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Capítulo 5. A constatação da qualificação resignada Um balanço sobre a má

2.1. A nova divisão do trabalho

2.1.1. As técnicas japonesas de produção

O Japão industrializou-se no final do século XIX, a partir da Restauração Meiji, uma reforma ocidentalizante comandada pelo Estado visando modernizar a economia a fim de evitar a capitulação do país ao colonialismo inglês. Mesmo tendo sofrido a destruição do seu parque industrial e capitulado, em 1945, para os Estados Unidos, a reconstrução do pós- guerra foi marcada pela manutenção da estratégia desenvolvimentista estruturada na forte presença estatal, fortalecimento dos grupos nacionais e no domínio tecnológico sobre os bens de consumo duráveis.

O crescimento das economias centrais, no segundo pós-guerra, possibilitou a exportação de capitais na forma de investimentos industriais para fora do núcleo monolítico do capitalismo, sendo que alguns países periféricos se beneficiaram desse movimento de expansão do capital, especialmente o Brasil, que o recepcionou com o Plano de Metas, instalando o seu departamento de bens de consumo duráveis. Para Rattner (1988), essa forma de assimilação do desenvolvimento não é digna de uma nação soberana porque ela foi realizada tão-somente ancorada na dependência externa e sem nenhuma estratégia de endogeneização da ciência e da tecnologia. Todavia, o Japão constitui uma experiência exitosa porque soube muito bem direcionar as inversões externas para uma política forte de desenvolvimento industrial. Segundo o autor, todo o sucesso da política econômica japonesa deriva das estratégias montadas e levadas a cabo pelo Ministry of International Trade and Industry (MITI).

Na elaboração das estratégias para o Setor Industrial, o segmento automobilístico foi o mais focado pelo MITI, pois a economia japonesa, em recuperação, não possuía um mercado dinâmico ao ponto de justificar, pela demanda, um sistema produtivo consubstanciado na produção em massa, nos moldes que os Estados Unidos exportavam para a Europa. Com efeito, o desafio imposto às empresas automobilísticas, nos anos 1950, foi desenvolver uma nova estrutura industrial capaz de produzir pequenos lotes para o atendimento do mercado interno, ou seja, elas deveriam operar em uma economia de escopo. Ainda na mesma década, as maiores companhias se lançaram às experimentações visando a montar um sistema flexível que respondesse, ao mesmo tempo, às limitações e às oscilações do mercado.

O que nascera como estratégia para a superação de uma fragilidade da economia japonesa atingiria a maturidade na segunda metade dos anos 1970, quando a sua eficiência produtiva se revelaria. No período entre 1975 e 1980, toda a produção de automóveis e de caminhões do Japão cresceu 116%, enquanto a força de trabalho empregada nesse segmento aumentou apenas 4%, o que confere ao subsetor um aumento de produtividade da ordem de 117% (RATTNER, 1988, p.68). Mas, toda essa eficiência microeconômica só seria do conhecimento ocidental a partir dos anos 1980, quando as montadoras de automóveis japonesas se dispuseram a disputar o mercado norte-americano.

Tanto entre os seus críticos, quanto entre os seus admiradores, não há quem discorde que o sistema empregue um nível mais elevado de qualificação dos operadores, sendo que as maiores críticas incidem sobre o seu regime de relações de trabalho. Esse nível mais elevado de qualificação da força de trabalho é requerido por: (i) a multifuncionalidade, na qual os operadores têm que se adaptar a um número maior de tarefas a fim de garantir a produção de escopo; (ii) o relacionamento com o ambiente de alta tecnologia, necessário à flexibilidade e; (iii) a transferência da centralidade da produção ao processo, diluindo, crescentemente, a importância dos postos de trabalho34. A maior pesquisa realizada sobre a indústria automobilística também se revelou a mais apaixonada defesa do modelo japonês: trata-se da International Motor Vehicle Programam (IMVP), levada a efeito pelo Massachusetts Institute of Technology - MIT (WOMACK et al., 1992). A conclusão a que os pesquisadores chegaram é que a produção enxuta35 dissemina-se mundialmente enquanto forma superior e sucessora à produção em massa, pois, segundo os autores, ela (...) é uma maneira superior de o ser humano produzir bens (WOMACK et al., 1992, p.221). O maior problema dessa investigação é que, olhando apenas para os índices de produtividade, os pesquisadores desconsideraram que: (i) ao requerer um nível pronunciado de desregulamentação das relações de trabalho para adaptar a produção à demanda, o chamado modelo japonês enfraquece a organização sindical e; (ii) uma experiência bem-sucedida no segmento automotivo não certifica a sua funcionalidade em todos os demais subsetores da economia.

