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A separação definitiva e o sentimento de solidão

PARTE II: DESCORTINANDO O MUNDO DE NOSSOS SUJEITOS

4.6 A separação definitiva e o sentimento de solidão

O entrevistado mencionou que a separação definitiva ocorreu após um intenso conflito entre o então casal, no qual ele jogou um livro contra a esposa. Na ocasião, essa senhora chamou a polícia alegando que havia sido agredida fisicamente por ele.

“Ai teve uma discussão lá [...]. Ai comecei a tentar estudar, fazer cursinho, pra tentar mudar minha vida. [...]. Ai ela [...] perturbando meu juízo lá [...], perturbou, perturbou, perturbou. Ai disse: ‘rapaz, deixa de me perturbar pelo amor de Deus’. Ai só sei que eu peguei, joguei um livro nela, joguei um livro nela... Ai ela pegou e chamou o ronda... Ai o ronda foi lá em casa. [...]. Ai disse [para o policial]: ‘olha, eu não bati nela. Agora é o seguinte: eu tenho os meus direito [sic].[...] você não tem o direito de chegar aqui e me tirar da minha casa. Você não pode’”.

Segundo informado, a polícia não pôde intervir, pois não havia tido o flagrante, nem provas quanto à agressão, mas orientou Rita a buscar a delegacia para denunciá-lo e tentar provar, caso assim desejasse. Pudemos perceber que Antônio não percebe sua atitude de jogar o livro contra a esposa como uma forma de agressão.

Mais uma vez observamos uma banalização de formas sutis de violência no relacionamento em epígrafe. Os casais podem sofrer e praticar microviolências (HIRIGOYEN, 2006), ou seja, pequenas agressões, muitas vezes não percebidas como tal, que podem levar à ocorrência de episódios mais severos, o que, a longo prazo, pode gerar impactos na saúde física e psicológica não somente no casal, mas na de todos os envolvidos.

Antônio referiu que, após esse episódio, Paulo passou a tecer ameaças contra ele, afirmando que iria agredi-lo fisicamente, caso não fosse embora. Explicou que, como Rita disse ao filho que havia sido agredida pelo então marido, o rapaz revoltou-se, ocorrendo uma maior tensão no relacionamento entre o jovem e o padrasto. Nessa perspectiva, com o intuito de evitar um problema mais sério, o entrevistado decidiu sair de casa.

Como referimos anteriormente, os conflitos entre um casal, muitas vezes, não se restringem somente aos cônjuges, mas envolvem outros familiares, trazendo reverberações para todos os envolvidos.

Antônio afirmou que, após a separação, continuou fazendo visitas ao filho e que, em uma dessas ocasiões, a filha Lia foi gerada. Apontou que não haviam planejado, que Rita não desejava a gravidez, que o culpava por ter ocorrido e que os filhos dessa senhora também não aprovavam, pois consideravam que o casal poderia reatar em virtude do nascimento de uma nova criança. Aliado a isso, referiu que Rita teria dito que daria a menina para ele criar, pois não tinha condições de cuidar de mais um filho. Explicou ainda que a infante foi bastante desejada por ele e que essa gravidez se constituiu como sua última tentativa de reatar o casamento, mas que esse objetivo não foi alcançado.

“A Lia nasceu nas visitas que eu fazia... Eu ia visitar o Marcos, né?! [...] Ai ela me culpa [...]. Ai na Lia foi mais assim: eu, eu queria, quero, quero, quero, queria muito a Lia. Assim, a tentativa de, do golpe da barriga, né?! Tentar reatar... porque na verdade, [...] o que dificultava a convivência também... não por ela também, mas pelos filhos adolescentes, né?! Ai eu tentava... ai ele [Paulo] via que eu tava [sic] começando a voltar, ter espaço, porque a Lia tinha nascido [...] E ai foi isso mesmo, ele fez a cabeça dela de um jeito que... ai minha filha tá [sic] lá, sabe?!”.

O entrevistado informou que, em virtude desse contexto, não pôde acompanhar a gravidez de Lia da forma como gostaria, tal como fez com Marcos. Informou que a criança nasceu prematuramente, com oito meses de gestação, associando esse episódio a um conflito entre Rita e Rodolfo, que teria provocado acentuado estresse nessa senhora, mas que, como estavam separados, somente tomou conhecimento do parto após o seu acontecimento. Acrescentou que a ex-esposa não lhe entregou a criança, apesar de ter dito que ia fazê-lo.

