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O RACIALISMO INFLUENCIANDO A IDENTIDADE DA MULHER NEGRA NO BRASIL

PARTE 1 – REVISITANDO A PROBLEMÁTICA E TEMAS RELACIONADOS

IV. O RACIALISMO INFLUENCIANDO A IDENTIDADE DA MULHER NEGRA NO BRASIL

O Brasil é um país formado por diferentes grupamentos humanos, originados dos primeiros habitantes, os índios, da ocupação pelos colonizadores europeus e pelos africanos trazidos no processo de escravização. Para justificar o sistema escravista e a comercialização de seres humanos como se fossem coisas, termos como raça e negros passaram a se constituir como elemento de identificação, no qual seres de determinadas raças, mais especificamente os negros, não tinham valor e podiam ser subjugados e tratados como sub-humanos (GUIMARÃES, 2008).

Segundo Guimarães (2008), somos uma nação que se formou com a escravidão, na qual pessoas sequestradas da África eram chamadas de negros e tinham um lugar na sociedade e este lugar era a escravidão. No Brasil vive a maior população descendente de africanos escravizados das Américas, sendo impossível dissociar aspectos da vida cultural e social brasileira da história, trajetória e peculiaridade dos negros e negras desta nação. Apesar disso, constata-se a precária situação de vida dos afrodescendentes brasileiros, através dos indicadores de escolaridade, emprego, habitação e saúde, não pondo margem a dúvidas sobre as consequências nefastas do racismo e preconceito de cor sobre estes indivíduos (PAIXÃO, 2003).

Entretanto, a despeito das condições de vida tão desfavoráveis dos afrodescendentes, ainda vigora, em amplos setores da sociedade e no meio acadêmico, a opinião de que se vive em uma democracia racial. Desta forma, mais de cem anos após a abolição da escravidão, os(as) negros(as) brasileiros(as) continuam vivendo em condições de existência marcadas pela exclusão social, desmentindo o mito de que em nosso país haja indiferença em relação à cor ou etnia das pessoas (PAIXÃO, 2003).

No entanto, a tendência em classificar os povos não se inicia com a colonização das Américas. Portanto, termos como raça, etnia e cor sempre foram usados para promover uma hierarquização entre os grupamentos (IANNI, 2004; GUIMARÃES, 2008). No ano 2000 a.C., negros não podiam atravessar determinados limites acima do rio Nilo, por razões econômicas e políticas; no século V a.C. havia distinção entre os Persas e os outros povos em termos de atributos e qualidades. Até mesmo no Velho Testamento há interpretações que sustentam a superioridade biológica de uma raça em relação a outra (OLIVEIRA, 2003). É importante então, entender que conceitos são esses, quais significados lhes são atribuídos e de que forma interferem na construção da identidade e percepção corporal de mulheres negras.

O termo raça possui significados que vão do biológico ao sociológico, do científico ao nativo (usando palavras de Guimarães, 2008), dependendo do uso atribuído ao mesmo, da sua utilização para justificar atitudes, comportamentos e tratamentos diferenciados dentro de uma sociedade, nação ou comunidade.

Raça enquanto termo biológico já teve importância científica e política, quando se acreditava que existiam diferenças herdadas geneticamente, bem como similaridades, que permitiam classificar povos ou nações. Os primeiros passos nesse sentido foi dado por Karl Von Linneu (1707 a 1778) ao dividir os humanos de acordo com sua localização geográfica (africano, americano, asiático e europeu) e a partir daí a estabelecer características próprias a esses povos. Após ele, Blumenbach, em 1775 agregou à região de moradia a cor da pele como característica importante de classificação originando as cinco raças, branca ou caucasiana, negra ou etíope, amarela ou mongólica, parda ou malaia, e vermelha ou americana (OLIVEIRA, 2003).

Além da origem e da cor da pele, vários outros traços fenotípicos foram estudados para explicar a supremacia de uma raça em relação à outra e justificar atrocidades cometidas contra determinados grupos, como os judeus com o holocausto e os africanos com a escravização. Vários estudiosos como Francis Galton, Karl Pearson, Cyril Burt, Lombroso e, aqui no Brasil, Nina Rodrigues, dedicaram boa parte de suas vidas à comprovação da superioridade de uma raça em relação a outras, utilizando a medida do crânio, traços fisionômicos, sistema sanguíneo, avaliação genética, etc., colocando em prática a eugenia, termo cunhado por Galton para designar “o estudo dos instrumentos sob controle social que podem melhorar ou piorar as qualidades raciais de gerações futuras, quer física ou mentalmente” (OLIVEIRA, 2003, p.64).