Também entusiasta do modelo japonês, B. Coriat (CORIAT, 1993 e 1994) argumenta que o Japão desenvolveu um novo sistema industrial – o ohnismo – com todas as pontencialidades para suceder o taylorismo-fordismo. Segundo Coriat, a característica mais virtuosa do ohnismo é a conformação de uma via „japonesa‟ de racionalização do trabalho que, diferentemente do modelo norte-americano, assenta-se na des-especialização dos trabalhadores qualificados por meio da instalação de uma certa polivalência e plurifuncionalidade de homens e de máquinas (...) (CORIAT, 1993, p.81). Porém, a

34 Um estudo comparativo entre os sistemas alemão e o japonês de formação profissional pode ser encontrado

em Teichler (1994).

35 A expressão produção enxuta foi alcunhada pelos pesquisadores do MIT e empregada pela primeira vez na

despeito do seu entusiasmo para com o sistema japonês, Coriat admite que o fortalecimento do ohnismo no próprio Japão só foi possível em virtude do enfraquecimento do movimento sindical, pois, a relação salarial foi construída e estabelecida sobre a base fundamental da série de importantes derrotas operárias que marcou a contra-ofensiva patronal do final do decênio de 1950 (CORIAT, 1993, p.82).

Para Wood (1993), não se pode falar em um novo modelo industrial porque não há algo de revolucionário no toyotismo, uma vez que ele contém muitos dos fundamentos tayloristas. Para o autor, o que o JIT36 inverte não são os princípios fundamentais da produção em massa, mas os meios convencionais para operacionalizá-los (WOOD, 1993, p.55). Também apontando para o aspecto coercitivo da produção enxuta, Wood, sustenta que a produtividade do modelo deriva da brutal pressão exercida sobre os trabalhadores, coerção essa que, em grande parte, é veladamente internalizada pelos operadores por meio da disseminação da ideologia da empresa. Como se pode observar, há uma convergência sobre a coercitividade da qual o sistema japonês se utiliza a fim garantir a eficiência, tese essa também compartilhada por Zarifian, para quem é o contexto coercitivo que confere toda eficácia ao trabalho em equipe, em termos de ganhos de produtividade (ZARIFIAN, 1993, p.26).

Também muito crítica à pretensa virtuosidade do sistema japonês, Hirata (1993) questiona até mesmo o próprio conceito de modelo, argumentando que, em diversos países, a reestruturação produtiva tem assumido características diferenciadas, não reproduzindo o modelo originário, o que indica não haver uma padronização mundial de um novo sistema industrial baseado na experiência japonesa. Para Hirata: (...) longe de haver unanimidade quanto a essa noção (...) a multiplicidade de abordagens e até mesmo das definições possíveis de „modelos japoneses‟, e o próprio debate revelou pontos de vista totalmente opostos quanto a este modelo, chegando a negar sua própria existência (HIRATA, 1993, p.12).

Numa posição intermediária, Kern e Schumann admitem que, a despeito de toda a virtuosidade que a reestruturação produtiva e a nova divisão do trabalho possam provocar nos setores ganhadores, os estudos demonstram que também há setores perdedores, pois a

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industrialização sob a nova perspectiva agudiza as disparidades sociais, em razão de a transformação das estruturas produtivas não sobrepor os aspectos sociais aos individuais (KERN e SCHUMANN, 1988, págs. 366 e 367).

Mesmo os admiradores das técnicas de produção japonesas, apesar de enaltecerem a sua eficiência microeconômica, admitem que elas sejam reprodutoras de novos antagonismos nas relações de trabalho. Como demonstrado à frente, para os seus críticos, esse tensionamento - assentado, principalmente, na incapacidade de o sistema em coabitar com regimes avançados de relações de trabalho – o torna inaplicável universalmente como sucessor do taylorismo-fordismo.

É possível identificar três posições em relação ao modelo japonês: de um lado as opiniões de Womack et al, Coriat e outros, admirados, principalmente, com a sua produtividade; de outro, Hirata, Wood, Zarifian e mais uma miríade de pesquisadores que colocam em dúvida a suposta virtuosidade das empresas japonesas, por considerarem que o seu padrão de relações do trabalho é um retrocesso em relação àquilo que se conquistou na Europa, a partir do segundo pós-guerra; numa postura intermediária, encontra-se a posição de Kern e Schumann, para quem o modelo possui virtudes importantes em termos de produtividade, mas gera preocupantes tensões sociais, especialmente nos setores que eles consideram perdedores.

