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Corpo, Espaço Social e Transtornos do Comportamento Alimentar

PARTE 1 – REVISITANDO A PROBLEMÁTICA E TEMAS RELACIONADOS

VI. TRANSTORNOS DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR: UMA REVISÃO

6.1. Corpo, Espaço Social e Transtornos do Comportamento Alimentar

Segundo Bourdieu (2005, 2007), a diferenciação e a divisão entre os agentes sociais se dão pelas disposições destes em relação ao espaço social. Essas disposições, às quais ele chama de habitus, se inscrevem no corpo, e consequentemente se expressam através dele.

“(...) os agentes sociais são dotados de habitus, inscritos nos corpos pelas experiências passadas: tais sistemas de esquemas de percepção, apreciação e ação permitem tanto operar atos de conhecimento prático, (...) como também engendrar (...) estratégias adaptadas e incessantemente renovadas, situadas, porém, nos limites das constrições estruturais de que são o produto e que as definem (Bourdieu, 2007, p. 169).”

As disposições ou habitus são estabelecidas através das incorporações das regras e estímulos do meio social em confronto permanente com as estruturas internas dos indivíduos, mas que os caracteriza como ser coletivo ou grupal (BOURDIEU, 2005, 2007). A construção das disposições ocorre através da dupla relação entre corpo e espaço social. O corpo interfere e molda o espaço social, da mesma forma que o espaço social o faz em relação ao corpo (BOURDIEU, 2007).

“(...) o habitus (...) constitui o lugar de solidariedades duráveis, de fidelidades incoercíveis, pelo fato de estarem fundadas em leis e laços incorporados, (...) adesão visceral de um corpo socializado ao corpo social que o fez e com o qual ele faz corpo. Por conta disso, ele constitui o fundamento de um conluio implícito entre todos os agentes que são o produto de condições e condicionamentos semelhantes, bem como de uma experiência prática da transcendência do grupo, de suas maneiras de ser e de fazer, cada um encontrando na conduta de todos os seus pares a ratificação e a legitimação (...) de sua própria conduta a qual, por sua vez, ratifica e (...) retifica a conduta dos outros (Bourdieu, 2005, p. 177).”

Cada espaço social produz os seus habitus e é produzido por eles. Neste sentido, os habitus são a forma de diferenciação dos agentes sociais e de classes de agentes. Diferenciações

estas expressas pelos modos, maneiras, escolhas, bens, que simbolicamente diferenciam e classificam as categorias sociais (Bourdieu, 2005, p. 21, 22).

Essas diferentes posições sociais, existentes no espaço social, são apreendidas pelo indivíduo biológico a partir da sua inserção ou imersão neste espaço através do corpo. As estruturas do mundo social conformam o corpo do agente social, bem como as estruturas do corpo individual emprestam significado ao mundo social (BOURDIEU, 2007, p. 172, 173, 174). Este corpo, integrante do mundo social, está exposto, susceptível e condicionado pelos valores, culturas, crenças e modos de ser que definem o ser coletivo do qual faz parte, mas através das suas disposições absorve, reinterpreta tais signos, conformando a sua singularidade. Do mesmo modo, esta singularidade expressa no corpo se insere e molda o grupo social ao qual pertence.

Desta forma, a singularidade do corpo está sujeita a um processo de socialização contínuo, que depende e se estabelece nas relações sociais. Neste sentido, o espaço social se revela no espaço físico pela posição que o corpo ocupa no mesmo, através dos seus signos e características.

Através do corpo apreendemos e reinventamos o mundo. O estar no mundo permite ao corpo ser influenciado por ele e ao mesmo tempo influenciá-lo. Desta forma, podemos compreender o mundo e os seus significados simbólicos, regras de conduta, através das disposições adquiridas pelo corpo.

As atitudes e comportamentos individuais dos corpos socializados estão em relação direta com os habitus adquiridos através das experiências e os habitus atualizados no próprio processo de socialização (BOLTANSKI, 2005). Esse processo de socialização está diretamente relacionado com uma crença adquirida corporalmente de que as coisas são como são, e esta capacidade de aquisição deste conhecimento depende da disposição corporal, suscitada e ativada pelas necessidades impostas pelo mundo.