A essa tendência de alguns em estabelecer associações entre as características físicas, herdadas geneticamente, com atributos relacionados com caráter, emoções, inteligência, alguns chamaram de racialismo biológico (APPIAH, 1997; IANNI, 2004; NASCIMENTO, 2003), criticado nos meios científicos e carecendo de comprovações efetivas e racionais. A crença na existência de raças biologicamente definidas foi perdendo espaço, dando vasão a outras discussões para o significado das palavras raça, etnia, cor.

Para Appiah (1997) traços e tendências de uma determinada raça se constituíam em uma essência racial, a qual definia não só cor da pele, tipo de cabelo, mas, para além disso, características essenciais pertencentes a determinadas raças e não a outras. Esta era a base do racialismo, que se distinguia do racismo, pois este seria a expressão de tratamentos diferenciados tendo o racialismo como esteio.

Na visão de Elisa Larkin Nascimento (2003) esta distinção entre racialismo e racismo não se sustenta, pois para ela o racialismo, ou a classificação biológica da raça, é apenas constituinte do que ela define como “supremacismo branco”, que seria o processo ideológico de inferiorização e desumanização do outro, a partir da supervalorização dos

atributos, crenças e características brancas (europeias e norte americanas). Esta ideologia já existia muito antes das teorias científicas biológicas e se mantém até hoje, por outros meios, tecnológicos, históricos, econômicos, políticos, sustentados como verdades absolutas também pela ciência. Para a autora, o legado das teorias biológicas sobre a raça mantém seu impacto ainda hoje para o supremacismo branco, mesmo com a negação destas nos meios científicos.

A inexistência de raças humanas é uma verdade científica, mas o racismo é uma realidade cruel, segregacionista, excludente, que atinge a integridade corporal e/ou mental de grupos religiosos, nacionais, raciais ou étnicos. A discriminação racial se baseia na cor da pele e em outros traços fenotípicos, que ao longo da história se tornaram marcadores de raça e etnia (FIGUEIROA, 2004; OLIVEIRA, 2003).

Mas, o que seria raça então? Seria o conjunto de características físicas e biológicas que definem pessoas e grupos? Segundo Guimarães (2008) o termo raça pode ser entendido em termos analíticos ou em termos nativos. Analiticamente o termo raça está respaldado em teorias que o fundamentam e foi o que tentou fazer a biologia e a antropologia com a ideia de que existiam raças humanas diferentes. A falácia desta teoria, comprovada geneticamente ao definir que a raça humana é única, deu espaço para a discussão do termo raça enquanto constructo social, definido pelas relações dentro de uma sociedade (GUIMARÃES, 2008; IANNI, 2004; NASCIMENTO, 2003).

Para este autor a raça, enquanto construção social, estaria ligada a discursos que se referem à transmissão de características físicas, morais, intelectuais e psicológicas de geração para geração, por pessoas de uma mesma origem. Para ele, esta discussão relaciona-se a uma cultura simbólica, na qual as sociedades humanas constroem discursos sobre suas origens e sobre a transmissão de essências entre gerações. Neste sentido, o conceito de raça seria um conceito nativo, por fazer sentido no mundo prático, específico para determinado grupamento humano, mas ao mesmo tempo, deveria ser estudado pela sociologia e ciências sociais. Já a etnia, na sua visão, estaria ligada à origem, o lugar de origem dos grupos, enquanto que para Ianni (2004) seria uma condição biológica.

Este defende a ideia de raça como uma construção das relações sociais, políticas, ideológicas, nas quais há uma relação de poder e dominação. A racialização está na base das estruturas de poder, nas quais uns são estigmatizados, limitados, controlados, impedidos de ascender. Raça e racialização fariam parte de uma mesma conjuntura de relações, nas quais existiria uma tensão, crise de identidade e alteridade, jogos de poder, que evidenciaria a forma como a sociedade funciona. “A raça, a racialização e o racismo são produzidos na dinâmica das relações sociais, compreendendo as suas implicações políticas, econômicas, culturais. É a dialética das relações sociais que promove a metamorfose da etnia em raça” (IANNI, 2004, p. 22).