Escapando a esse esquema, porém, sem negar o seu viés autoritário e, tampouco, sem elegê-lo como o sucessor do taylorismo-fordismo, Fleury credita o sucesso do modelo e da própria economia japonesa à ênfase dada à tecnologia e à capacitação tecnológica, enquanto estratégias fundamentais de competitividade; segundo ele: pouca atenção tem sido dada à concepção de tecnologia como capacitação, como atributo de empresas produtivas. No entanto, este nos parece um ponto-chave quando se pretende abordar o modelo japonês (FLEURY, 1993, p.33). Além da formidável capacidade em empregar a tecnologia ao processo produtivo, as empresas japonesas consolidaram a visão de que o conhecimento tecnológico tem que ser amplamente assimilado pela força de trabalho. Assim, (...) se uma empresa prioriza a tecnologia em sua estratégia de competição, deverá estruturar um conjunto de funções organizacionais especificamente voltadas à capacitação tecnológica (FLEURY, 1993, p.36). Tal como Fleury, Rattner também compartilha da tese

que atribui à capacidade em lidar com a tecnologia no ambiente da produção como a maior virtude das grandes empresas japonesas (RATTNER, 1988, p.84).

Tudo o que se debateu em teoria acerca do confronto entre essas duas concepções da produção industrial - no que diz respeito aos seus impactos nas estruturas econômicas e sociais do capitalismo central - parece estar passando por um momento de redefinições, com a crise global do capitalismo, eclodida em 2008. Ainda em Abril de 2007, a Toyota divulgara a projeção para o seu balanço patrimonial com as perspectivas de vendas a serem realizadas, que acabaram por se confirmar ao final daquele ano; na projeção, a empresa consagrava-se como a maior montadora de automóveis do planeta, pondo fim a mais de um século de supremacia das companhias norte-americanas e acabando com setenta anos de liderança absoluta da General Motors Corporation (GM). No final de 2008, em meio à onda de socorro financeiro do governo aos bancos quebrados pela crise do sub prime, duas entre as três maiores montadoras norte-americanas - a GM e a Chrysler - anunciaram estar à beira da bancarrota, ao mesmo tempo em que pediram socorro ao Tesouro. As empresas alegaram que as suas vendas haviam declinado de tal modo que, caso o Estado não lhes socorresse com empréstimos a juros generosos e prazos dilatados, elas entrariam em processo de falência.

Em Dezembro de 2008, a GM publicou uma matéria paga nos principais jornais norte-americanos intitulada Compromisso da GM para com o povo norte-americano, se desculpando perante os consumidores por oferecer-lhes automóveis de baixa qualidade. A crise das empresas estadunidenses teve o seu desfecho em Maio de 2009, quando a Fiat sacramentou as negociações com a Chrysler, tornando-se a sua controladora, enquanto o Tesouro norte-americano fez pesados aportes à GM, tornando o Estado seu maior acionista; com esse desdobramento, a primeira empresa desnacionalizou-se, enquanto a segunda passou a ser estatal. Em princípio, o fato atesta a debilidade da economia dos Estados Unidos, na qual a escassez de renda que acometeu a sociedade levou à tamanha retração da demanda, fazendo com que muitos estabelecessem um paralelo entre a crise de 2008 e a de 1929. Todavia, não há como desconsiderar as diferentes performances das companhias norte-americanas e das japonesas ante a crise. Apesar de também terem as suas vendas retraídas, as empresas japonesas não tiveram o patrimônio desnacionalizado, não

solicitaram aportes vultosos dos cofres públicos, passando a se armar de estratégias mais agressivas para o enfrentamento dos desequilíbrios.

Em resumo, tem-se, por um lado, as empresas vencedoras e, por outro, as perdedoras. Além dos distúrbios macroeconômicos norte-americanos, que outros condicionantes de ordem gerencial impactaram essa disparidade? Os acontecimentos confirmam a supremacia das técnicas de produção japonesas sobre a produção em massa?37 O que mais pesou no fracasso das companhias estadunidenses? Independentemente da conclusão a que se possa chegar, pelo menos uma das características mais proeminentes da produção enxuta e ausente no taylorismo-fordismo parece ter pesado muito na quebra das empresas norte-americanas, ou seja, a capacidade de adaptação aos picos baixos da demanda. Como visto, a produção flexível nasceu da necessidade de adaptação do volume de produção a uma demanda reduzida, o que a torna um sistema industrial facilmente adaptável ao ambiente de escassez, sendo que essa sua característica lhe deu ferramentas mais eficazes para o enfrentamento da crise de 2008.