Os estímulos a que estão sujeitos os corpos no mundo social fazem com que estes estabeleçam estratégias de ação adaptadas às mudanças ocorridas neste mundo. Esta exposição do corpo ao mundo social, e suas possíveis modificações e alterações advindas da própria existência do corpo social no mundo, lhe confere a possibilidade de adaptação às e incorporação das estruturas do mundo social. Esse aprendizado da ordem social se dá no confronto entre o corpo e o mundo social (BOURDIEU, 2007). Aprendizado sujeito a tensões, conflitos, ou seja, que nem sempre se dá de forma harmoniosa, e que pode imprimir no sujeito, através do seu corpo, o sofrimento ou as emoções advindas deste aprendizado. A manutenção da ordem social impõe uma regulamentação do que é permitido, adequado, aceito, através de ritos e comportamentos incorporados e manifestos através do corpo. Do mesmo modo, as classificações sociais e as posições ocupadas nesse espaço se inserem em

marcas corporais, condutas, num jogo social que favorecerá ou não as expressões das disposições potenciais individuais.

Esta relação com o ambiente social reforça e é reforçada por comportamentos e condicionamentos que se traduzem em comportamentos do grupo. Ao mesmo tempo em que se mantém enquanto corpo socializado, constrói e, neste sentido, controla o mundo através da modelação do corpo.

A reação às mudanças que ocorrem no mundo socializado depende, em grande medida, das experiências vivenciadas, das expectativas estabelecidas em relação às experiências e ao possível descompasso entre elas. O significado atribuído a este descompasso dependerá das disposições de cada agente ou sujeito, imprimindo reações diferentes para experiências similares.

Neste sentido, poder-se-ia dizer que o desenvolvimento de transtornos do comportamento alimentar, que imprime ao corpo uma modelação através de ritos agressivos (a restrição alimentar severa, os comportamentos purgativos após uma alimentação exígua, o jejum prolongado) seria um exemplo de resposta ao descompasso entre a experiência vivida e as expectativas de algumas mulheres, no seu contexto social?

O mundo social contemporâneo tem estabelecido, de forma regulamentada, o que é aceito e o que é adequado em termos corporais femininos, impondo ao sujeito um estar no mundo, um habitus reificado, valorizado, desejado, ao qual é atribuída a ideia de poder. A modelação do corpo como expressão de socialização impõe às mulheres comportamentos, sujeitos ao reconhecimento e reforço dos outros sociais, necessários para identificação e sentimento de pertencimento a este grupamento social.

Para Bourdieu (2005), o grau de satisfação íntima dependerá em maior grau da possibilidade do modo de funcionamento do mundo social permitir o desabrochar do habitus dos diferentes agentes. Para aquelas mulheres em que as disposições não se ajustarem às exigências desse mundo contemporâneo, o seu corpo será a expressão da distância entre o vivido e o estabelecido no espaço social.

Como as estruturas do mundo social estão presentes no corpo e vice-versa, as imposições rituais para configurar a estrutura do corpo anoréxico são uma manifestação adaptada das estruturas do mundo social contemporâneo, ou uma expressão da menor aptidão destas mulheres para jogar este jogo social?

Na verdade, me parece que a resposta é positiva para ambas as opções, pois ao procurar adaptar a sua disposição ou habitus ao mundo do corpo perfeito, magro, exigido pela sociedade contemporânea, as mulheres que desenvolvem transtornos revelam um componente estrutural deste mundo, um habitus adaptado, que lhes permite constituir o seu lugar ou espaço social.

As mulheres com transtornos do comportamento alimentar, em especial as com anorexia, estabelecem novas regras e simbologias corporais e sociais, conformando valores e características próprias em um grupo, dentro de um grupamento maior, o das mulheres. Ao definir novas regras para o corpo social pode-se supor que elas desenvolvem uma maneira própria de controle do corpo e do mundo social, a partir de suas disposições e da relação com o mundo que se apresenta para elas.

Ao mesmo tempo, na medida em que o estabelecimento desta nova ordem social imputa um sofrimento ao agente social (a mulher com anorexia) e ao seu grupamento social mais próximo (a família e os amigos), talvez o responsável pelas primeiras aquisições de disposições sociais, evidencia-se uma fragilidade para se manter em relação com este mundo.

A saída estratégica, nesta lógica, é construir novos códigos e um novo grupo de pertencimento e identificação. O grupo mais íntimo passa a ser o das outras mulheres com os mesmos sinais, vontades, com uma compreensão própria do processo, e, por isso, capazes de oferecer reforço umas às outras. Nesta perspectiva, os blogs e comunidades da internet se tornam uma rede de apoio social e um universo particular de aceitação e compreensão.

