• Nenhum resultado encontrado

DE EDUCAÇÍO REAL Educação moral

A S INSTITUIÇÕES MODERNAS (18 7 1-196 2 )

Embora as questões regimentais sobre a educação da in fan ria e as modalidades de governação dos escolares obedeçam a racionalidades e a tempos próprios, elas não ficaram imunes a uma aceleração reformista que se notabiliza sobretudo no último quartel do século XIX, começando o Estado a empenhar-se progressivamente no estabelecimento de instituições especificamente dedicadas à regularização do comportamento social da infância.

Os territórios tutelares de crianças, fossem eles lares, colégios, seminários, asilos ou orfanatos, constituíram sempre um campo empírico rico e inovador, tomando-se por isso atractivos para um grande número de pedagogos e estudiosos àcntíficos. Essa disponibilidade experimental de populações em restrição é identificada por Foucault como já estando presente na concepção panóptica de Bentham, no início do século XIX,

sendo essa disponibilidade essencial para que os seus efeitos práticos produzissem resultados. O pensamento foucaulriano debruçou-se sobre aspectos aparentemente funcionais e mecanidstas, mostrando-se indiferente à natureza cruel de certos procedimentos, mas detendo-se imenso nas possibilidades de amplificação do poder, contidas nesses processos. Assim, permite-se inventariar a polivalência das suas aplicações:

“Serve para emendar os prisioneiros, mas também para cuidar dos doentes, instruir os escolares, guardar os loucos, fiscalÍ2ar os operários, fa2ef trabalhar os mendigos e ociosos. E um tipo de implantação dos corpos no espaço, de distribuição dos indivíduos em relação mútua, de organização hierárquica, de disposição dos centros e dos canais de poder, de definição dos seus instrumentos e de modos de intervenção, que se podem utilizar nos hospitais, nas oficinas, nas escolas, nas prisões. Cada. vez que se tratar de uma multiplicidade de indivíduos a que se deve impor uma tarefa ou um comportamento, o esquema panóptico poderá ser utilizado; (...) é um intensificador para qualquer aparelho de poder: assegura uma economia (em pessoal, em tempo, em material); assegura a sua eficácia pelo seu carácter preventivo, pelo funcionamento contínuo e pelos seus automatismos. E uma maneira de obter poder” (Foucault, 1987: 170).

Trata-se de uma visão tecnológica e experimental, uma maneira melhor de fazer que pode ser aplicada a vários saberes e de cujas potencialidades Bentham estava bem consciente, nomeadamente da aptidão produtiva que tinha “uma casa bem governada”. O que distinguia este género de poder de um poder de tipo soberano, era o facto de o incremento na obtenção de resultados vir de dentro, ou seja, provinha da inerência contida no artefacto em si mesmo, tomando-se assim o poder mais subtil, mas mais presente pela sua constância, facilitando o exerddo de uma economia mais produtiva.

Quanto à vigilânda fixa, ao olhar permanente, pode-se considerá-la como um dispositivo de evolução moral pois dispensava a prática da delação de que nos fala Ariès (1973): a partir do século XV, quando se hierarquizaram as rdações dentro dos colégios, estabelecendo uma nova disaplina de governo da instituição, o director deixou de ser o primeiro entre os seus pares, para passar a scr o depositário de uma autoridade superior. A partir desse momento, ainda segundo Ariès, o rigor desse tipo

de disdplina pode caracterizar-se pela presença de uma vigilância constante de origem monástica; pela delação como princípio de govemo institucional; pela aplicação de punições corporais. A vigilância assegurava a delação, o que implicava o castigo (Ariès, 1973: .265-297). Enquanto técnica de informação e regulação disciplinar — “la discipline est fondée sur la délation”1 - a delação foi usada até muito tarde, sendo inclusivamente um recurso do ensino mútuo, usando-se ainda hoje de forma remanescente.

Um grupo de alunos

Figura 12 — Asilo Nuno Álvares, fundado cm 1911; • lotação: 600 alunos. '

Fonte: Boletim de Assistência, n.° 1,(1931).

Foucault considerava o autor do pahóptico e Rousseau como sendo ambos representativos do Iluminismo, acrescentando com alguma ironia que, por meios distintos, Bentham complementava Rousseau, pois este, com a sua nòção de transparência sodal, poderia encontrar através do inglês a possibilidade de se dispor um olhar omnipresente (Dekker & Lechner, 1999: 43).

A herança benthamiana deixou raízes nos sistemas educacionais com recurso ao internamento, cruzando-se aí as situações mais extremadas e delineando-se com rigor institucional o papel social da infanda perante o Estado. Se cumpre à Escola desenvolver sujeitos socialmente aceites e capazes, o desafio que os menores tutelados constituíam oferecia também uma oportunidade soberana para se desenvolverem metodologias pedagógicas que, em prindpio, funaonando com populações complicadas seriam, depois de devidamente adaptadas, instrumentos útds para as cn a n çá s normais numa escolaridade normal A vigilânda era, contudo, uma técnica rapidamente tomada indispensável mas insufidente do ponto de vista pedagógico, atraindo o espírito aentífico experimental e o seu lote de discursos de diferentes disriplinas radonalistas para a procura de outras soluções complementares.

