livro Microfísica do Poder (Rio de Janeiro: Graal, 1999), de Michel Foucault.

como se verá a frente, deve ser enquadrado num contexto específico de disputas no campo literário.