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Capítulo 5. A constatação da qualificação resignada Um balanço sobre a má

1.2. O debate sobre a qualificação suscitado pela revolução microeletrônica

1.2.6. A relação entre a educação formal e a qualificação profissional

Em toda a bibliografia visitada sobre o tema em questão, a educação formal aparece indissociada da educação para o trabalho. Se no campo da qualificação profissional existe uma verdade absoluta, axioma ou uma tese inquestionável, essa diz respeito à instrumentalidade virtuosa que a educação presta à formação profissional. Desde que Owen formulou a sua primeira teoria, essa relação esteve presente em todas as contribuições prestadas à capacitação dos trabalhadores, desde Marx, Engels, Proudhon e Gramsci até Friedmann, Naville, Rolle e Freissenet, juntamente a outros tantos, que seria impossível citá-los. Se, por um lado, essa relação nem sempre foi bem compreendida pelos educadores - posto que boa parte deles, amiúde, não abre mão da falsa polêmica educação para a vida versus a educação para o trabalho - por outro, ela nunca foi negada por uma importante parcela dos profissionais da educação.

Diferentemente dos países de capitalismo avançado - que já universalizaram os seus sistemas educacionais, restando-lhes a incumbência menos onerosa de imprimir-lhes mais qualidade - e distoante ainda das economias asiáticas mais dinâmicas – em que a universalização tem sido perseguida concomitantemente à busca por níveis de excelência – a política educacional brasileira ainda tem como diretriz mais relevante tratar a educação como gasto, em vez de investimento.

Dentre os tomadores de decisões, planejadores e os formuladores de políticas públicas das economias centrais e das emergentes, não há quem duvide da contribuição que o sistema educacional presta ao sistema de formação profissional, sendo que, naqueles países, além do financiamento, o debate tem-se deslocado para o campo da pedagogia, tentando identificar o modelo de educação que mais coadune os conhecimentos gerais com as habilidades para o trabalho. Com efeito, ainda que a terminologia seja evitada em virtude das conotações ideológicas do passado, a questão do ensino politécnico reaparece dissimuladamente em inúmeras proposições. Desse modo, a antiga aspiração de Owen ressurge no Século XXI, agora não mais embalada pela utopia romântica e, sim, impulsionada pela nova racionalidade produtiva.

Há uma miríade de teses sobre a relação entre a educação formal e a profissional; entretanto, opto por expor tão-somente a contribuição de Vanilda Paiva porque, além das inúmeras interpretações diferenciadas, a sua análise também sobressai por defender que não há mais sentido em se falar em educação para o trabalho e educação para a vida, em virtude de as demandas ensejadas pela recente evolução tecnológica terem suprimido esse maniqueísmo.

Para a autora, a revolução microeletrônica e o modo de vida por ela provocado exigem mais qualificação da força de trabalho e da população como um todo, sendo que essa nova qualificação não é tão-somente um pré-requisito para a operacionalização dos sistemas produtivos, mas também uma condição para o bom desempenho dos indivíduos frente às novas situações imposta pela esfera do consumo. A nova qualificação não é mais aquela específica implantada pelos sistemas convencionais de formação profissional e, sim, uma formação de caráter geral possibilitada pelos sistemas educacionais. Nesse sentido, sustenta a autora, a teoria de Braverman sobre a desqualificação tendencial está superada, enquanto a tese de Gorz sobre a elevação da qualificação permanece viva. Para a autora: Já não resta qualquer dúvida sobre a elevação tendencial da qualificação. (...) Estamos, pois, perante movimentos que – apesar das contradições específicas – apontam para a elevação do nível médio de conhecimento da população (PAIVA, 1995, p.75).

Nesse raciocínio, sustenta Paiva, no momento em que, no capitalismo avançado, os sistemas educacionais concluíam a sua universalização a fim de atender às demandas

egressas do mercado de trabalho e determinadas pela especialização taylorista, no final dos anos 1970, a revolução microeletrônica irrompeu deitando por terra o modelo de mobilidade social assentado na credibilidade do diploma, impondo uma nova mobilidade credenciada pela meritocracia do novo conhecimento. Para os países desenvolvidos, a questão mais importante no debate sobre a qualificação da força de trabalho, portanto, deslocou-se da universalização para a busca de qualidade dos seus sistemas educacionais; para os periféricos, a questão coloca-se sob uma dupla problemática: universalizar o ensino tornando-o acessível às massas e, ao mesmo tempo, fazê-lo dentro de padrões de qualidade a fim de possibilitar-lhes alguma chance de sucesso nas relações internacionais de troca, posto que: (...) afirma-se hoje que nenhum país com baixos níveis de qualificação geral média pode pretender inserir-se em boas condições no cenário internacional (PAIVA, 1995, p.76).

Assim como Friedmann, Paiva crê que a divisão do trabalho e a tecnologia têm a propriedade de exigir mais qualificação e impactar os sistemas educacional e de formação profissional, sendo que a reintrodução do tema no debate sobre o mundo do trabalho e a sua descoberta pela educação deram-se em decorrência das transformações produtivas provocadas pela revolução microeletrônica. Segundo ela: Tais movimentos estão sendo, desde os anos 80, (...) uma verdadeira inflexão na maneira de enfocar o setor educacional, causada pelo efeito conjunto das sucessivas revoluções tecnológicas e das transformações produtiva e organizacional que as têm acompanhado (PAIVA, 1995, p.85). A aplicação da tecnologia microeletrônica nos processos produtivos tem provocado uma nova junção das tarefas, mas não só daquelas tarefas que Taylor separou, como também de novas funções em que a percepção do indivíduo sobre o processo requer uma visão totalizante. Essa reintegração exige a iniciativa do indivíduo, o que demanda outro tipo de conhecimento lastreado mais na capacidade lógica de raciocínio, que em conhecimentos técnicos específicos.