Muitò da discursividade de índole pedagógica alimentava-se da apropriação de práticas empíricas ditadas por necessidades pragmáticas, teorizando sobre esses gestos práticos e assumindo sobranceiramente a sua autoria ou abjurando-as. Novas lógicas procuraram enquadrar problemas antigos, obtendo por vezes as mesmas soluções para as mesmas questões, enunriadas e problematizadas à luz de novos discursos, novas sensibilidades e melhores possibilidades técnicas.

Embora contemplasse, apenas os escalões etários mais baixos, o Código Penal de 1852 e posteriormente o de 1886, já reservavam uma especificidade no tratamento da infanda, ao criarem casas de correcção ou educação e colónias pemtendárias para os imputáveis —.primeiro até aos sete anos, depois até aos dez —, ou para os que, tendo menos de catorze anos, agiam “sem discernimento”. Aos restantes estava destinado o regime prisional geral (Castro, 1931).

Em finais do século XIX, pela Carta de Lei de 19 de Junho de 1871, cria-se em Lisboa a primeira Casa de Detenção e Correcção, abrindo no ano seguinte no Convento das Mónicas onde permanece até 1903, passando depois desse ano a alojar uma população feminina. Dedicava-se ao internamento de menores delinquentes do sexo masculino dos 10 até aos 18 anos e para os menores de 21 anos que fossem desobedientes e incorrigíveis, sujeitos à correcção patema Era uma vulgar cadeia, apenas só com menores, sofrendo das deficiências mais tarde apontadas pelo padre António Oliveira, que lá iniciou a sua acção como capelão: sem ar nem luz ou conforto de qualquer espécie e que, em lugar de recuperar, se limitava a punir (Camacho, s.d.: 32). O P.' António Oliveira [1867-1923] inidara o seu trabalho junto da instituição quatro anos após a abertura, em Junho de 1899; das suas funções iniciais de Capelão, tomou-se Sub-director e, posteriormente, .Director e mentor da acção reformista das instituições correccionais, sendo a sua obra indissociável da modernização da Tedagogia Social” e das práticas das instituições de amparo e recuperação de jovens delinquentes.

O regime vigente no estabelecimento, decorrente ainda do Código Penal de 1886, era em tudo semelhante ao prisional, com um grande rigor de processos e controlo dos internados, mantidos afastados de contactos com o exterior. Com a Casa de Detenção e Correcção formava-se uma delimitação da população juvenil delinquente, separando-a definitivamente dos adultos mas não; trazendo ainda nenhuma prática inovadora na recuperação e reintegração dos jovens. Seria uma instituição cuja acção se apoiava ainda no pensamento clássico dos penitendalistas e correcdonalistas (Martins, 1995: 169-174), embora a norma legal que a constituiu já consagrasse princípios reveladores de preocupações “profiláticas” e “terapêuticas”.

Essa consagração da especificidade jurídica de uma população, definida pelo seu nível etário, não constituía novidade nem no direito penal nem nas práticas institucionais. Em Espanha, desde 1834 que essa realidade fora estabelecida paia os menores de 18 anos, não havendo porém uma concordância sistemática entre o discurso jurídico e o que acontecia nas instituições, entre outras, a obrigação legal de as Casas proporcionarem escolaridade básica aos internos nas instituições de correcção, uma medida que seria importante tomar mas .que nunca se efectivou (Santolaria, 1997: 294). Em Ingfaterra, a separação. dos menores da demais população prisional só se concretiza em 1905 com o “Child*s Act”, enquanto no Brasil, só em 1890 se legislou para colocar em estabelecimentos espeaais os maiores de 9 e menores de 14 anos e em 1916 se publica um decreto colocando os menores abandonados sob alçada de um juiz que lhes nomeava um tutor ou os colocava numa instituição e, em 1927, é promulgado um decreto conhecido como Código de Menores, abrangendo

os menores de 18 anos de ambos os sexos, abandonados ou delinquentes (Lima & Rodrigues, 2003).

O projecto dé lei propondo a fundação da Casa de Correcção de Lisboa, apresentado à Câmara de Deputados em 1 de Junho de ' 1871, identificava os perigos do contágio entre “aqueles a quem o crime endureceu e os que, no verdor dos anos, fugiram do Berii sem o conhecer ainda, e talvez praticaram o crime por não ‘o compreenderem”. Consideravam que essa mistura etária conduzia a que muitos entrados na prisão por delitos leves, depois de frequentarem essa universidade do crime, e terem sido punidos, voltavam para a sociedade cometendo piores crimes. Acreditava-se, no efeito reprodutivo da cadeia, tomando tambcm os mais jovens como os mais permeáveis.

