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Capítulo 5. A constatação da qualificação resignada Um balanço sobre a má

2.3. O novo protagonismo do Setor de Serviços

2.3.3. A Usina Virtuosa da riqueza imaterial

Uma abordagem que demonstra toda a virtuosidade do Terciário, porém, alerta para outro risco diferente daquele que preconiza a consolidação das formas precárias de relações de trabalho é a de J. Rifkin (RIFKIN, 2001). Para o autor, o aspecto mais perceptível da transformação do capitalismo, ao final do Século XX, é a desmaterialização da riqueza, em função do crescimento de todas as modalidades de serviços, evento esse possibilitado pelo desenvolvimento das redes de telemática.

Para Rifkin, essa transformação da economia é um dos eventos mais simbólicos da história, pois significa o abandono da forma pela qual a humanidade enxergou a riqueza, até então, ou seja, a riqueza material. Desde os primórdios da história do homem social, a posse de bens físicos esteve direta ou indiretamente associada ao bem-estar. Na Idade Média, o bem mais precioso era a própria terra. Com a revolução industrial, especialmente, a partir do seu segundo estágio, a posse sobre os bens de consumo duráveis implicou não somente o bem-estar, mas acima de tudo, o status, uma vez que, nas sociedades industrializadas, a mobilidade social esteve diretamente condicionada ao padrão de consumo.

Na nova dinâmica do capitalismo, a posse de bens materiais deixa de ser essencial, sendo que o bem-estar e o status deslocam-se para o consumo de serviços. O intrigante, afirma Rifkim, é que, mesmo quando o bem-estar relaciona-se a bens materiais, ele tende a chegar ao consumidor sob a forma de serviços, em razão da crescente tendência de a locação sobrepor-se à posse de ativos; pois, está-se tornando corriqueiro o aluguel de bens em vez da sua compra.

Na economia contemporânea, tudo se desmaterializa, desde o comércio, as artes e até o dinheiro. Certamente que o comércio de bens continuará existindo, mas ele se desloca rapidamente para o ciberespaço, no e-commerce, desmaterializando a rede física que o mantinha no passado; mesmo existindo, os bens materiais perdem o seu valor comparativamente aos serviços. O mercado fonográfico, por exemplo, se desmaterializou rapidamente, com a disponibilização das músicas na Internet, em formato de mídias sofisticadas. Nesse momento, o mercado cinematográfico também tende a seguir o mesmo

curso. Segundo o autor, a inauguração dessa tendência deu-se em 1971, quando o presidente norte-americano R. Nixon rompeu com o regime cambial de Bretton Woods; até então, o dólar tinha o seu valor lastreado nas reservas de ouro confinadas em Fort Knox - portanto, lastreado na riqueza material - passando, após o seu desparelhamento, a ter um valor abstrato determinado pelo mercado ou, em alguns momentos, pelas conveniências do Federal Reserve. Assim como o dólar, o meio circulante das economias desenvolvidas deixa de ser tangível, passando à imaterialidade, tendo como passaporte ao consumo apenas os cartões de crédito, débito e saque.

Com todo esse dinamismo repousando sobre a riqueza intangível, seria inexorável o deslocamento da importância microeconômica para as empresas do Terciário, cuja acumulação é intensa; nesse sentido, as grandes corporações, trustes e cartéis consolidam- se nos serviços, apequenando os seus congêneres industriais.

Admitindo que a Era do Acesso42 significa, em termos históricos, a entrada na pós- modernidade, Rifkin chama a atenção para os desdobramentos da nova dinâmica do capitalismo no esquema clássico de representação dos espaços de produção da riqueza, ou seja, a tríade Primário, Secundário e Terciário. Para o autor, o deslocamento da produção da riqueza para o terreno da imaterialidade provocou profundos desequilíbrios no comportamento mantido pela indústria em relação aos serviços, consagrando o Terciário como a Usina Virtuosa da riqueza imaterial43.