Rita expôs uma explicação diferente para o parto prematuro da filha. Segundo essa senhora, o casal ainda estava junto quando a criança foi gerada e o nascimento teria ocorrido precocemente em virtude de uma discussão entre ela e Antônio, provocada pela descoberta de uma nova traição desse senhor. Ainda conforme Rita, esse conflito teria culminado com a separação definitiva do casal.

Antônio discorreu, em sua narrativa, sobre como viveu o processo de dissolução conjugal, de sua dor ao se divorciar da esposa e ficar mais distante dos filhos.

“[...] eu tava [sic] muito fragilizado, sabe, emocionalmente... porque eu tava [sic] sem, sem mulher, gostava dela... E sem meus filhos...”.

“[...] mas pra mim, foi duro ficar sem meus filhos, sabe?!” “[...] separação pra mim, pra mim hoje é tá [sic] só, sabe?!”

“[Separação é] Ser solitário, tá [sic] só, não ter ali, ver que não tem uma família, sabe?! Pra mim é isso”.

O entrevistado apontou a emergência de um sentimento de solidão com a separação conjugal, mencionando ter sentido-se fragilizado emocionalmente. Aliado a isso, esse senhor estabeleceu uma associação entre casamento e família. Para ele, separação é estar só e não ter uma família. É possível que esse sentimento esteja relacionado à diminuição de sua convivência com os filhos e à frustração dos sonhos e ideais de constituição de família, que haviam sido projetados em seu casamento:

“E tá [sic] dentro do ônibus e ver uma, uma criancinha, ver, ver uma família, eu olhava assim... atender, por exemplo, no restaurante, um casal, com a filha... pra mim, aquilo ali, eu olhava, olhava praquela [sic] cena ali e saia pro banheiro pra chorar... porque eu num... disse: ‘porque que tava [sic] acontecendo? Porque que tá [sic] acontecendo comigo?’”.

A separação não significa necessariamente a inexistência de família, referindo-se a uma transformação em seu formato (RIBEIRO, 2000). O divórcio se constitui como uma das mudanças familiares possíveis, podendo-se considerar que os ex-cônjuges são membros de uma mesma família: uma família descasada (RIBEIRO, 2000). Essa concepção pode contribuir para o estabelecimento de uma relação de cooperação entre o ex-casal, ao contrário de uma compreensão em que os ex-cônjuges são vistos como inimigos ou adversários.

O divórcio envolve mudanças em uma família, que passa de mononuclear para binuclear, ou seja, que passa a ser composta por dois núcleos, cada um sendo conduzido por um dos pais, mas que continua compondo uma unidade familiar (AHRONS, 1994).

Emocionado, chorando, o entrevistado asseverou também que ainda hoje se sente casado e que a separação lhe provocou a sensação de perda de uma parte de si.

“Até hoje eu não tirei o meu, meu anel...”.

“[...] é... é... é assim, parece que falta um pedaço da gente, sabe?! Porque você se acostuma com aquele vínculo, com aquela coisa de chegar em casa, trabalhar e chegar em casa, tá [sic] com ali, ter uma conversa... hoje não...”. (grifo nosso).

Uma separação conjugal, muitas vezes, provoca essa sensação de falta de um pedaço, tendo em vista que é uma personagem, é uma faceta de nossa identidade

que se desfaz: o (a) esposo (a). Aliado a isso, vivemos a morte do outro em nossa vida. Torna-se, então, importante a vivência do luto dessas perdas e a ressignificação dessa parte de nós.

“Para quem continua a amar, um amor defunto é ao mesmo tempo presente e passado; é presente para o coração fiel, é passado para o coração sofrido. É, pois, sofrimento e reconforto para o coração que aceita ao mesmo tempo o sofrimento e a recordação.” (BACHELARD, 2010, p. 50). Esse trecho traduz bem nossa percepção quanto aos sentimentos de nosso entrevistado em relação a sua ex-esposa. Antônio nutre sentimentos ambíguos por essa senhora, uma vez que o amor parece ainda se fazer presente para ele, que busca torná-lo passado em virtude do sofrimento vivenciado. Esse amor, ao mesmo tempo, significa sofrimento pela ausência da pessoa amada e pela falta de perspectiva de vivê-lo novamente; e reconforto, pela possibilidade de entrar em contato, mais uma vez, com o vivido, ainda que seja pela recordação, pelos recursos da memória.