No final de 1870, estavam detidos na Cadeia Gvil de Lisboa 487 menores de 20 anos, misturados com adultos condenados por todo o tipò de crimes. Quando a Casa de Correcção é inaugurada, a 20 de Oütubro de 1872, nela deram entrada 32 reclusos menores de 18 anos, vindos do Limoeiro (Azevedo, 1892: 4), um número muito reduzido para que tivesse capacidade de substituir a Cadeia Civil. Era a capacidade das instálações que condicionava as populações de delinquentes e nãò a aplicação da norma jundica ou do exercício judieiáno. Da necessidade de ampliação e melhoramento das instalações dava conta, em 1900, o próprio director da Casa dé Correcção, ao justificar “Aqui èstão 120 rapazes, mas mais do dobro necessita entrar para cá. Há juiz que se vê constrangido a absolver pequenos delinquentes [por falta de vagas], quer dizer, voltám para o caminho da perdição!” (Pinto, 1905: 7-8). Apesar de tudò, a média anual de intemòs foi subindo sempre, até aos 140, tendo nos primeiros vinte anos [1872-1891], por lá passado mais de 7.000 rapazes (Azevedo, 1892: 7). A

Casa Pia, compare-se, predsou de. um século, para receber 11.401 alunos, 114 de média anual (Valladas, 1881).

A proposta legislativa para a criação da instituição, em boa verdade, reconhecia à partida a insuficiência da actuação dos estabelecimentos que pretendia fundar, uma vez que teriam “muito de detenção e pouco de correcção”, mas manifesta simultaneamente uma ideia de acção regeneradora associada à educação, ao trabalho e à privação da liberdade. No seu preâmbulo, considerava-se que, com esses regimes que só proporcionavam a clausura, não ficaria completo o sistema sem o suplemento das instituições de assistência:

“Depois destas casas de correcção vêm os estabelecimentos que vão ali buscar os que já cumpriram a pena, ou os que entram na liberdade provisória. A educação correcdonal, para produzir os seus. verdadeiros frutos deve ter por complemento as instituições de protecção” (Projecto de Lei n.° 29,1871).

Essas instituições de. protecção eram bem consideradas, e as referências feitas aos Asilos na proposta de Lei de 1871 situava-os como detentores de uma acção e de um modelo reconhecido como eficaz, embora os parlamentares não o seguissem. Ou seja, apesar de se considerar a acção ;das cadeias de menores como insuficientes na recuperação da delinquência juvenil, sendo inclusivamente acusadas até de exercerem um efeito contaminador, havendo já essa expressão de impotência, mantinha- se a ideia de continuar a ser necessário a aplicação de um castigo adequado, recorrendo para isso à privação de liberdade dos menores. Esta distinção, não só definia uma população de menores que se constituía através da delinquência, como se reconhecia tardiamente uma certa incapacidade do Estado, sobretudo quando contrastado com outras instituições congéneres,

para agir na reeducação e devolução social integrada desses menores. A acção dos asilos era, no referido diploma, elogiada nos seguintes termos: '

“O asilo vai procurar a infahcia desvalida ou abandonada, . educa-a, ensina-lhe.a religião, a moral e os costumes,-prepara-a.

para o trabalho, e entrega mais tarde à sociedade ddadàos úteis, os que poucos anos antes fora buscar ao seio da miséria e do abandono” (Projecto de Lei n.° 29,1871).

Mas, àpesar de as Casas de Correcção não serem instituições de beneficência, estavam equiparadas a “asilo dé mendiàdàde, estabelecimento pio, de beneficência ou de educação gratuita”, para poderem beneficiar de doações, legados ou heranças (Diário do Governo de 19 de Junho - Carta de Lei, 1871: art.0 14.°).

O modelo apontado para a criação de um novo estabelecimento, que corporizasse essa separação dos menores e os reeducasse, encontrava- se em Mettray, França1, e não, surpreendentemente, na Casa Pia de Lisboa, instituição que afinal se enquadrava perfeitamente nos processos e no ideal regenerador dos asilos, tão do agrado dos políticos. O argumento aduzido era o dos excelentes resultados obtidos pela famosa Colónia Correcdonal francesa na integração social dos seus internos, chegando os sêüs defensores e proponentes da legislação ao óbvio exagero de pretender que, “de entre 1040 mancebos saídos da colónia”, a totalidade, contabilizada por profissões, se tinha estabelecido num ofício, quando anteriormente áo estabelecimento dessa- “exemplar escola” a média de reincidência era de

1 C est là, à cinq kilomètres au nord de Tours, que se trouve le vaste domaine de 700 hectares que le vicomte Bretigmères de Courteilles donna, en-1838 à.la société La Paternelle pour y implanter une colonie agricole destinée à recevoir les enfants acquittés par les tribunaux ou placés par mesure de correction paternelle pour y être élevés et enfermes pendant tel nombre d'années que le jugement détermine”, in httP.7/WWW,1U5Dce-PQiJV.fr/motscles/alphabet.htm site ofidal do Ministério da Justiça