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PARTE II: DESCORTINANDO O MUNDO DE NOSSOS SUJEITOS

3.2 Sobre sua infância e adolescência

Ao discorrer sobre sua história de vida, Rita retorna a sua infância, através de suas lembranças sobre o passado, referindo que teve duas irmãs, sendo que uma faleceu quando criança e a outra é mais nova e mora em Portugal. Acrescentou que sua mãe foi embora, deixando-as com o pai quando tinha apenas quatro anos de idade e a irmã caçula, um pouco mais de um ano. Ademais, relatou que foram criadas pelo pai, o qual se casou novamente e morreu quando nossa entrevistada estava com onze anos.

A partir dessa idade, Rita afirma que ela e a irmã foram criadas somente pela madrasta e que vivenciaram significativo sofrimento por não terem a presença dos pais. Além disso, aponta que a madrasta lhe agredia fisicamente com bastante frequência, mostrando acentuada mágoa em relação a essa vivência.

“[...] a gente só vivia no quebra pau porque ela [a madrasta] espancava demais a gente, né?!”. “[...] Devido ser pequenininha... Aquelas pressões que, que a gente pegava... E não podia falar pro pai porque senão no outro dia, levava uma surra, ficava acofinada [sic] num quarto, sem comer o dia todim [sic]... Só comia quando o pai chegava porque ela [a madrasta] tinha que mostrar que tava [sic] dando alguma coisa, a boazinha... Espancava a gente que sangrava, entendeu? É... Os braços era [sic] tudo marcado de unha... O meu e o da minha irmã... Ela pegava a minha irmã... E o que mais me revolta... Ela... pegar minha irmã, depois que meu pai faleceu, e botava pra dormir fora de casa. Isso eu nunca esqueço”.

O relato de Rita nos mostra uma realidade de vida difícil, de intenso sofrimento, que marcou bastante sua vida, conforme suas palavras: “Isso eu não esqueço”. Os episódios vividos naquela época, os instantes vivenciados ficaram gravados em sua memória, sendo incapaz de esquecê-los, evidenciando a mágoa

existente em relação a sua madrasta, àquela que se constituiu, durante bastante tempo, como uma referência de maternidade para a entrevistada. Talvez única referência.

A lembrança do passado torna-se um fardo, na medida em que perdemos a capacidade de esquecê-lo, o que provoca uma relação perversa entre o homem e o passado (NIETZCHE apud RICOEUR, 2010b). O excesso de história – e de memória – destrói o homem. Não esquecer, nesse contexto, significa (re) lembrar, (re) atualizar o fenômeno em sua vida, significa reviver a dor e o sofrimento de outrora.

O esquecer, por sua vez, pode ser percebido como uma força, seja de um homem, seja de um povo, que possibilita a cicatrização de suas feridas e a reparação de suas perdas (NIETZCHE apud RICOEUR, 2010b). Nesse sentido, esquecer certos episódios de sua vida pode estar associado a esquecer o sofrimento, a sarar a dor provocada por uma determinada situação.

Por outro lado, algumas lembranças não devem ser esquecidas para que se impeça a repetição de certas práticas e que se repare as que já ocorreram (KEHL, s/d). Desse modo, a lembrança tem também aqui o papel de alerta e de reparação.

A memória de nossa entrevistada, sobre as situações de violência vivenciadas, nas quais foi agredida pela madrasta, desempenha aqui tanto o papel de reatualização da dor envolvida nesses episódios como uma necessidade de reparação28 desse sofrimento, aqui vivido por meio do desejo de proteger seus filhos, de impedir que eles vivenciem o mesmo sofrimento pelo qual ela passou. Diversas são as vezes em seu relato que esse desejo de proteção é evidenciado:

“E ele [Rodolfo] queria fazer as crianças de empregada, né?! E eu não admitia. Quando ia ensinar as crianças, espancava... E eu via aquela cena na minha cabeça, como se fosse a madrasta. E eu brigava com ele, eu voava em cima dele:’ você não faça isso...’”

“E eu, e eu assim, eu luto pra que [os filhos] não venha ter sequelas mais tarde como eu tive, né?! [...] E eu não quero ver meus filhos sofrendo não”.

Nesse sentido, observamos que lembrar e esquecer são duas ações necessárias para a saúde de um indivíduo (NIETZCHE apud RICOEUR, 2010b), mas que seu excesso para qualquer um dos lados pode ser percebido como um peso. O excesso de memória não permite esquecer e viver outras experiências, enquanto o excesso de esquecimento não nos possibilita saber quem somos e de onde viemos.

28 Essa noção de reparação é oriunda de uma conversa com o Prof. Dr. Aluísio Ferreira de Lima, no Departamento de Psicologia, no dia 06 de março de 2015.

Em sua narrativa, Rita demonstra ter sentido-se órfã de mãe viva (DIAS, s/d), referindo ter alimentado durante bastante tempo um forte sentimento de raiva de sua mãe, por considerar que ela a havia abandonado, que tinha sido covarde por não ter lutado pelas filhas e que era a culpada por todo o seu sofrimento. Percebia sua mãe como a responsável por sua dor, pois considerava que, se ela não tivesse ido embora, não teria morado tanto tempo com a madrasta ou, pelo menos, a mãe poderia tê-la protegido:

“E eu achava muita covardia porque devido eu ter sofrido muito na mão da madrasta, e minha irmã também sofreu muito mais do que eu... E eu não podia fazer nada, né?! E eu via aquilo e a culpada só ela era, só era ela [sua mãe]. [...] Devido a gente sofrer muito. Era melhor ela sofrer com a gente do que a gente tá [sic] sofrendo sozinha. Eu acreditava dessa forma, entendeu?!”.

Aqui nossa entrevistada utiliza o verbo acreditar no tempo passado – acreditava –, sugerindo uma possível mudança de perspectiva em seu olhar sobre a relação com sua mãe, sobre o que iremos discorrer mais abaixo.

Quanto ao seu pai, Rita explicou que ele era um homem muito rígido e grosseiro em sua educação e que, considerando a realidade das pessoas do bairro em que morava, ele tinha boas condições de vida e buscava suprir as necessidades materiais das filhas.

“Ah, o pai era assim... O pai era muito grosso... [...] E assim... Ele era rígido, batia que só na gente... Ele dizia que a gente desobedecia, mas... Ele era aquela pessoa que ele dava tudo, tudo, tudo, tudo pras filhas. No bairro que eu moro, quando meu pai era vivo, era uma das pessoas que tinha mais condições do bairro... Porque ele fazia questão das filhas dele vestir bem, se alimentar bem, viver numa casa boa, entendeu?! Mas na hora de corrigir, ele era grosso pra caramba. Mas também a respeito da correção do meu pai, eu até louvo a Deus, porque, porque hoje eu trouxe pros ensinamento dos meu [sic] filho... Não espancando, mas ensinando o que era certo e o errado, né?! Porque se meu pai também não tivesse me ensinado, eu taria [sic] no mundo assim... Bolando...”.

Apesar do lado rígido, Rita demonstrou considerar os ensinamentos do pai um importante alicerce em sua vida, procurando transmitir para os filhos os valores que aprendeu com esse senhor. Contudo, buscou fazê-lo através de forma diferente, sem a utilização de agressões físicas. A influência do modelo de parentalidade recebido por Rita atua aqui em dois sentidos: reproduzindo o que considera adequado e modificando o que, em sua vivência, avaliou como não satisfatório.