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As publicações dos “Quadros e costumes do Nordeste” na imprensa

PARTE I – Divulgação e recepção dos textos e atrajetória jornalística de Graciliano Ramos jornalística de Graciliano Ramos

Capítulo 1 – Graciliano e a edição das crônicas

1.4. As publicações dos “Quadros e costumes do Nordeste” na imprensa

seu status de romancista celebrado pela crítica: gradualmente, o cronista subordina seu discurso aos parâmetros fornecidos pela entidade cultural chamada Graciliano Ramos. Dessa maneira, paralelamente à apresentação e à organização das crônicas faz-se necessária a observação do percurso do romancista, tendo em vista o intercâmbio entre as duas atividades.

Tais alterações na postura do cronista Graciliano podem ser observadas tanto nos textos de Cultura Política, nos quais ele aborda temas sertanejos, quanto em suas demais colaborações centradas no universo literário carioca, que ganham atenção especial, sobretudo, após sua saída da prisão. A crônica recorrentemente distancia-se das características associadas ao gênero desde o século XIX40 para se aproximar dos protocolos do artigo, do ensaio e também do conto.

Numa explicação de cunho predominantemente biográfico, Brito Broca, em prefácio à 17a edição de Linhas Tortas41, ressalta que, sobretudo, após a saída de Graciliano da prisão, em 1937, “o ficcionista teria absorvido o cronista”. Segundo ele, esta seria a razão da evolução pouco sensível entre os textos jornalísticos da segunda permanência do escritor no Rio de Janeiro e a colaboração deste, encoberta pelo pseudônimo J. Calisto, em O Índio. “Na ficção ele concentraria toda sua energia depois de um período de hibernação: já não sobrava potencial literário para que Graciliano o empregasse na crônica”42. No entanto, admite-se aqui que o mais correto seria enxergar tal mudança não como uma queda de qualidade, mas apenas como uma mudança de orientação, como já fora sinalizados acima.

década de 1940, e parcialmente recolhidos em Viventes das Alagoas. Em linhas gerais, tal escolha se justifica em função tanto do mérito literário (segundo Ledo Ivo, tratam-se das melhores páginas de “jornalismo literário” produzidas pelo autor43), quanto do caráter polêmico e controverso desses textos, escritos para o principal veículo de propaganda ideológica do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo – regime que encarcerou o autor de Angústia, sem acusação prévia, de março de 1936 a janeiro de 1937.

Nesse sentido, procurar-se-á examinar o efeito produzido por tais escritos na revista oficial, ou seja, privilegiar-se-á o estudo dos mesmos em seu ambiente primeiro de veiculação, resgatando-se os vínculos circunstanciais de momento que os orientavam e os debates culturais dos quais eles participavam naquele momento histórico específico.

Quando começa a colaborar com o periódico getulista, o artista alagoano já se apresentava como um escritor consagrado, assinando seus textos jornalísticos com o nome pelo qual se tornara literariamente conhecido. Não por acaso, até então, havia publicado Caetés (1933), duas edições de S. Bernardo (1934 e 1938), Angústia (1936), Vidas Secas (1938) e A terra dos meninos pelados (1939), além de um conjunto de mais de 130 crônicas, contos e artigos em jornais e revistas de todo o país, sobretudo, da capital federal.

Ao todo, entre 1941 e 1944, Graciliano publicou vinte e cinco textos em Cultura Política, sua participação mais intensa, sistemática e duradoura num único veículo: dezoito colaborações nos primeiros dezoito números quando a seção ainda se chamava “Quadros e costumes do Nordeste” e as narrativas eram identificadas, não por títulos individualizados, mas por numerais romanos em seqüência crescente; quatro no momento em que seus escritos passaram a ser enquadrados como “Quadros e costumes regionais”; outros dois após nova abreviatura do nome da seção, quando ela reduziu-se a “Quadros regionais”; e um no segmento

“Literatura”, quando os quadros deixam de existir44. Abaixo segue a disposição das colaborações do escritor no periódico:

• “Quadros e costumes do Nordeste”45

o “Quadros e costumes do Nordeste I” (“Carnaval”), ano 1, n.1, mar. 1941.

