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Capítulo 5. A constatação da qualificação resignada Um balanço sobre a má

1.2. O debate sobre a qualificação suscitado pela revolução microeletrônica

1.2.4. O conceito de competências

descontinuidade entre as empresas, criando o fenômeno da polarização tecnológica entre os segmentos da vanguarda e os da retaguarda. Dessa forma [expõe Rattner] a distinção entre setores dinâmicos e tradicionais reflete uma intensidade de inovação mais alta ou mais baixa de seus efeitos multiplicadores. (...) Todavia, durante o último estágio do ciclo tecnológico, o impacto das inovações se torna mais fraco devido a sua maturidade (RATTNER, 1988, págs. 18 e 19), tornando-se, em decorrência disso, menos palpável a diferenciação tecnológica entre as empresas, ramos ou subsetores.

A idéia do fim da divisão do trabalho pressupõe que a organização da produção industrial caminha para um neo-artesanato refundado sob a égide da tecnologia moderna. Até onde a observação rigorosa das novas experiências autoriza a concluir, é que há uma profunda decadência do taylorismo-fordismo que, inexoravelmente, culminará na sua superação enquanto modelo de organização do trabalho. Pelo que consta em toda a bibliografia visitada, a experiência que mais se aproximou da idéia de neo-artesanato foi aquela empreendida pela Saab-Scania, na Suécia, sendo que, nem mesmo nela, a divisão do trabalho foi extirpada por completo, tendo a empresa recuado da sua ousadia. Para o interesse desse inquérito, independentemente do suposto fim da divisão do trabalho, os novos parâmetros da produtividade e da competitividade - que não são mais um monopólio da indústria - inequivocamente, demandam níveis crescentes da qualificação da força de trabalho.

1.2.4. O conceito de competências

Como se pôde observar ao longo desse capítulo, a qualificação da força de trabalho é um tema controverso, transpassado por conflitos ideológicos e disputado por teorias não raramente conflitantes. No Brasil, confirmando essa conflituosidade, o Senai tornou-se a arena dos confrontos sobre a formação profissional, na segunda metade do Século XX. Em primeiro lugar, isso se deu pela rejeição - por parte do empresariado - à idéia de o custo da formação da mão-de-obra recair sobre os seus ombros; em segundo, pela tentativa - por parte das instituições patronais - de se apropriarem de um instrumento de iniciativa do

Estado e de legítimo interesse público. Todavia, no que diz respeito aos interesses gerais do capital, a disputa mais acirrada e, ao mesmo tempo, a mais sutil e perigosa em torno da qualificação dar-se-ia com a introdução do conceito de competências em substituição ao conceito original de qualificação, ocorrida a partir da constatação de que a revolução de base microeletrônica requeria uma qualificação diferenciada.

O conceito originou-se no meio empresarial, tendo contaminado uma parte nada desprezível da produção teórica sobre a formação profissional, em especial as formulações emitidas pela área educacional. Além de ter sido incorporado pela sociologia francesa, no Brasil, nos anos 1990, esse anacronismo conceitual deslocou-se da esfera empresarial para a governamental, impulsionado pelo espectro mercadológico que (des)orientou os governos após 1994, como o demonstro à frente. No conceito de competências, o saber fazer é deslocado para o saber ser sem que ninguém saiba exatamente o que isso significa, enquanto a racionalidade orientada para os fins é deslocada para a colaboração e o engajamento; nesse contexto, pode ele ser traduzido como colocar-se à disposição do capital ou que os seus interesses devam ser colocados em primeiro plano. Portanto, o conceito enseja uma dimensão ideológica na qual o capital tenta despolitizar e tecnicizar o debate sobre a qualificação, negando a sua condição de relação social e parte constitutiva do conflito entre o capital e o trabalho. Para Ferretti, o conceito de competências despolitiza e tecnicisa o debate em torno da qualificação profissional, porque isto pode significar, no limite, a „naturalização‟ da produção capitalista e a negação como „atrasado‟ o debate político em torno de interesses divergentes (FERRETTI, 2004, p.29).

No discurso empresarial, diz-se que o conceito de competência engloba cognição e comportamento; entretanto, o segundo é mais apreciado, pois, permite que se foque a atenção mais na pessoa que no posto de trabalho. Há evidências empíricas que o arrefecimento da importância das dimensões cognitivas, intelectuais e técnicas da qualificação ocorrem em privilégio da dimensão comportamental30. Para Ferretti, o conceito de competência é tão impreciso que nem mesmo as empresas sabem com defini-lo ou mensurá-lo adequadamente; no capitalismo avançado, tem-se tentado identificá-lo e

30 No Capítulo 3, ao analisar as estruturas do Senai e do Senac, demonstro como o conceito de competências

é, assumidamente, incorporado às diretrizes curriculares e pedagógicas da segunda instituição, como referência do seu modelo de aprendizagem.

dimensioná-lo para que seja incorporado aos currículos e, nessa tentativa, a Pedagogia das Competências começou a ganhar força na Europa, nos anos 1980, sendo que a França a incorporou em 1992.