Antônio vivencia uma dificuldade em se desvincular de sua personagem marido e em viver a morte de Rita como sua esposa. A dimensão da conjugalidade parece ainda estar bastante presente em sua vida. Apesar de a separação já ter ocorrido há mais de dois anos, o entrevistado demonstra ainda estar vivenciando o luto da separação (CARUSO, 1981), luto pela morte de sua personagem marido e pela morte de Rita como esposa. É a dimensão não cronológica do tempo (RICOEUR, 2012b; JOVCHELOVITCH; BAUER, 2013) que desempenha centralidade nessa realidade, quando a cronologia e a linearidade do tempo são relativizados, em função da apreensão da experiência como um todo, da compreensão dos sentidos, motivações e explicações relacionadas ao fenômeno vivenciado.

A desconstrução da conjugalidade, após a dissolução da união, ocorre ao mesmo tempo que a reconstrução da identidade individual, constituindo-se em um lento e doloroso processo a ser vivenciado pelo ex-casal (FÉRES-CARNEIRO, 2003). Nessa fase, misturam-se sentimentos de maior liberdade e de solidão, o que torna o período inicial da separação especialmente difícil para os ex-cônjuges (FÉRES-CARNEIRO, 2003).

Ricoeur (2012a) menciona que os homens do passado estabeleceram planos e projetos para o futuro que nem sempre se concretizaram e que suas ações, muitas vezes, provocaram consequências indesejadas que frustraram seus ideais. Denomina de cemitério de promessas não cumpridas o espaço que separa esses homens do passado e

os historiadores, explicitando que cabe a estes o despertar dessas promessas. O autor refere, ainda, que

Ao se libertar, por meio da história, das promessas não cumpridas, mesmo impedidas e reprimidas pelo curso ulterior da história, um povo, uma nação, uma entidade cultural pode aspirar a uma concepção aberta e vívida de suas tradições. (p. 348).

Nesse sentido, Ricoeur (2012a) fala da necessidade de libertação de um povo de suas promessas não cumpridas, a qual pode ser alcançada através do trabalho da história. Refere ainda a importância da memória e da tradição nesse processo, apontando que a primeira é compreendida a partir de dois desdobramentos: a memória- repetição e a memória-reconstrução, e discorrendo sobre a necessidade de a tradição apresentar desdobramentos semelhantes.

O estudioso refere que a concepção de tradição como um “depósito morto” está associada ao mesmo padrão de compulsão de repetição que a memória traumática. De forma semelhante, podemos pensar a memória-reconstrução relacionada à tradição aberta e viva. O que entendemos disso? A primeira concepção de tradição mostra-se enrijecida, sem abertura a mudanças, mas somente à reprodução do que já foi instituído, a formas de controle, podendo se constituir como fonte de ressentimento. A segunda possibilita a sua assimilação pelos povos e a sua transformação, estando aberta a constantes (re) apropriações e a refiguração pelo mundo dos sujeitos.

Desse modo, Ricoeur (2012a) expõe o caráter terapêutico proporcionado pela memória e tradição, ao propiciar a libertação de um povo de suas promessas não cumpridas. O autor indica, ainda, a importância de construção de narrativas diferentes e do conhecimento de narrativas de outros povos no sentido de auxiliar no uso da tradição. Com o intercâmbio das memórias e das narrativas, as tradições podem ser usadas em seu caráter vívido, potencializando o caráter terapêutico aqui referido.

Adotando e adaptando essa perspectiva para nosso contexto, podemos dizer que nós traçamos planos, sonhos, mas que, muitas vezes, nossas ações provocam efeitos indesejados no futuro, que nos frustram e decepcionam. Ao adentrar em um casamento, fazemos planos e promessas que nem sempre poderemos ou desejaremos cumprir. Daí nossas ações cotidianas podem ir minando o relacionamento até que a união é desfeita. Promessas de amor e respeito, de fidelidade, de uma vida inteira juntos são rompidas e, muitas vezes, para um lado só, gerando sofrimento, principalmente para aquele que continuou alimentando expectativas de um ideal construído no passado. Entre o sim

primeiro do casamento e sim da separação, estabelece-se, assim, um cemitério de promessas não cumpridas, que, muitas vezes, alimenta ressentimentos e produz estagnação na vida dos sujeitos que vivenciam a dissolução de uma união.

A compulsão à memória-repetição precisa aqui ceder espaço para o trabalho da memória-reconstrução, possibilitando, nesse caso, não necessariamente a reanimação dessas promessas, mas a sua ressignificação. As experiências passadas deixaram suas marcas, mas elas não precisam significar uma reatualização constante do sofrimento, desse vivido em nossas vidas.

Desse modo, faz-se fundamental a elaboração de narrativas diferentes sobre nossas experiências, que nos libertem do que foi, mas que já não é; que nos libertem das promessas não cumpridas dirigidas a nós ou efetuadas por nós.