Diferentemente dos autores aqui visitados, Paiva alerta para um fato inusitado provocado pela revolução microeletrônica: contrariando a lógica das revoluções técnicas anteriores, a presente transformação exige mais qualificação da população como um todo e não apenas da força de trabalho empregada nos segmentos modernos da economia. A

penetração da tecnologia moderna – principalmente, do computador - nos serviços e em todas as esferas da vida privada, ao exigir um nível de interação de todas as pessoas com as máquinas e os softwares, também exige uma maior capacidade de leitura e de interpretação de sinais e de códigos por parte da população (PAIVA, 1995, págs. 77 e 78).

Obviamente, sustenta a autora, há uma demanda geral por qualificação em função do uso generalizado da tecnologia microeletrônica na vida cotidiana e no consumo. Todavia, na esfera da produção, alguns nichos mais modernos e dinâmicos, ou seja, as ilhas de modernidade, tendem a prevalecer, demandando uma qualificação profissional em um nível pronunciadamente mais elevado em relação àqueles demandados pelos segmentos produtivos de menor intensidade tecnológica. Nesse sentido, a tese da polarização das qualificações continua em evidência, mesmo constatando-se a necessidade da elevação da qualificação média geral da população.

Ora, se a necessidade de qualificação não é mais um requisito da esfera produtiva e, sim, da população como um todo, e se essa qualificação é, em primeira instância, ministrada pelo sistema educacional, então qual deveria ser a amplitude, centralidade ou a importância do sistema de formação profissional? Para Paiva, o conhecimento requerido para a interação com as novas ferramentas - independentemente de ser na produção ou no consumo - não é mais dado pelo domínio sobre as especificidades técnicas e, sim, de natureza geral e abstrata. Nesse sentido, embora tenha alguma importância em razão da necessidade de o ensino das especificidades continuar existindo, o sistema de formação profissional perde importância, uma vez que a instrumentalização dos indivíduos com as potencialidades mais relevantes - ou seja, as capacidades de abstração e de pensar criticamente - é da alçada do sistema educacional. Assim: A razão instrumental da nova era é paradoxalmente empurrada pela objetiva demanda de geração de uma razão crítica apoiada sobre conhecimentos gerais e não específicos (PAIVA, 1995, p.72).

Considerando essa premissa como relevante, ainda resta saber como deve ser ministrada essa educação de natureza geral e abstrata, capaz de dotar o indivíduo de potencialidades críticas e de raciocínio abstrato; refiro-me a modelos educacionais; seria a educação propedêudica, generalista ou a politécnica? Diferentemente de vários autores que, apesar de acreditar que a nova divisão do trabalho enseja um nível mais elevado de

qualificação dos trabalhadores, defendem um modelo educacional em que o ensino das humanidades, das artes e das ciências tenham uma trama mais consolidada entre si, Paiva enaltece enfaticamente o modelo politécnico. Para a autora:

As virtudes intelectuais esperadas como resultado do sistema educacional concentram-se sobre uma elevada capacidade de abstração, de concentração e de exatidão (...). Enfatiza-se a importância do pensamento conceptual abstrato como fundamento da ampliação das possibilidades de percepção e de raciocínio, de manipulação mental de modelos, de compreensão de tendências e de processos globais e da aquisição de competências de longo prazo (...). Supõe-se um novo tipo de formação intelectual que facilita a percepção do contexto no qual o conhecimento hoje se aplica. Espera-se da qualificação intelectual de natureza geral e abstrata que seja ela a base para os conhecimentos específicos, mas que também constitua a base da competência que se prova em atividades concretas crescentemente complexas (...). Sobre aquela âncora será possível difundir a polivalência e as novas habilidades cognitivas necessárias à reintegração das tarefas em novo patamar (...). Neste sentido estamos diante de uma recolocação da politecnia, sem as conotações ideológicas que caracterizaram o conceito até o momento

(PAIVA, 1995, págs. 82 e 83).

Por esse raciocínio, no que tange à potencialização da sua força de trabalho, o Brasil teria pela frente três incumbências a fim de enfrentar os desafios postos no Século XXI: (i) universalizar o seu sistema educacional, tornando-o acessível à população como um todo; (ii) imprimir-lhe qualidade, de modo que as potencialidades de natureza geral e abstrata se tornem de domínio mais amplo pela população e; (iii) reestruturar o sistema de formação profissional, de modo que ele interaja com o sistema educacional, tornando-se, assim, um fornecedor de conhecimentos adjetivos e específicos que se sobreponham àqueles fornecidos pela educação geral.

Sintetizando, creio que a maior contribuição de Paiva seja: (i) chamar a atenção para o novo fenômeno que a revolução tecnológica suscita, ou seja, a emergência de uma vasta demanda por qualificação externamente ao tradicional ambiente industrial e; (ii) alertar para a tendência de arrefecimento da polêmica que, há muito, antagoniza os educadores, ou seja, a controvérsia educar para a vida versus educar para o mercado de trabalho. Com efeito, adoto esses dois pressupostos como elementos importantes para a construção de

parâmetros críticos ao sistema de formação profissional brasileiro. Quanto à exeqüibilidade da educação politécnica, o seu debate suscita o mesmo pensamento despertado pela tese sobre o fim da divisão do trabalho, qual seja: ainda que reverbere internamente como uma utopia a ser perseguida no plano prático, moral e intelectual, o máximo que a presente fase do desenvolvimento do capitalismo autoriza a sustentar é que ainda há um longo caminho a ser percorrido antes que se possa emitir uma afirmação tão categórica.