Essa estratégia de inserção no espaço social ou de localização de um espaço dentro do mundo se assemelha ao conceito de impureza trazido por Bauman (1998), quando diz que o estar no mundo “fora da ordem” estabelecida é uma consequência desta mesma ordem, ou seja, da pureza.

Nesta lógica, o padrão de beleza valorizado na sociedade, que associa o belo ao ser magro, jovem e branco, se impõe como a pureza ou ordem social. Para manutenção desta ordem, têm sido desenvolvidos vários artifícios de modelagem do corpo, técnicas rápidas de emagrecimento, cirurgias, dietas milagrosas, crescimento das indústrias de cosméticos e medicamentos, bem como de espaços (academias, salões de beleza) onde este corpo desejado pode ser obtido, ou que oferece a ideia desta possibilidade.

O incentivo ao consumo destes artifícios com o intuito de construir um novo corpo, adequado, ajustado, inserido a esta ordem social, também produz uma insatisfação insondável, pelas infinitas possibilidades oferecidas neste mercado da criação da beleza, ou seja, quanto mais é oferecido em termos de opções mais se intensifica a busca pelo novo, pela nova probabilidade de assunção de uma identidade desejada.

As que não conseguem responder ao apelo consumista na tentativa de se conservar dentro da ordem estabelecida (as mulheres pobres, por exemplo) pela incapacidade de acessar todas as possibilidades de manipulação corporal, e em consequência acabam mantidas fora da ordem vigente, são as “consumidoras falhas” (BAUMAN, 1998).

Nem todas as mulheres possuem disposições (retornando a Bourdieu) que se adaptam a esta exigência social, e por isso acabam se transformando na impureza da ordem social, conformando novos habitus. É o caso das mulheres que possuem signos fenotípicos diferentes dos associados ao belo, como as negras, as gordas, as idosas.

Os sinais corporais das mulheres negras, lábios grossos, nariz arredondado, cabelos crespos e cor da pele escura, oposto ao que é valorizado e definido como belo, se traduzem em signos de inferioridade, de inadequação, de impureza social.

Estas mulheres, por não possuírem os signos valorizados socialmente estão sujeitas a um processo de marginalização, que não é individual, mas coletivo, pois dificulta para este grupo a participação nas relações sociais, culturais e políticas da sociedade (SAWAIA, 2008). É a partir desses signos que se justificam atitudes, comportamentos incorporados pelos outros sociais, não excluídos e considerados normais, naturais, regras assumidas como sociais. Esse processo de normatização pode levar à “desinserção” de um grupo, ou seja, ao questionamento quanto à sua existência enquanto ser social, e à construção de uma identidade com base nesses valores, e no aprendizado de que o seu corpo configura o que não é adequado, aceito, regra, favorecendo a construção de subjetividades em resposta a este aprendizado.

Mesmo ao consumir os artifícios postos à disposição, com o intuito de se aproximar ao padrão da ordem vigente, este movimento de modificação fenotípica não o exime da sua condição de estranho, e, por isso mesmo, consumidor falho, objeto fora do lugar no processo social. Ou seja, não há lugar para estes indivíduos na ordem social estabelecida, e mesmo a tentativa de modificação dos sinais fenotípicos que as marginalizam no mundo social, de adaptação e construção de um habitus que se ajuste a esta realidade, possibilitam o questionamento desta ordem, pondo em cheque a sua existência.

Ao associar várias características fenotípicas consideradas fora da ordem, como o fato de ser negra e gorda, por exemplo, à pressão exercida por uma estrutura social organizada dentro de outros padrões, e que se pretende hegemônica, podem ser gerados os princípios para o desenvolvimento de estratégias de adaptação radicais, como é o caso dos transtornos do comportamento alimentar.

Tentando fugir às consequências da rejeição social, como a ruptura de vínculos, o isolamento social, a solidão; procurando uma integração com o mundo, o desenvolvimento dos transtornos alimentares pode ser um artifício de adequação, uma tentativa de estabelecimento de um espaço social para si, a viabilidade de se inserir em um grupo e ser reconhecido por ele.

Neste caso, as mulheres negras com transtornos alimentares seriam ao mesmo tempo expressão da impureza social, e uma consequência desta ordem segregacionista. Estariam inclusas no mundo social de uma forma diferente. A exclusão, então, seria uma expressão da

inclusão diferenciada, marginalizada, e que, a todo o momento, coloca em questão os valores concebidos e, ao mesmo tempo, os reforça (SAWAIA, 2008; WANDERLEY, 2008).

6.2.Transtornos do Comportamento Alimentar em Grupos Diversos Etnicamente: