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Identidade Étnica e Processo de Integração Sociocultural

PARTE 1 – REVISITANDO A PROBLEMÁTICA E TEMAS RELACIONADOS

VI. TRANSTORNOS DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR: UMA REVISÃO

6.2. Transtornos do Comportamento Alimentar em Grupos Diversos Etnicamente: uma Revisão

6.2.2. Identidade Étnica e Processo de Integração Sociocultural

Para uma melhor compreensão da influência cultural e étnica no desenvolvimento dos transtornos do comportamento alimentar é preciso trazer a tona dois conceitos importantes nesta relação, a identidade étnica e o papel da aculturação neste processo.

Acredita-se que o entrecruzamento de culturas proporcionado pelo processo de globalização, e que tem os meios de comunicação de massa como propagadores de valores,

crenças e hábitos diferenciados, provoca uma sobreposição dos valores da cultura dominante sobre as culturas tradicionais, principalmente se os indivíduos estão expostos a esta cultura dominante fora do seu ambiente natural, onde a força da tradição pode ser menor e menos valiosa (BHUGRA, BHUI e GUPTA, 2000). É a isso que diversos autores, especialmente da epidemiologia, têm denominado de aculturação, ou seja, a forma como determinado grupo se relaciona com a cultura do outro, dominante na sociedade, e que possui dimensões cognitivas e afetivas (STOJEK, FISCHER e COLLINS, 2010; TALLEYRAND, 2010; CHAN, KU e OWEN, 2010). Vale dizer que, na antropologia, esse termo gerou fervorosos debates, nos anos 1980, que se opuseram ao mesmo pela sua implícita reificação e simplificação dos processos culturais e da negação da sua indiscutível condição interativa com dimensões sociais, históricas, políticas e subjetivas.

Estudiosos contemporâneos da aculturação a definem como um conjunto de atitudes, comportamentos e valores que se modificam quando pessoas estão em contato com culturas distintas. Admitem que este é um processo complexo, que não significa, como muitos pensam, desistência de sua cultura de origem e assimilação de uma nova cultura, pura e simplesmente (PHINNEY, 2001). Esses estudiosos, baseados nos trabalho de Berry sobre aculturação e adaptação, defendem a ideia de que o processo da aculturação é bidimensional, pois existem dois aspectos dominantes envolvidos na questão. A manutenção da cultura de origem do indivíduo e a adaptação a outra cultura presente na sociedade. Segundo essa teoria, as pessoas podem se manifestar de quatro maneiras diferentes a esse choque de culturas; quando é valorizada unicamente a sua cultura de origem, sem o esforço de assumir também uma relação com a outra cultura, acontece o que se chama de separação; quando ao contrário, é apenas a cultura do outro que é valorizada, há então um processo de assimilação. Se há uma tentativa do indivíduo de se ajustar à cultura dominante, mas sem desvalorizar ou rejeitar sua cultura de origem, acontece um processo de integração, mas se este indivíduo não consegue se adaptar a essa nova cultura e também não valoriza a sua própria cultura, aí se estabelece um processo de marginalização (PHINNEY, 2001).

É preciso, no entanto, levar em consideração que este contato com a cultura do outro, seja este outro uma nação, uma região, um grupo ou indivíduo, não ocorre de forma “blindada”, sem a influência de outros aspectos da vida que se interseccionam e nesse processo de envolvimento darão a tônica de como uma pessoa ou grupo reagirá ou se manifestará frente à diversidade de contextos e situações, inerentes à sobrevivência e à integração dentro de um espaço social. O pertencimento a um gênero, raça e/ou classe, enquanto expressão de normas e regras construídas socialmente, é um exemplo de fatores que conjugam um determinado estar no mundo, mesmo dentro de uma mesma cultura (STOLCKE, 2000; WADE, 2008). Peter Wade (2008) chama a atenção para o fato de que

“É necessário entender o entrelaçamento da raça e o sexo dentro do marco da economia política, as relações de poder de classe, de raça e de gênero; mas

não se pode reduzir este entrelaçamento à simples operação do mercado e do poder, se este se entende como o mero domínio e a defesa de uma posição de superioridade. Há outros aspectos – como são os significados indeléveis e não alienáveis dos mercados raciais ou as dinâmicas psíquicas da alteridade – que há que se levar em conta (Wade, 2008, p. 49, tradução própria).”