Todavia, diferentemente da maioria dos estudiosos para quem o maior risco do crescimento do Terciário repousa na pulverização das relações de trabalho, Rifkin adverte para o fato que o fantasma que assombra as sociedades é a possibilidade de a cultura ser absorvida pela economia. Segundo ele:

Se o sistema capitalista continuar a absorver grandes partes do âmbito cultural em sua esfera, na forma de produtos culturais, produções e experiências transformados em commodities, há um risco bem real de a cultura atrofiar a ponto de não mais poder produzir capital social suficiente, e o comércio terá sido arrasado porque o capital social, que é

42 Termo empregado por Rifkin para designar a atual fase do desenvolvimento capitalista.

43 A bem da verdade, Rifkin não emprega a expressão Usina Virtuosa, sendo esta uma interpretação minha,

produzido exclusivamente pela cultura, mas que serve como lubrificante para as operações comerciais, terá secado (RIFKIN, 2001, p.201).

Esse temor de Rifkin não faz sentido. Como o demonstra o segundo tópico desse capítulo, a revolução das telecomunicações é alvissareira, tendendo a provocar outra revolução na cultura e nos valores, ao desmassificar os meios de comunicação e possibilitar a consolidação de uma nova sociabilidade no ciberespaço. Se a cultura tende, por um lado, a ser devorada pelo comércio, por outro, ela resiste, se fortalece e se recria sob outras formas de relacionamento, como crêem Castells (1999) e muitos outros.

Embora Rifkin não entre no debate sobre a demanda por mão-de-obra qualificada no Terciário, a exposição do seu pensamento teve o propósito de evidenciar o dinamismo do setor. Como visto e como retomo, a seguir, por meio da apresentação das idéias de Paiva, Potengy e Chinelli (1997), em ambas as concepções, a explosão dos serviços representa uma ruptura histórica em relação a muitos valores, não apenas do modo de produção capitalista, mas também do próprio processo civilizatório.

2.3.4. Um colchão para o amortecimento da crise do capitalismo

Outra abordagem interessante sobre o papel protagônico do Terciário em relação ao emprego e à qualificação profissional é a de Paiva, Potengy e Chinelli (1997); também reconhecendo a insuficiência do esquema trisetorial em delimitar toda a trama na qual a produção da riqueza ocorre, as autoras sustentam que a sociologia do trabalho não deve menosprezar o setor porque o seu fantástico crescimento, no final do Século XX, configura transformação tão profunda quanto a passagem da economia de base agrícola para a de base industrial. Segundo elas:

(...) embora não haja acordo sobre as dimensões da possibilidade de racionalização do trabalho em serviços em geral, ninguém põe em dúvida o crescente deslocamento do emprego industrial para o terciário, existindo consenso no que diz respeito à relação entre o incremento dos serviços e a complexificação do processo produtivo. Essa tendência parece afetar os grandes equilíbrios sociais e culturais, configurando, na verdade, uma transformação tão profunda como a passagem de uma

economia de base agrícola para uma economia dominada pela indústria

(PAIVA, POTENGY e CHINELLI, 1997, p.123).

As autoras se embasam no argumento de Baethge e Oberbeck (1996) a fim de compreender a transformação econômica e social do final do Século XX. Para Baethge e Oberbeck, as mudanças operadas na esfera da produção, administração e da própria economia, não têm origem no chão-de-fábrica como imaginam muitos; ao contrário, foi a partir dos escritórios onde se concentram, processam e combinam informações que permitem o planejamento global dentro do qual se aciona um tipo de racionalidade (PAIVA, POTENGY e CHINELLI, 1997, p.128) que a economia capitalista promoveu uma ampla racionalização sistêmica, cujos efeitos impactam, disruptivamente, as estruturas sociais.

