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Enunciados-tipo e enunciados-ocorrência: proposta de análise

PARTE I – Divulgação e recepção dos textos e atrajetória jornalística de Graciliano Ramos jornalística de Graciliano Ramos

Capítulo 1 – Graciliano e a edição das crônicas

1.6. Enunciados-tipo e enunciados-ocorrência: proposta de análise

Bumirgh adota viés semelhante, afirmando que Graciliano não poderia recusar o acesso a um meio de comunicação “para denunciar injustiças e misérias sociais”66 e revelar o “retrato cru”

da realidade nacional67. No entanto, diferentemente de Melo, assume uma postura aberta de defesa do autor, como se a imagem dele tivesse sido maculada pelos estudos de Antelo e Facioli e precisasse ser reabilitada:

Sabendo-se que existe a insinuação por parte de alguns críticos literários de que o conjunto das crônicas produzidas por Graciliano, durante o Estado Novo, abraça o projeto cultural e político getulista, a pesquisa sobre a sua participação em Cultura Política tornou-se imprescindível para a defesa do não atrelamento do escritor alagoano aos ditames ideológicos estadonovistas68.

Além de propor tal abordagem interpretativa de cunho “salvacionista”, o objetivo final de Bumirgh é preparar uma edição crítica de Viventes das Alagoas. Valendo-se de procedimentos técnicos e científicos extraídos da crítica textual e genética, a pesquisadora recupera e examina detidamente manuscritos, recortes de periódicos e diferentes edições da obra, com o propósito e estabelecer o texto ideal do autor. De maneira geral, esse processo parece incidir sobre sua proposta analítica dos “Quadros e costumes do Nordeste”, pois por mais que leve em conta o suporte jornalístico de Cultura Política, a autora tem em mente o livro, ou melhor, uma imagem acabada e inteiriça do artista, que o processo de edição dos quadros nordestinos em livro ajuda a construir. Nesse sentido, levando em conta o perfil acabado e consolidado de Graciliano, volta-se contra o efeito de contradição e incoerência que tais escritos possam produzir.

Cultura e Organização Popular (tipo II), seja no livro Viventes das Alagoas (tipo III) 69. Neste último caso, deixam de se portar como os “Quadros e costumes do Nordeste” da publicação oficial, na qual não apresentavam título individualizado (as narrativas eram apenas numeradas), para comporem outro tipo de unidade, expressa pelo nome da obra: como visto, enquanto o termo “viventes” remete à população sertaneja, tratada com certa bestialização,

“quadros e costumes” recupera determinada dimensão etnográfica dos espaços nordestinos, não se restringindo a uma única localidade (“Alagoas”)70.

Conforme referido anteriormente, o livro pode ser tomado como uma grande miscelânea que agrupa diferentes textos de Graciliano e prevê outro tempo de leitura (reivindicado pelo próprio formato em questão), além de atribuir outra função primordial aos “Quadros e costumes do Nordeste”: ao retirar-los de seus espaços primeiros de veiculação e juntá-los a escritos saídos em momentos e espaços distintos, faz com que tais crônicas deixem de se vincular de maneira direta às finalidades estabelecidas pelos periódicos supracitados e passem a ser tomadas, preferencialmente, como textos periféricos aos romances centrais do autor.

Nesse sentido, ajudariam não só a compor, adensar e iluminar as obras maiores de Graciliano, mas, sobretudo, a explicar a figura deste, na medida em que passariam a ser tratadas como suporte informativo para se apreender o pensamento e as diretrizes do artista, presentes, por exemplo, em S. Bernardo, Vidas Secas, Infância etc.71.

Portanto, desalojadas da revista oficial e agrupadas de maneira contígua em livro, as crônicas passavam a ser interpretadas segundo outros protocolos de leitura, requisitando, por sua vez, uma atenção diferenciada. Além disso, com a mudança de meio, prevêem um outro tipo de leitor (obviamente, não um sujeito de carne e osso, mas certa figura de destinatário construída pelo texto por meio de sua enunciação), que, por sua vez, terá um outro tipo de atitude diante dos mesmos. Em linhas gerais, os quadros nordestinos, editados no volume Viventes das

69 Maingueneau destaca que os enunciados-ocorrência são aqueles produzidos por enunciações particulares e historicamente localizáveis, cujo sentido pode variar a cada situação enunciativa distinta, ao passo que os enunciados-tipo independem de qualquer enunciação e suporte específicos, revelando-se ser sempre o “mesmo”

ao ser proferido em diferentes contextos comunicacionais. No entanto, o autor adverte que esta última categoria seria apenas uma abstração necessária: “no plano empírico só encontramos enunciados-ocorrência, produtos de atos singulares de enunciação” (MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de lingüística para o texto literário.

São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.9).

70 Vale lembrar que a obra apresenta de maneira discreta o subtítulo “Quadros e Costumes do Nordeste”. Na folha de rosto da segunda edição, enquanto o nome “Viventes das Alagoas” é escrito em capitulares, no topo da página, a frase “Quadros e costumes do Nordeste” aparece com um tipo muito menor, entre parênteses, abaixo de uma ilustração que remete à crônica Dr. Jacarandá.

71 Deve-se considerar, aqui, o fato de o livro ser lançado num contexto de publicação das obras completas do escritor pela Martins em 1962, tal como relato anteriormente.

Alagoas, voltam-se preferencialmente aos conhecedores da obra de Graciliano, que, em regra, irão encontrar em tais escritos elementos para justificar a biografia do autor ou especificar passagens de seus romances, compondo um perfil mais unitário do mesmo.

Considerando-se as leituras dos “Quadros e costumes do Nordeste” arroladas acima, pode-se afirmar que a maior parte delas procura tomar os textos como enunciados-ocorrência do tipo III, ou seja, considera, sobretudo, a edição destes no suporte livresco, deixando de lado tanto a especificidade da veiculação jornalística como o caráter contraditório dos mesmos. Em geral, tais abordagens prevêem interpretações que levem em conta uma imagem mais bem acabada do escritor e de sua obra, sobretudo a perspectiva de um Graciliano artisticamente consagrado e independente, apesar do vínculo oficial com o PCB e das pressões do realismo socialista72. Dessa maneira, acabam deixando de lado a especificidade do momento histórico de publicação original dos quadros nordestinos, algo previsto pelas leituras de tipo I.

Tal procedimento está na base das resenhas de jornal sobre o lançamento do livro, bem como das leituras realizadas por Mercadante, Mello e Bumirgh. Ainda que tais autores retomem as propostas da revista (sobretudo os dois últimos), apóiam-se na idéia de um escritor herói, com um perfil estabelecido, como se o único propósito de Graciliano nas páginas da principal publicação do regime fosse combater o Estado Novo. Em sentido oposto, Antelo e Facioli consideram, prioritariamente, os textos como enunciados-ocorrência do tipo I, enfatizando uma interpretação crítica dos mesmos, em consonância com o exame geral do suporte jornalístico de Cultura Política. Apesar de certo viés acusatório, adotado em determinados momentos, ambos procuram recuperar o enquadramento histórico e as particularidades da veiculação inicial dos quadros nordestinos no periódico getulista.

Tomando também os “Quadros e costumes do Nordeste” como enunciados-ocorrência de tipo I, mas privilegiando-os como objetos centrais de análise73, o presente trabalho procurará examinar de maneira detida os efeitos agregativos ou desagregativos produzidos por estes na ambiência jornalística da revista oficial. Ao mesmo tempo, levará em conta o fato até então

72 Sobre essa questão ver o artigo “Roupa suja se lava em casa”, de Adriana Coelho Florent (In: RIDENTI et al.

Intelectuais e Estado. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006), sobre as críticas internas dirigidas por Graciliano ao PCB, no que dizia respeito às orientações zhdanovistas sobre a criação literária, dominantes, a partir de certo momento, em tal agremiação partidária.

73 Os trabalhos de Antelo e Facioli não se restringem ao exame da colaboração de Graciliano no periódico getulista. O primeiro aborda os “Quadros e costumes do Nordeste” ao longo de um estudo sobre diferentes revistas literárias (Cultura Política, Revista Acadêmica e Literatura). O segundo trata dos retratos nordestinos em meio à produção da biografia intelectual do artista alagoano.

desconhecido de uma parte de tais escritos ter sido reproduzida no periódico comunista Revista do Povo – Cultura e Orientação Popular (tipo II). O estudo do papel desempenhado pelos textos no órgão de esquerda servirá para ressaltar as propriedades ambivalentes dos mesmos, ajudando, por fim, a compreender melhor o sentido por eles produzido no órgão de direita. Nesse processo não se tem a intenção de incriminar ou absolver o escritor. Ao invés de justificar suas ações, tentar-se-á compreendê-las, sem perder de vista o perfil de suas convicções e do período histórico em que ele viveu.

Porém, antes de analisar a especificidade da colaboração do autor em Cultura Política ou mesmo, em menor escala, na Revista do Povo – Cultura e Orientação Popular, cabe recuperar a trajetória jornalística de Graciliano como forma de especificar melhor o lugar ocupado pelos

“Quadros e costumes do Nordeste” no conjunto de suas produções estampadas em jornais e revista. Nesse processo, partir-se-á do início de seu trabalho efetivo como rabiscador de textos em prosa para jornais – a série “Traços a Esmo” –, publicada jornal fluminense Parayba do Sul, prosseguindo-se até suas últimas produções dirigidas, sobretudo, a publicações vinculadas, oficialmente ou não, ao PCB.