Falar em aculturação é desconsiderar a complexidade que envolve as relações sociais, que vão além das questões culturais, apesar de incluí-las. Portanto a interação com diversas culturas promove um processo de integração, e não apenas de reação ao contato com outra cultura. Apesar da maioria dos autores aqui referenciados utilizarem o termo aculturação para se referir a esta questão, entenderemos que se trata do complexo processo de integração sociocultural que toma relevância quando falamos de diversidade étnica e saúde. É nesse contexto que a identidade étnica, ou a identificação de um indivíduo com determinado grupo e seu sistema de valores, o sentimento de pertencimento e orgulho de fazer parte deste grupo, assume importância como parte da identidade social do indivíduo e o protege quanto à imposição de valores da cultura dominante e o sofrimento advindo desse processo (STOJEK, FISCHER e COLLINS, 2010, TALLEYRAND, 2010, SHUTTLESWORTH & ZOTTER, 2011).

As evidências teóricas e empíricas apontam para o fato de que a identidade étnica é um constructo multifacetado, pois inclui várias dimensões, e dinâmico, visto que muda ao longo do tempo e a depender do contexto. Entre esses fatores que compõem a identidade étnica estão a autoidentificação como membro de um grupo social particular, um comprometimento, ou forte sentimento de ligação e investimento pessoal nesse grupo, a busca de informações e experiências relevantes que permitiram a esse indivíduo se perceber como parte deste grupo, avaliação e atitudes positivas em relação a esse grupo, que possibilita ao indivíduo sentir orgulho de fazer parte dele, a assunção de valores e crenças específicas do grupo, bem como a relevância e importância dada a esse pertencimento (PHINNEY, 2007).

O que os estudos apontam é que há uma interação entre a formação da identidade étnica do indivíduo e o processo de integração vivido por ele, que é complexo e que envolve também outros fatores como, gênero, idade e geração de imigração, quando há um processo migratório. Outra conclusão importante é que este processo de integração permite um maior bem-estar aos indivíduos, principalmente os adolescentes, pois possibilita um multiculturalismo salutar (PHINNEY, 2001).

Fazendo parte também da identidade social do indivíduo está a identidade racial, importante no contexto, pois está relacionada à compreensão de si enquanto ser racial, ou seja, como o indivíduo percebe e reage às manifestações do racismo, vividas dentro da sociedade. Esta difere da identidade étnica, mas está implicitamente relacionada, visto que

compartilham alguns fatores como senso de pertencimento, comportamentos e valores associados a um grupo específico (PHINNEY, 2007).

O racialismo da sociedade, que classifica e hierarquiza, se vale daquilo que é visível, palpável, perceptível, por isso as formas corporais, numa época em que beleza e magreza são associadas a sucesso, saúde e felicidade assumem importância fundamental, principalmente entre jovens em processo de formação e definição de sua identidade étnica (STOJEK, FISCHER e COLLINS, 2010, TALLEYRAND, 2010, SHUTTLESWORTH & ZOTTER, 2011). Nesse processo, os valores ocidentais, principalmente os norte americanos e europeus, têm se difundido enquanto padrões hegemônicos de normalidade. Modificar hábitos e assumir novos comportamentos se torna um processo de adequação ao social e, nesse processo, o desenvolvimento de comportamentos desajustados para atingir um corpo idealizado pode ser uma consequência que tem a probabilidade de levar a transtornos de origem alimentar (WOOD E PETRIE, 2010) e é por causa disso que se faz relevante compreender como essas questões se manifestam nos diversos grupamentos étnicos, sejam eles asiáticos, afrodescendentes, indígenas, etc.