A racionalização sistêmica é uma integração de cima para baixo originada no Terciário, em que a concentração, processamento e a combinação de informações, levados a efeito por meio das grandes redes de telemática, exigiram até mesmo o enxugamento do trabalho industrial. No entendimento de Baethge e Oberbeck, ao pressionar a expansão do Terciário, a racionalização sistêmica lhe retirou a condição de elemento compensador da crise do capitalismo, abrindo espaços para novas ocupações no mercado formal de trabalho, possibilitando a recomposição das relações virtuosas de trabalho fora da indústria. Por outro lado, a introdução da moderna tecnologia na administração não provocou uma nova onda de taylorização do trabalho intelectual nos escritórios; ao contrário, a complexificação do trabalho provocou uma ampla recomposição das tarefas administrativas, passando a demandar novas habilidades dos seus operadores. Nesse sentido, conclui os autores, a racionalização sistêmica enseja uma gama de possibilidades de reconstrução das relações de trabalho sob novas condições positivas (BAETHGE e OBERBECK, 1996).

Discordando apenas parcialmente dos argumentos de Baethge e Oberbeck, as autoras - Paiva, Potengy e Chinelli - consideram que, apesar das muitas evidências da edificação de relações laborais virtuosas, o Terciário ainda é um colchão para o amortecimento da crise estrutural do capitalismo, cujos efeitos mais perceptíveis manifestam-se por meio da inflexão do emprego industrial e do padrão regulativo do período keynesiano. Todavia, dizem as autoras, mesmo exercendo essa função, não há

razão para a estigmatização que se faz do setor, tendo em vista que, hoje, ele representa um refúgio para as massas trabalhadoras deserdadas pelo industrialismo. Sem descartar a possibilidade de, no futuro, o Terciário consagrar-se como o grande espaço do trabalho protegido, virtuoso e qualificado, Paiva, Potengy e Chinelli (1997) advertem para o fato que, ainda que não se tenha certeza sobre a virtuosidade que, atualmente, o setor encerraria, e mesmo que ele se transforme num abrigo inexorável de subsistência para os excluídos, essas condições, por si, lhe confeririam um campo fértil para o debate; segundo as autoras:

E, mesmo que subsistam dúvidas a respeito da qualidade dos empregos gerados fora do setor industrial (...) e da qualificação por eles requerida, mesmo que este processo se associe de forma inevitável ao crescimento de uma „economia urbana de sobrevivência‟ altamente informatizada, está aí o „locus‟ do debate relevante dos nossos dias (PAIVA, POTENGY e

CHINELLI, 1997, p.122).

Embora, no seu entendimento, o Terciário ainda não possua toda a virtuosidade proclamada por Baethge e Oberbeck, as autoras admitem que a racionalização sistêmica imprimiu-lhe outra dinâmica, na qual a organização do trabalho demanda potencialidades mais nobres da força de trabalho. Nesse sentido, sustentam, o debate sobre a qualificação não pode perder o foco, sendo que a sua orientação deve mirar para além da indústria; segundo Paiva, Potengy e Chinelli:

Mas, diante da evidência do descentramento da atividade industrial (...) o debate sobre a qualificação é hoje – basicamente e em contraste com aquele que dominou quase todo o século [XX] – um debate para além da indústria. A discussão hoje não pode deixar de lado o que ocorre fora da área industrial, nem abdicar do conceito de racionalização sistêmica como instrumento de análise surgido no terciário (...) (PAIVA,

POTENGY e CHINELLI, 1997, p.137).

Com a apresentação das idéias das três pesquisadoras, creio ter construído uma importante base conceitual a fim de sustentar uma das teses subsidiárias desse inquérito, ou seja, que o sistema de formação profissional brasileiro deve conceder mais atenção às demandas advindas do Terciário. Por mais que a tese sobre a extrema virtuosidade dos serviços - sustentada por Baethge e Oberbeck - possa ser posta em questão, não restam

dúvidas que a parte mais significativa das análises do trabalho deverá encaminhar-se para além da indústria e que nenhuma reflexão sobre o setor educacional poderá deixar de ter em conta o que aí se passa (PAIVA, POTENGY e CHINELLI, 1997, p.122).