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PARTE 2 COMO SE CONFIGURAM OS TRANSTORNOS DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR EM SALVADOR?

8.2. Satisfação com as Características Fenotípicas e Transtornos do comportamento Alimentar em Estudantes de Salvador/Bahia

8.2.1. A Satisfação com as Características Fenotípicas

As perguntas do primeiro questionário que avaliavam a satisfação das estudantes em relação às suas características fenotípicas foram quatro: (a) Você se sente satisfeita com sua cor? (b) Você se sente satisfeita com suas características físicas (cabelo, nariz, lábios)? (c) Você sente vontade de modificar ou já modificou alguma destas características: cabelo, nariz e lábios? – esta questão possibilitava múltiplas respostas - (d) Você se sentiria melhor caso modificasse sua aparência?

No primeiro momento foi avaliada a satisfação de um modo geral, através de uma classificação, na qual as alunas que responderam de forma positiva a todas as quatro questões referentes a este tema (ou seja, sim para as duas primeiras questões e não para as duas últimas) estavam muitíssimo satisfeitas com as suas características, as que tiveram uma resposta positiva para 75% das perguntas tinham uma satisfação moderada e as que tiveram de 50% a 0% de respostas positivas, tinham satisfação regular a pouca. Quando se avaliou desta forma, apenas 12,13% das alunas estavam muitíssimo satisfeitas com suas características fenotípicas. A maioria revelou uma satisfação moderada (40,49%) ou regular a pouca (47,38%).

Ao se avaliar cada item separadamente, o grau de satisfação aumentou significativamente. Ao serem questionadas quanto à satisfação com a cor da pele, 94% das entrevistadas relataram estar satisfeitas. Em relação às características físicas de um modo geral, a satisfação caiu para 74,46%. Quase metade (45,6%) das alunas se sentiria melhor se modificasse sua aparência e 52,8% delas sentia vontade ou já havia modificado o nariz, cabelos e lábios. Inegavelmente o cabelo foi o campeão de insatisfação, visto que 77,3% sentia vontade de modificá-lo ou já tinha feito.

Nesse momento nossa investigação se deteve naquelas que haviam declarado sua insatisfação. Quem eram essas jovens? Como haviam se definido quanto à sua raça/cor? As pardas foram as que mais apresentaram insatisfação com suas características, fosse com a cor da pele ou com as características físicas de um modo geral, o que as levava a sentirem vontade de modificar a sua aparência (ver tabela 1). A insatisfação estava três vezes mais presente nas estudantes não brancas do que nas que se definiram como brancas. A vontade de modificar a aparência era 2,2 vezes maior nas estudantes que se declararam pardas. A regressão logística realizada evidenciou esta relação entre a satisfação com as características fenotípicas e a raça/cor, sendo as mulheres pardas as mais afetadas (X2 = 14,44 p=0,0024).

Tabela 1. Insatisfação com as características fenotípicas segundo raça/cor

Frequência (%) Análise Bivariada

Questões Branca Preta Parda Amarela/Indígena X2 p

Insatisfação com a cor da pele 22,2 11,1 50,0 16,7 12,47 0,006 Insatisfação com características físicas 6,5 35,7 49,4 8,4 12,40 0,006 Sentiria melhor se modificasse sua aparência 18,5 35,1 40,0 6,5 13,36 0,004

A insatisfação com as características físicas reveladas para algumas alunas definidas como pardas, pode ser reflexo da dificuldade em ver positivamente o que a sociedade diz que é inferior, feio e vulgar. A necessidade de alterar a sua aparência pode ser uma tentativa de lidar com a pressão social para ser o que não se é, de se transformar em um outro, mais aceito e considerado. Estes resultados expressam uma reação aos estereótipos estabelecidos sobre o belo e o não belo pela sociedade branca e europeia, desde a época da escravidão, mas que se mantém até hoje e que são definidos por interesses políticos e econômicos que justificavam a escravização e colonização e hoje fortalecem as relações de poder e hierarquização (GOMES, 2002).

Para Gomes (2002), a sociedade, e especificamente a escola, emitem opiniões e valores sobre a estética negra, principalmente o corpo e o cabelo, que deixam marcas profundas na vida dos sujeitos. O cabelo tem sido um dos símbolos definidores do lugar do sujeito dentro do sistema de classificação racial brasileiro, portanto a manipulação do cabelo, tão presente nas jovens negras, pode expressar sentimento de rejeição, ressignificação ou negação do pertencimento étnico/racial.

No seu trabalho, "Look at Her Hair": The Body Politics of Black Womanhood in Brazil Kia Caldwell (2004) discute como o corpo e, muito fortemente, o cabelo da mulher negra são

negativamente encarados na sociedade brasileira, evidenciando um padrão de beleza eurocênctrico e anti-negritude. O corpo negro e, especificamente, o cabelo crespo são marcadores do processo de racialização da sociedade. Ela ressalta que o exame das dimensões incorporadas da feminilidade negra evidencia a prevalência de um padrão estético anti-negro que causa impacto no nível da subjetividade das mulheres. Dessa forma, as mulheres negras, na tentativa de desenvolver uma identidade e autoimagem positivas, são obrigadas a se confrontar com os valores da cultura dominante, que caricaturam e desvalorizam suas características físicas, e a reagir a esses valores.

Enquanto para algumas mulheres manter uma estética dita negra, na qual valoriza-se o cabelo na sua forma natural, onde a escolha do que vestir, das cores e dos acessórios a usar são formas de fortalecimento de um pertencimento, de uma identidade, para outras, modificar a aparência, tentar se aproximar o máximo possível da estética branca também é uma forma de posicionamento e de resposta, mas no sentido oposto, o da adequação e aceitação. Desta análise surge um relevante questionamento. Seria esta a questão que envolve as mulheres que se definem como pardas, que, em alguns contextos, não são consideradas brancas e nem se consideram pretas, porém carregam características físicas que lhes dificulta uma identificação imediata ou ao menos mais objetiva, numa sociedade em que o mito da democracia racial ainda é um apelo forte?

Estas mulheres revelam um possível conflito, que se reflete através da insatisfação com algumas características fenotípicas negroides (cabelo crespo, lábios carnudos e/ou nariz alargado). Então, a tentativa de adequação da aparência, em direção a algo que seja mais valorizado pela sociedade seria uma maneira de resposta, a fim de evitar o infortúnio trazido pela negativização do corpo negro, construído socioculturalmente.