Para Ianni, ainda continuamos, no século XXI, a hierarquizar e classificar povos e nações de acordo com seus traços fenotípicos e suas características. Este processo de racialização do mundo atende à necessidade de manutenção da estrutura capitalista, que tem como referência de civilização as culturas europeias e norte americana. Desta forma, o que é etnia se transforma em raça e o que é signo se transforma em estigma. O segredo da raça enquanto construção social é que ela se vale de signos, marcas, características físicas para existir. São tais características que assumem valor ou uma desvalorização social, baseado em jogos da trama social, que têm por objetivo a manutenção do poder por aqueles que sempre subjugaram e tiraram vantagens desta posição. A racialização da sociedade se modifica ao sabor das mudanças sociais, políticas, econômicas, e é nesta conjuntura que o racismo se perpetua, enquanto expressão institucional e social do tratamento desigual de pessoas, grupos, nações.

Os perversos efeitos dessa programação social sobre a população negra são inúmeros e podem ser evidenciados, direta ou indiretamente, a partir da análise de alguns aspectos das relações interpessoais e das relações que o grupo estabelece com as instituições, da análise de sua situação socioeconômica, condições de vida e de desenvolvimento humano, participação no mercado de trabalho, acesso aos bens e equipamentos sociais e de sua morbimortalidade. O descaso em relação à saúde da população negra no Brasil tem sido uma das faces mais perversas do racismo, pois nega a possibilidade de promoção e manutenção de condições dignas de vida, perpetuando a presença deste segmento nos piores indicadores (FIGUEIROA, 2004; LOPES, 2005).

Mesmo com a assunção, nos meios acadêmicos, científicos e populares, de que não existem raças e que a raça humana é única, se mantém um racialismo da sociedade, que se baseia na cor da pele, no tipo de cabelo, nas feições do rosto, e é a valoração destas características que se perpetua no subconsciente dos indivíduos e que é alimentada pelos meios de comunicação, pelas instituições (escola, família, religião), estabelecendo as relações entre indivíduos, as oportunidades vividas por eles e, no sentido mais amplo, recriando ou mantendo relações complexas e intolerâncias entre povos e nações (NASCIMENTO, 2003, PETRUCCELLI, 2007; GUIMARÃES, 2008).

No Brasil, a cor assumiu o papel de definidor de identidade dos grupos e se constituiu na base da racialização social. Para Guimarães (2008), a sociedade moderna tomou a antiga classificação racial, nas quais os povos eram divididos em caucasianos, negroides, etc., e a associou a um espectro de cores, oferecendo uma classificação e hierarquia própria racista. No Brasil, a noção de raça foi relevante para a construção e manutenção da sociedade escravista. Essa sociedade racialista foi se modificando e cedendo espaço para outro tipo de classificação, consequência da ação de resistência e luta dos escravizados, que ao serem libertos conformavam outro grupamento, que incluíam os mestiços ou mulatos. A categoria predominante em termos de classificação social passou a ser ‘cor’ e não ‘raça’, e está hoje na base do que se chama nação brasileira (GUIMARÃES, 2008).

A cor, diferente da etnia, é construída de forma relacional, não se constituindo nem em algo natural, muito menos inerente ao indivíduo. Ao contrário, a etnia estabelece ligação com a origem, seja real ou imaginária, incluindo não só a cor, mas outros aspectos da vida do indivíduo, como a religião, a língua, ancestralidade, etc. A classificação por cor se dá a partir de ideologias construídas socialmente. A cor só assume significado social no contexto de uma realidade histórica e cultural específica. A dimensão cor/raça se estrutura na conceituação social das aparências e assume significado simbólico, determinando como as pessoas se veem e veem os outros. No Brasil, os múltiplos termos que definem a cor dos indivíduos se abrigam na necessidade de fugir a uma identificação étnica, na qual há uma subjugação e subordinação de quem não esteja associado ao modelo valorizado, branco, europeu, norte americano, produzindo, na maioria das vezes um branqueamento social (GUIMARÃES, 2008; PETRUCCELI, 2007).