Uma formação perseguida pelo conceito de competências não contempla desenvolver plenamente as capacidades intelectuais para o enfrentamento das situações desafiadoras e demandantes de efetiva criatividade e iniciativa, muito menos potencializa o indivíduo para o domínio de competências políticas que lhe permitem refletir criticamente sobre a esfera da produção. Portanto, esse conceito não serve como referencial para o objetivo aqui perseguido de analisar o sistema de formação profissional brasileiro, sendo que toda a análise desenvolvida no decorrer desse inquérito toma o conceito de qualificação como central, entendido enquanto a expressão de uma relação social na qual a conflituosidade entre o capital e o trabalho se manifesta.

1.2.5. A apropriação da qualificação pela educação

Como exposto na abertura desse capítulo, o impacto da revolução microeletrônica sobre a esfera da produção teve como resultante, entre outros tantos, o surgimento de novas demandas por educação formal e por qualificação profissional. Esse fato, a partir dos anos 1990, despertou o interesse de outras áreas e de outros profissionais para o estudo sobre a formação da mão-de-obra. Subitamente, o tema ganhou a adesão de inúmeros outros interessados, entre eles, os educadores, economistas, administradores, sindicalistas, engenheiros e os psicólogos. Em princípio, isso seria um evento alvissareiro, tendo em vista que o tema de interesse coletivo, até então, havia sido apropriado pelas elites. O problema, no entanto, é a base conceitual da qual os novos pesquisadores partem para a análise, sendo que boa parte deles tende a ignorar o conhecimento anteriormente acumulado, perdendo, assim, o foco da dimensão social da qualificação.

Não é raro os administradores, economistas, engenheiros e os psicólogos, amiúde, ligados às empresas, adotarem a teoria do capital humano tão em voga no meio empresarial, vislumbrando a qualificação tão-somente como um instrumento para o atendimento às demandas do mercado. A pobreza desse tipo de análise é que a qualificação perde a sua

dimensão social, transformando-se numa estratégia de competitividade. Além do mais, como também o alertou Ferretti (2004), o tema é tão complexo e controverso que nem mesmo as empresas têm a clareza sobre o tipo de formação que elas necessitam.

A adesão ao debate que se mostrava mais promissora - a dos educadores - revelou- se, de certo modo, um tanto frustrante. Até os anos 1990, o tema não despertara tanta atenção desses profissionais, sendo que dois grandes movimentos governamentais daquela década os mobilizaram para tal; são eles, a publicação da Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e o lançamento do Plano Nacional de Formação do Trabalhador (Planfor)31. Para Ferretti (2004), os educadores deixaram-se contaminar pelo viés conservador da LDB e do Planfor, que confundia o conceito de qualificação profissional com o de competências, advindo, daí, as frustrações em relação à contribuição dada, desde então, pelos educadores à causa da qualificação.

Mas, o maior problema reside na apropriação que a área educacional reivindica em relação à qualificação da força de trabalho. Não é incomum a existência de disputas entre as esferas governamentais acerca do exercício do monopólio sobre as políticas ou os programas de qualificação; a própria elaboração do Planfor foi marcada por uma disputa entre o Ministério da Educação (MEC) e o Ministério do Trabalho (MTb), prevalecendo o poder daquele que tinha o maior orçamento - o MEC - independentemente da qualidade da sua proposta. Desde 2007, outra disputa abriu-se entre os dois órgãos, sendo que ambos concorrem pelo monopólio da implantação e o gerenciamento de um programa destinado à certificação profissional; nesse caso, a ausência de um planejamento centralizado de políticas públicas e, principalmente, a não-existência de diálogo levou cada Ministério a montar o seu próprio programa, sendo que ambos não interagem entre si. Ainda em 2008, o MEC travou outra acirrada disputa, tentando resgatar o controle sobre o Senai das mãos do empresariado.

Na concepção de Ferretti (2004), indiretamente, os educadores sempre estiveram envolvidos com a qualificação, posto que ao chegarem ao sistema de formação profissional, os trabalhadores já possuem um nível mínimo de escolarização, sem o qual a construção

31 Há que se registrar, entretanto, a existência de bons trabalhos da área educacional que, há muito, vêm

estudando a formação profissional desde bem antes do frenesi provocado pela revolução microeletrônica; dentre estes trabalhos, faço destaque para Bryan (1983) e Bryan (1992).

das habilidades técnicas não seria possível. Todavia, a adesão à causa da qualificação profissional pelos educadores, apesar de muito bem-vinda, deve ser precedida por dois condicionantes: (i) o entendimento por parte deles que a qualificação é uma categoria social ou um campo de disputas políticas e; (ii) que a maior contribuição que a educação pode dar à força de trabalho é ministrar-lhe uma formação escolar rica em conteúdos, em que o indivíduo seja dotado de raciocínio abstrato e, ao mesmo tempo, de conhecimentos sólidos sobre os mais variados campos das ciências, artes e das humanidades. Se a área educacional não conseguir vislumbrar a importância desses dois condicionantes, tornar-se-á difícil para ela emprestar qualquer contribuição à causa da qualificação profissional.