43 IVO, Ledo. O mundo concentracionário de Graciliano Ramos. In: Teoria e celebração. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1976, p.96-97.

44 A partir do número 43, de agosto de 1944.

45 Neste segmento “Quadros e costumes do Nordeste”, como os textos não apresentam títulos individualizados, cada referência vem acompanhada do nome da seção e do número romano correspondente entre aspas e, depois, entre parênteses, da designação que o texto recebera ao ser publicado em Viventes das Alagoas.

Datiloescrito do 17º texto dos “Quadros e costumes do Nordeste”, de Graciliano Ramos, com alterações do próprio autor, publicado integralmente em Cultura Política (ano 2, n.17, jul.1942, p.348). Trata-se do único documento do gênero localizado no Arquivo Graciliano Ramos, no IEB.

o “Quadros e costumes do Nordeste II” (“D. Maria Amália”), ano 1, n.2, abr.

194146.

o “Quadros e costumes do Nordeste III” (“O moço da farmácia”), ano 1, n.3, maio. 1941.

o “Quadros e costumes do Nordeste IV” (“Casamentos”), ano 1, n.4, jun. 1941.

o “Quadros e costumes do Nordeste V” (“Ciríaco”), ano 1, n.5, jul. 1941.

o “Quadros e costumes do Nordeste VI” (“Habitação”), ano 1, n.6, ago. 194147. o “Quadros e costumes do Nordeste VII” (“Teatro I”), ano 1, n.7, set. 1941.

o “Quadros e costumes do Nordeste VIII” (“Teatro II”), ano 1, n.8, out. 1941.

o “Quadros e costumes do Nordeste IX” (“Bagunça”), ano 1, n.9, nov. 1941.

o “Quadros e costumes do Nordeste X” (“D. Maria”), ano 1, n.10, dez. 1941.

o “Quadros e costumes do Nordeste XI” (“Libório”), ano 2, n.11, jan. 1942.

o “Quadros e costumes do Nordeste XII” (“Desafio”), ano 2, n.12, fev. 1942.

o “Quadros e costumes do Nordeste XIII” (“Funcionário independente”), ano 2, n.13, mar. 1942.

o “Quadros e costumes do Nordeste XIV” (“Um antepassado”), ano 2, n.14, abr.

1942.

o “Quadros e costumes do Nordeste XV” (“Um homem de letras”), ano 2, n.15, maio 1942.

o “Quadros e costumes do Nordeste XVI” (“Um gramático”), ano 2, n.16, jun.

1942.

o “Quadros e costumes do Nordeste XVII” (“Dr. Pelado”), ano 2, n.17, jul. 1942.

o “Quadros e costumes do Nordeste XVIII” (“Transação de Cigano”), ano 2, n.18, ago. 1942.

• “Quadros e costumes regionais”

o “A decadência de um senhor de engenho”, ano 2, n.19, set. 1942.

o “Recordações de uma indústria morta”, ano 2, n.20, out. 1942.

o “Uma visita inconveniente”, ano 2, n.22, dez. 1942.

o “Está aberta a sessão do júri”, ano 3, n.25, mar. 1943.

46 Texto publicado originalmente, com algumas modificações, no Jornal de Alagoas, 18 de junho 1933.

47Texto publicado originalmente, com algumas modificações e sob o pseudônimo “J. Calisto”, em O Índio, ano 1, n.14, 1º maio 1921.

• “Quadros regionais”

o “Um homem notável”, ano 3, n.27, maio. 1943.

o “A viúva Lacerda”, ano 4, n.42, jul. 1944.

• “Literatura”

o “Booker Washington”, ano 4, n.43, jul. 1944.

Desse conjunto, a presente análise deixará de lado apenas dois textos, justamente os dois últimos, que, ao contrário dos demais, fogem do escopo regionalista. Trata-se dos escritos “A viúva Lacerda” e “Booker Washington”, estampados, respectivamente, nos números 42 (julho de 1944) e 43 (agosto de 1944) do veículo. A primeira tematiza o nome de algumas ruas da capital carioca, entre elas a “Viúva Lacerda”, que recebe uma atenção especial do cronista.

