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A reificação e a cultura, paradigmas para tomada de consciência

3 O PROBLEMA DA REIFICAÇÃO

3.8 A reificação e a cultura, paradigmas para tomada de consciência

A reificação, reafirmando, toma para si todos os setores da sociedade, e há um setor das relações humanas que é de vital importância para a própria sustentação do homem como ser social, a cultura. Através da cultura o homem é capaz de reproduzir-se no outro, em todas as formas de pensar, agir, comunicar, enfim, está situado nos paradigmas que o homem constrói historicamente.

Para Goldmann (1979, p. 133), “Acrescentemos que, inversamente, ninguém se espantaria mais, hoje, de encontrar análises da vida econômica num estudo sobre a filosofia, a literatura ou a arte”.

Predominantemente a compreensão da própria história no materialismo dialético considera toda a produção da arte produzida e da cultura, também uma relação econômica. Afinal esses setores passaram a ocupar uma parte significativa do pensamento do homem moderno.

Goldmann (1979, p. 134):

Ora, só o simples fato de a religião, a moral, a filosofia, a literatura etc., não agirem além do setor reduzido e não essencial da vida do grupo designado sob a expressão ‘vida privada’, de terem perdido completamente a ação sobre a vida econômica, basta para tirar-lhes grande parte de autenticidade. Assim, as expressões dos signos da própria arte, literatura, música incorporam novos elementos econômicos em seus núcleos de ideias, que passam a mudar o comportamento e ação dos próprios indivíduos. São representações cotidianas que passam a fazer parte da vida privada, no caso da sociedade moderna, substituindo-as por formas menos autênticas e globalizadas.

Não é o caso de examinar em detalhes a importância cada vez maior – para concepção total de mundo – da teoria da arte e da estética na história dos problemas a partir do século XVIII. Trata-se unicamente para nós – como em todos os pontos deste estudo – de fazer aparecer o fundamento histórico e social que deu a estética e à consciência relativa a arte uma importância filosoficamente global, que a própria arte estivesse experimentado uma época de florescimento objetivo e artístico sem precedentes. Ao contrário. Objetivamente, o que foi produzido em termos de arte no curso desse desenvolvimento não sustenta nem de longe, com exceção de alguns casos totalmente isolados, a comparação com as épocas anteriores de florescimento. Trata-se aqui de importância teórica, sistemática e ideológica que o princípio da arte assume nessa época. O espírito da estética refloresceu, não mais como os paradigmas estéticos do século XV até XVIII, mesmo com o assédio da própria burguesia em manter-se como apreciadora nata da arte e da literatura. Surge uma arte emanada inclusive no viés filosófico de Kant e outros intelectuais que discutiram a nova estética para o século XVIII. Assim, assume um papel dinamizador da arte com representatividade hierárquica do valor de uso.

Goldmann (1979, p. 134):

Isso é fácil de constatar em qualquer domínio da vida espiritual. Atenhamo- nos – apenas a título de exemplo – à literatura e ao cinema. Um livro ou um filme são, em primeiro lugar, entre outras coisas, mercadorias. Como tal, inserem-se num setor da produção capitalista que não sobreviveria se não fôsse rentável, se não produzisse lucros.

Nesse sentido, a arte e a cultura tomam forma de mercadoria e dos anseios da sociedade, que penetra no imaginário da sociedade e assume o valor de uso ao que se produz na abstração da arte. No entanto é fácil compreender que as questões da arte e da filosofia clássica na época da reificação apresentam também problemas complexos (GOLDMANN, 1979).

A apropriação do imaginário pelas forças da reificação tem um efeito mercantilista, pode se afirmar, até de imediato, dependendo, o que se poderia dizer nos dias de hoje, como grande poder de difusão de ideias através dos meios de comunicação de massa e a rapidez como isto acontece. O valor de uso da obra sobressai no lucro que esta possa dar para seu produtor, e o artista se torna secundário nessa ordem.

Para Goldman (1979, p. 135):

A difusão de uma obra ou de um filme depende, mesmo que por enquanto façamos abstração da intervenção ideológica de certas forças sociais ou institucionais (censura, ligas femininas de defesa da moralidade, etc.) das categorias mentais, da dos eventuais compradores. Assim a dominação quase total da reificação sôbre a enorme maioria dos membros da sociedade, a redução do que chamamos de busca da autenticidade subjetiva a um grupo limitado de indivíduos, que constituem apenas uma fração pouco importante no conjunto da sociedade, explica a razão de a

literatura ou o cinema ou a terceira classe, isto é, desprovido de qualquer preocupação de autenticidade, assegurem o máximo de lucro. Chega assim – mesmo no plano da psicologia individual do escritor ou do diretor de cinema – ao lado do poeta do romancista ou do cineasta romântico da ‘profundidade’ que ainda traduzem em nível intelectual ou literário mais ou menos elevados a psicologia reificada da massa pequeno-burguesa cujo núcleo é constituído pela ruptura entre uma alma ‘profunda’ e ‘essencial’ e uma realidade cotidiana sem importância (a história da prostituta de alma pura, do gangster simpático que gosta de brincar com trenzinho elétrico porque teve a infância infeliz, do “homem de qualidade” grande proprietário que pratica a extorsão, etc.) ao escritor de romance de série negra ou ao jornalista do correio sentimental.

Assim, todas as expressões da arte sofreram mudanças nas motivações e emoções do artista, e os sentimentos que envolvem o artista em sua relação com a própria arte se mistifica no mesmo preâmbulo das mercadorias comuns da sociedade de lucros. Parece um problema do próprio marco temporal do racionalismo da sociedade moderna. Lukács (2003, p. 258):

[...] o horizonte que encerra a totalidade aqui criada e suscetível de ser criada e, no melhor dos casos, a cultura (Isto é, a cultura da sociedade burguesa) como algo que não pode ser derivado, que deve ser aceito como tal como ‘facticidade’ no sentido da filosofia clássica.

A literatura sempre representou sentimentos alheios à força dos anseios do mercado e da sociedade burguesa, do mundo capitalista.

Para Goldmann (1979, p. 137, grifo do autor):

Com o passar do tempo, porém, a medida em que a reificação foi fazendo progresso, a ruptura entre a realidade social a busca do humano acentuou- se a tal ponto – pelo menos no mundo capitalista – que a expressão dessa busca teve de ceder lugar à simples constatação e descrição de uma realidade social reificada inumana e privada de significação. De modo que ao lado dos escritores que – diante da redução progressiva do individuo a um simples fait diversI querendo contudo preservar o caráter humanístico de sua obra e procurando outras fôrças que pudessem representá-lo – escreviam o romance da família, da nação, da classe etc., outros acentuavam cada vez mais a descrição de um mundo reificado e absurdo, seja deixando a busca do humano exprimir-se de modo implícito, seja eliminando-a totalmente. O leitor em Kafka, Camus e, na literatura contemporânea, em escritores como Robbe Grillet, cujo último romance, La Jalouise, é um autêntico protocolo da reificação de um mundo no qual só as coisas agem, no qual o tempo humano desapareceu e no qual o próprio homem se torna mero espectador, reduzido ao estado mais abstrato: um olho que vê e registra.

Em particular a obra de Grilett, uma das figuras mais associadas com o movimento denominado nouveau roman (“novo romance”), mostrava o homem lúcido, porém em estado de coisas. A obra de Kafka, e sua relação com a sua origem judaica mostra seus desencantos demarcados, mostra indivíduos preocupados com um emaranhado de coisas impessoais e um mundo cheio de burocracia. A obra de Albert Camus, que o autor se refere, tem uma relação com um

passado aterrorizado pela Primeira Guerra Mundial e a crítica à nova ordem moral e ética pós-guerra.

Goldmann (1979, p. 137):

É interessante assinalar que enquanto no plano de teoria econômica a análise de reificação estava pràticamente feita em 1867, por ocasião da publicação do tomo I de do capital, ela só teve expressão na literatura 60 ou 90 anos mais tarde, quando já começa a retroceder sèriamente na realidade social e econômica. A defasagem entre a expressão dos fenômenos sociais nos diferentes domínios da vida intelectual constitui um aspecto importante mas pouco estudado da realidade histórica, e que seria necessário tentar explorar. Isso só seria frutífero, porém, a partir de certo número de análises concreta, que só elas, permitirão talvez, um dia, chegar a qualquer verdade de ordem mais geral.

A reificação não é uma concepção teórica nova, muito embora ela represente uma grande novidade nos fóruns de discussões sobre a teoria marxista. Mas para que haja a compreensão e constatação desse fenômeno é necessário que uma sociedade mostre a sua inclinação para o capitalismo e que sua legislação permita o trânsito livre do capital dentro de todos os setores. Com efeito, as manifestações psicossociais e afetivas se mostram logo, com breve evidência, e podem ser observados.