Para Elisa Larkin Nascimento (2003), essa transformação da discriminação racial em discriminação por cor, que, segundo alguns acadêmicos e cientistas sociais, nada tem a ver com a origem africana e sim com uma questão estética e de classes, é uma forma de disfarçar a permanência do racismo, que se baseia no supremacismo branco e no etnocentrismo ocidental, que ela chama de “sortilégio da cor”. De acordo com esta teoria, os estudiosos acreditam que o fato das pessoas de pele mais escura se perpetuarem, na sua maioria, nos estratos mais baixos da classificação econômica e social, estaria relacionada a uma mera coincidência ou resquício do sistema escravista, mantendo uma discriminação social ou de classe, ao fixar os negros nos extratos mais inferiores da estrutura econômica, condizente com a sua condição social de ex-colonizados ou ex-escravos, mas que aconteceria de forma racialmente neutra. O sortilégio da cor então seria a desracialização ideológica, travestida de análise científica, com o intuito de mascarar a supervalorização da cultura branca ocidental.

Ao substituir o preconceito de raça pelo preconceito de cor, na verdade, disfarça-se o racismo simbólico existente no imaginário social e presente nas relações sociais, pois, como diria Nascimento (2003), a marca é uma expressão da origem. Classificar as pessoas quanto à cor da pele é uma forma de manter viva a discriminação da raça e a existência de raças simbólicas. A não assunção da palavra raça reforça e naturaliza este racismo simbólico e a ideologia que o sustenta.

A ideologia racial desenvolve diversos símbolos e manifestações que explicam, justificam e naturalizam as tensões e conflitos raciais e que mantém a sociedade capitalista burguesa, caracteristicamente competitiva e individualista. Esta ideologia é transmitida através de gerações pelos meios de comunicação, pelas instituições religiosas e políticas, pela cultura de massa, definindo o que possui valor socialmente, o que deve ser aceito, e criando a falsa ideia de democracia racial para uma sociedade que não é uma democracia política e muito menos uma democracia social (IANNI, 2004).

A sociedade civil organizada, através dos movimentos negros, contesta essa ideia de democracia racial, na qual o preconceito que existe é puramente de classe, e na qual a cor é uma questão de escolha estética. Os integrantes desses movimentos defendem a posição de que o conceito de raça se mantém no imaginário social, e por isso, deveria ser utilizado nas investigações científicas e epidemiológicas que desvelam as desigualdades vividas na sociedade brasileira (NASCIMENTO, 2003; IANNI, 2004; GUIMARÃES, 2008).

Para os ativistas desses movimentos a assunção da identidade negra é fundamental para a legitimação da cidadania, mesmo que as instituições oficiais não a respeitem (GUIMARÃES, 2008). Como diria Neusa Santos Sousa (1990), no Brasil as pessoas não nascem negras elas se tornam negras, a partir do momento que fazem um resgate histórico da sua ancestralidade, suas raízes, aceitam suas características e desenvolvem uma identidade oposta à de dominação. É preciso tomar consciência da sua condição e da ideologia por trás dela, ressignificando seus valores e assumindo os riscos e dores inerentes a esse processo. Assumir uma identidade negra é assumir um posicionamento político, é assumir que faz parte de um grupo racial ou étnico, desvalorizado socialmente, e para a qual os modelos ou referências positivas nas quais se espelhar são pouco divulgados, por isso é um processo difícil e doloroso (OLIVEIRA, 2004).

Alguns estudiosos consideram esta necessidade de trazer a tona o conceito de raça para discutir as desigualdades enfrentadas por alguns grupos como um racismo às avessas (APPIAH, 1997; GUIMARÃES, 2008); no entanto para outros (NASCIMENTO, 2003; IANNI, 2004) a deslegitimação da luta reivindicatória dos dominados é mais uma forma de expressão da supremacia branca ou da dominação dos ideais brancos ocidentais. O racismo se cria e recria com as mudanças sociais, e na sociedade burguesa capitalista a questão racial continua presente, bem como as dualidades masculino/feminino e as desigualdades de classe sociais. A globalização do mundo tem permitido um novo processo de racialização, renovando as tensões e os conflitos, portanto naturalizar as desigualdades raciais é uma forma de manter o status quo para quem se beneficia com isso. Os movimentos negros nessa perspectiva, ao assumir a ideia de raça não biológica, mas construída nas tramas das relações sociais, constroem uma identidade de projeto, ao procurar se inserir na sociedade e transformar a estrutura social, solicitando o resgate da identidade negra, o estudo das desigualdades a partir da racialização construída no imaginário social e a construção de uma nova forma de sociabilidade, formatando, dessa maneira, um projeto de identidade social (NASCIMENTO, 2003; IANNI, 2004).