Entre os admiradores das técnicas japonesas, há quem pense que, finalmente, a história prontificou-se em confirmar a sua teoria; para os seus críticos, no entanto, a tese preponderante é que o ano de 2008, no limite, expôs a natureza mais aguda da crise de regulação do fordismo norte-americano, o que não atesta a eficiência e nem a superioridade do toyotismo. Para o interesse desse inquérito, quem perdeu foram as empresas que operavam com: (i) um alto coeficiente de trabalho parcelizado; (ii) uma capacidade muito baixa de aproveitamento dos recursos da tecnologia para melhorar o perfil da produtividade; (iii) uma brutal dificuldade em inovar o mix da produção e oferecer aos consumidores bens mais adequados às exigências ambientais e; (iv) uma baixa capacitação tecnológica da força de trabalho38. Com efeito, a perda de eficiência do sistema industrial e da economia norte-americanos deveria ser um alerta para o Brasil a fim de reorientar as

37 Tomo as empresas automotivas norte-americanas como os símbolos proeminentes da produção em massa;

todavia, ressalto as tentativas infrutíferas por parte delas em assimilar as técnicas de produção japonesas, como o demonstram Womack et al (1995).

38 Uma análise sobre o sistema de formação profissional norte-americano, demonstrando toda a sua ineficácia,

pode ser vista em Gospel (1994); com relação ao sistema de educação formal, o trabalho de Gall e Guedes (2009) demonstra como as novas experimentações estão sendo desenvolvidas visando a superação das suas deficiências mais agudas.

suas políticas industrial, educacional e de formação profissional, de modo a sustentar uma agenda nacional para o desenvolvimento.

A síntese aqui abstraída do estudo sobre as técnicas japonesas de produção é que, a despeito de elas requererem o emprego de tecnologias sofisticadas – como o expuseram Fleury (1993) e Rattner (1988) – e demandarem um nível mais pronunciado de qualificação da força de trabalho, também contêm inúmeros elementos hostis aos interesses da organização dos trabalhadores, não podendo ser tomadas como ícones da organização do trabalho. O que se tem chamado como modelo japonês, provavelmente, seja apenas um elo transitorial entre o taylorismo-fordismo e um novo modelo de racionalização do trabalho industrial, ainda por vir. Todavia – e o que é do interesse maior para esse inquérito – esse novo arranjo produtivo sinaliza para o fato de que a reorganização do trabalho industrial caminha para uma conjugação mais acentuada entre o incremento tecnológico e os níveis mais elevados de qualificação da força de trabalho.

2.2. Os impulsos dinâmicos do novo ciclo schumpeteriano

Além de ser uma decisão política tomada no jogo de contradições que envolve os atores no processo de criação da riqueza social, a qualificação da mão-de-obra também guarda uma relação de causa e efeito com a divisão do trabalho e com a evolução das condições técnicas incidentes sobre os processos de trabalho. Assim, na sua primeira parte, esse capítulo procurou demonstrar que a implantação de um nível mais pronunciado de reunificação das tarefas - no sistema de produção enxuta - deu-se concomitantemente ao emprego de uma força de trabalho com níveis de qualificação mais elevados que as escalas utilizadas nos processos de trabalho tayloristas-fordistas. Doravante, é pertinente analisar como a tecnologia tem contribuído para a sofisticação da organização do trabalho e, conseqüentemente, requisitar uma nova qualificação dos operadores.

Na abertura desse capítulo também foi argumentado que a idéia de mudança de paradigma, no limite, talvez, devesse voltar ao núcleo central dos debates sobre o trabalho, posto que há evidentes impulsos dinâmicos tensionando as forças produtivas do capitalismo e sinalizando para o fato que a economia do Século XXI não mais se assentará sobre o industrialismo, tal como se presenciou no século passado. Tentando expor de modo mais objetivo, pretendo dizer que parece claro que o capitalismo vivencia uma transição para um novo estágio de acumulação; todavia, dadas a rapidez e a radicalidade com que as transformações ocorrem, a idéia da transição paradigmática, talvez, devesse ser rediscutida. O debate travado, a seguir, em primeiro lugar, tem como objetivo complementar a idéia defendida até aqui, ou seja, que há, inequivocamente, uma demanda concreta por uma qualificação mais elevada e diferenciada da força de trabalho e que o novo cluster tecnológico tem um peso nessa demanda, ao possibilitar um nível mais elevado de trabalho enriquecido; em segundo, também pretende subsidiar outra idéia que defendo ao longo desse inquérito, na qual estabeleço uma relação entre o domínio científico e tecnológico, qualificação da força de trabalho e o desenvolvimento econômico e social. Nas próximas páginas será discutida a idéia que há uma disrupção da técnica caminhando para a conformação de um novíssimo sistema tecnológico, que deverá impactar decisivamente a economia capitalista no Século XXI.