• Nenhum resultado encontrado

Mais que uma referenda, Michel Foucault está presente neste texto como elemento inspirador da caracterização do objecto e da preferência pela sua abordagem. Ao dedicar o seu interesse à clausura, à instrumentalidade disciplinar, ao domínio dos corpos e aos percursos normalizadores dos sujeitos, inscrevendo um novo território num campo de análise onde predominavam as aproximações jurídico-penais, Michel Foucault com Vigiar e Curtir (1987) [1.* ed. 1975] tomou-se, directamente ou por descendência intelectual, praticamente incontomávd na abordagem ao universo da criança internada. E que Foucault não nos fala aí propriamente da prisão, enquanto artefacto penal e corrector, mas sim dos efeitos que determinados regimes disciplinares pretendem produzir quando usados como tecnologia social de governação de grupos sociais específicos.

A importância do trabalho de Foucault para a investigação em Educação não advém exclusivamente das suas propostas para a compreensão dos sistemas de regulação disciplinar e das instituições que a usam como método, uma vez que os seus textos se alargam a outras tecnologias e outros conceitos, também reconhecíveis como epistemologia social. Michel Foucault, ao questionar os fundamentos conceptuais que suportavam determinadas disciplinas que se tomaram marcantes a partir do século XVIII, tais como a linguística, a economia, a medicina ou os sistemas educativos, construiu uma teoria crítica que abarca “as estruturas cognitivas e os arranjos institucionais das sociedades modernas”, colocando no seu

centro a questão de como o homem se elegeu a si próprio como objecto de conhecimento (Roth, 1992: 684).

Enquanto processo científico de aproximação a um objecto empírico, o distanciamento, ou um certo desprendimento até, que o pensamento de Foucault sugere — Ewald refere-se-lhe como “um pensamento sem compromissos” (Ewald, 2000: 10) — constitui por si um estímulo importante para ensaiar uma nova abordagem, uma viragem linguística que, do ponto de vista historiográfico, possibilite também a edificação de uma problemática aberta ao aprofundamento da sua exploração e à revelação de uma invariante, uma constante que permita conhecer a variedade dos fenómenos (Veyne, 1989).

Tal como Foucault, também o sociólogo americano Erving Goffinan se toma uma referência indispensável, através do seu estudo das “instituições totais”. As instituições dedicadas ao internamento de indivíduos, como manicômios, prisões, conventos, colégios internos, asilos, orfanatos, etc., em suma, as que se apoderam dos sujeitos, criando-lhes um quotidiano do qual eles dependem completamente, são designadas por instituições “completas”, ou “totais”. A situação do internado, a forma como se sodabiliza e a dependência institucional do seu quotidiano introduzem noções como “mortificação do eiT e sugerem a metáfora orgânica do produto dessas instituições que “digerem” o indivíduo. Foi na motivação destes dois eixos principais — o padrão disciplinar de Foucault, enquanto “relação de poder” e a noção derivada de Goffman de “escola total” - que foi construído o esboço epistemológico deste texto.

Quanto à dimensão representada pelas tecnologias disciplinares, a sua abordagem far-se-á através da identificação do papel desempenhado pela presença dos três dispositivos maiores em que Foucault dividia as

tecnologias disciplinares, quando usadas na inculcação de novas formas de conhecimento (Hoskin, 1990; Roth, 1992), a saber:

1. Tecnologias de viglância - Mesmo numa simples escola, a vigilância sobre os alunos pretende-se que seja continuada, o que só é possível pela ordenação dos corpos no espaço, sendo distribuídos por salas de- aula celulares, divididos em grupos e juntados por idades, mantendo-se em simultâneo sob a vista atenta do professor. O uso do tempo também é prescrito e conjugado com a ordem que permite a sincronia. Em instituições disciplinares todas essas técnicas ostentam deliberadamente uma intensidade que as representa como centrais para a eficácia do processo educativo, assegurando a ocupação da totalidade do tempo dos alunos.

2. Técnicas de registo — Englobam os dados que se reúnem sobre os sujeitos ao longo do tempo. Há normalmente um “registo biográfico”, resultados de exames, comportamento, avaliações, dados médicos e pessoais que se desmultiplicam por diferentes especialidades, sendo registados e acumuladas ao longo dos anos que durar a relação pedagógica. São possibilidades que se desenvolveram com a estatística, permitindo a numeralização de inúmeras classes.

3. Técnicas de normalização — São criações de categorias, o que só se toma possível a partir das técnicas anteriores de observação e registo que permitem a comparação mensurada de indivíduos com outros, produzindo fronteiras e quotas de “normalidade”. A partir de uma média pode-se criar um padrão ideal de cuja proximidade dependa o grau normalização social ou.0 tipo de homogeneidade das populações.

Para ser bem sucedida a escrita de um texto que traduza uma narrativa dos conteúdos e significados das fontes, ele terá que representar, nas palavras de António Vifiao Frago, “ (...) uma reorganização da informação que implicar relações e ligações, associações de causa efeito, bem como a configuração de uma totalidade coerente e explicativa na qual os seus componentes façam sentido, não de forma isolada mas pela sua relação com o resto. Uma reorganização que seja, à vez, explicação e interpretação” (Frago, 1996: 180-181).

P a r t e I I

A CRIANÇA E AS SUAS CIRCUNSTÂNCIAS

‘Tinha lido que na prisão se perde a noção do tempo. Mas para mim isto não fazia sentido. Não compreendera ainda até que ponto os dias podiam ser ao mesmo tempo curtos e longos. Longos para viver, sem dúvida, mas de tal modo distendidos que acabavam por se sobrepor uns aos outros e por perder o nome. As palavras ontem ou

amanhã eram as nniras que conservavam sentido.”