É também o movimento social, mais especificamente o movimento de mulheres, que traz à tona as diferenças da construção social de raça, e em consequência do racismo, para homens e mulheres. O movimento de mulheres negras salienta que a vivência do racismo é diferente para as mulheres, pois para elas as marcas e signos fenotípicos representam muito mais o lugar ocupado na sociedade. A violência da associação das características físicas

negras, como cor da pele e tipo de cabelo, com a feiura, o desleixo e a sujeira atingem mais as mulheres e a construção da sua identidade negra (FIGUEIREDO, 2008).

As representações do corpo das mulheres negras estão associadas a uma sexualidade exacerbada e desenfreada, que justificam os abusos sexuais sofridos por estas no cenário brasileiro, principalmente com o turismo sexual, ou a um corpo marcado pela história de serviços domésticos, desvalorizados socialmente, interferindo na construção de uma autoestima positiva, por falta de referenciais que a sustente (FIGUEIREDO, 2008).

Nascimento chama a atenção para o fato de que, no mundo contemporâneo globalizado, as imagens também são códigos através dos quais as sociedades se organizam e mantêm o poder e a dominação. Com base nessa perspectiva, os movimentos sociais de mulheres negras agem de forma a defender a valorização de outros códigos culturais, nos quais seus corpos se configuram como identidades autônomas, símbolo de resistência a um padrão hegemônico branco, europeu (NASCIMENTO, 2003; FIGUEIREDO, 2008).

A interiorização de uma autoimagem inferiorizada, devido a uma cultura patriarcal, na qual as características específicas do ser feminino representam e alimentam estereótipos e preconceitos, dificultam a construção de uma identidade e de uma autoestima positiva. A estas representações negativas se associam os efeitos das desigualdades raciais, justificadas no contexto do mito da democracia racial como naturais à essência inferior dos descendentes de africanos e escravizados, repercutindo nas possibilidades de desenvolvimento das mulheres negras (NASCIMENTO, 2003).

“Estabelecido o modelo do universal humano como masculino e branco, à medida que uma identidade se “desvia” desse padrão, distancia-se da condição humana. Desse modo, o racismo e o patriarcalismo se cruzam numa dinâmica de interação e dependência mútua na desumanização desses grupos subordinados (NASCIMENTO, 2003, P. 68)”.

Por mais que atualmente as mulheres negras venham construindo outras representações para si, ainda carregam em seu corpo o estigma que representa o corpo negro, associado ao repertório do desprezível e contrário aos atributos morais e intelectuais considerados naturais ao seu oposto, o homem branco. Por conta disso, ainda hoje se mantêm aprisionadas, no imaginário social, a um lugar relacionado à prostituição, à subserviência e à incapacidade (NOGUEIRA, 1999). As consequências dessa dupla desvalorização, enquanto mulher e enquanto negra, se expressam em vários indicadores, como escolaridade, emprego, renda e, principalmente, saúde.

Há razões mais que suficientes no debate sobre o processo saúde/doença para que se combatam as posturas racistas e as discriminações sexistas e de classe. A principal delas é a ideia equivocada e anticientífica de que há seres humanos superiores e inferiores. A história da humanidade está repleta de exemplos de danos causados pelas discriminações classicistas, sexistas e racistas na área da saúde, grande parte alicerçada em visões

biologizantes de hierarquização dos grupos populacionais raciais ou étnicos. Porém, na atualidade, é inaceitável e anticientífico não perceber a interpenetração das variáveis sexo/gênero, raça/etnia e classe social como informadora do processo saúde/doença. O processo sanidade/enfermidade é multifatorial e complexo e nele estão entrelaçadas influências do meio ambiente físico, social, político e cultural, em interação com as condições biológicas do ser humano (OLIVEIRA, 2003).

A mulher negra e o homem negro, ao longo da formação social brasileira, romperam com o imaginário de serem um EU puramente biológico, ao adquirirem, inclusive a partir de uma conquista política, uma identidade histórica, relacional, transcendente, na qual a saúde expressa uma significação subjetiva e simbólica. Portanto, ao falar de saúde deve-se levar em consideração que o corpo marca e recria gestos e culturas, que têm o sentido de