Diante da indeterminação histórica da personagem que dava título ao logradouro, ele começa a especular, em tom jocoso, sobre quem teria sido o falecido marido da dita viúva Lacerda, chegando à conclusão de que se tratava do dicionarista português José Maria d’Almeida e Araújo Corrêa de Lacerda48. A segunda aborda a figura de Booker Washington, ex-escravo que se tornara um famoso educador nos EUA49.

A exclusão das duas últimas e o foco nas 23 primeiras colaborações do escritor em Cultura Política se justifica em função do caráter unitário e representativo deste conjunto mais amplo.

Em todo ele predomina a tematização de diferentes aspectos da vida provinciana:

personagens, cenas, práticas, usos e costumes sertanejos, conforme sinaliza o enquadramento regionalista conferido às narrativas pela revista getulista, interessada em compor um amplo painel do país mediante a incorporação simbólica das mais variadas regiões brasileiras50. Além disso, os textos iniciais, sobretudo os 18 textos primeiros, foram publicados no momento de auge da revista (antes da entrada do país na Segunda Guerra), quando, em

48 Ele é o autor do Diccionário encyclopedico ou novo diccionário da língua portuguesa, publicado em Lisboa, por Francisco Arthur da Silva, em 1878. Além disso, aparece como colaborador de Eduardo Augusto de Faria na elaboração do Diccionario de língua portuguesa: para uso dos portugueses e brasileiros (1858).

49 Anos antes, Graciliano fora o responsável pela tradução do livro Memórias de um negro, do mesmo Booker Washington, saído pela Companhia Editora Nacional, em 1940. Seu trabalho de verter para o português esta obra do educador norte-americano fora iniciada em 1938, conforme indica carta dirigida pelo escritor a Anísio Teixeira, em agosto de tal ano (correspondência presente no CPDCO, da FGV).

50 Como se verá, além dos “Quadros e costumes do Nordeste”, havia também os “Quadros e costumes do sul”, sob a responsabilidade de Marques Rebelo, e os “Quadros e costumes do Norte”, escritos pelo jornalista Raimundo Pinheiro.

analogia com o caráter disciplinador e orgânico do Estado autoritário, ela orientava e hierarquizava de maneira mais efetiva o conteúdo do material veiculado em suas páginas.

Antes de ganharem suporte livresco descrito acima, três desses quadros sobre a vida provinciana, saídos originariamente em Cultura Política, foram estampados no periódico comunista Revista do Povo – Cultura e Orientação Popular. Tal fato controverso chama ainda mais a atenção para esse conjunto de narrativas, que apesar de escritas para um órgão de direita, foram republicadas, alguns anos depois, num veículo de esquerda. Trata-se das seguintes colaborações:

• “Quadros e costumes do Nordeste – O Carnaval”, Revista do Povo – Cultura e Orientação Popular, Rio de Janeiro, ano 2, n.4, abr. 1946;

• “Quadros e costumes do Nordeste – O Casamento”, Revista do Povo – Cultura e Orientação Popular, Rio de Janeiro, ano 2, n.5, maio/jun. 1946, p. 5 e 39;

• “Quadros e costumes do Nordeste – D. Maria”, Revista do Povo – Cultura e Orientação Popular, Rio de Janeiro, ano 2, n.6, jul. 1946, p.3-4.

O presente estudo não poderia se furtar ao exame de tal particularidade. Na medida em que se propõe a recuperar a especificidade da ambiência cultural de Cultura Política e os efeitos produzidos pelos textos do artista nesse espaço editorial, recobrará também os sentidos gerados pela republicação dos referidos “Quadros e costumes do Nordeste” no periódico comunista. Como se verá, a veiculação dos quadros regionalistas tanto na revista de direita e como na de esquerda diz muito a respeito do caráter ambivalente dos mesmos, bem como do ajuste semântico operado por ambos os suportes jornalísticos sobre as matérias que estampam.