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O (re) encontro com sua mãe e a descoberta de um novo mundo

PARTE II: DESCORTINANDO O MUNDO DE NOSSOS SUJEITOS

3.7 O (re) encontro com sua mãe e a descoberta de um novo mundo

Rita referiu que atualmente mantém contato com sua mãe, mas que não existe um relacionamento materno-filial entre elas, em virtude do distanciamento anterior. Explica-nos que, após ter tido sua própria experiência como esposa e como

mãe, buscou conhecer como havia sido a vivência de sua genitora. Foi então que a procurou, quando estava grávida da última filha, e que pôde conhecer o mundo vivido por ela:

“Eu tinha raiva dela [de sua mãe], tinha muita raiva. Ai quando eu consegui falar com ela, a primeira coisa que perguntei como foi a vida dela tando [sic] com o pai. Ai foi ai que o sentimento de raiva foi saindo, devido eu ter passado também, eu entendi que... que... Que foi ruim pra ela, entendeu?”.

“[...] 31 anos sem saber o que era que a mulher [sua mãe] tinha feito... Era... Foi muita perturbação mesmo, né?! Ai depois que eu consegui conversar com ela, minhas coisas foi [sic] se organizando... Parece que a mente foi abrindo, a visão de vida. Era só o ódio que tinha no coração, sabia?!”.

A entrevistada relata que, antes desse contato com a mãe, as histórias que conhecia sobre essa senhora haviam sido contadas por sua madrasta e por outras pessoas.

“Mas eu pensei que minha mãe, passei um monte de tempo sofrendo por ter pensado. Por ter pensado não, porque me diziam... A madrasta também dizia que minha mãe não prestava, que minha mãe era vagabunda, que minha mãe era isso, que abandonou a gente... E eu nunca tinha escutado da boca dela o que realmente foi. Ai depois é que eu fui atrás”.

Essa fala nos mostra a importância de ouvir e de construir outras versões sobre nossas vidas, não ficando somente com o que os outros nos dizem sobre nós mesmos. Não raro, introjetamos as percepções dos outros sobre nós, de forma que esse conteúdo se torna algo nosso, no sentido de que já não sabemos diferenciar o que é do outro e o que é nosso (CIAMPA, 2005). Daí, a importância de buscarmos as histórias ainda não contadas (RICOEUR, 2010a, 2010c) sobre nós e de construímos, nós mesmos, a narrativa acerca de nossas vidas, uma vez que isso permite que assumamos o lugar de autores de nossa própria história e que ressignifiquemos nossas experiências.

O trecho acima também nos revela a autoridade e o peso que a madrasta exercia na vida da entrevistada, a força que essa senhora desempenhava em sua vida, ainda que Rita não o desejasse, ainda que a relação entre elas fosse insatisfatória.

Nesse sentido, o contato com o mundo de sua mãe mostrou-lhe um outro horizonte da realidade, possibilitou a refiguração de sua vida, fez com que pudesse rever sua história, passando a narrá-la sob outra perspectiva. O sentido de uma narrativa se dá a partir do encontro entre o mundo do leitor, aqui pensado com o de nossa entrevistada, e o mundo do texto, pensado aqui como o de sua mãe, encontro esse que permite a transformação dos sujeitos envolvidos, conforme aponta Ricoeur (2010c).

“Com meu pai... A mesma coisa. O pai... E o pai foi casado duas vezes tam... três vezes. A primeira mulher, ele fez do mesmo jeito que o meu segundo marido fez. E a minha mãe, ele fez também... Mas a primeira mulher, ela reagiu igual a mim [...] A minha mãe não... A minha mãe deu de bobeira os filho [sic] e foi embora. Porque ela disse que era mole e não conseguia lutar contra o pai. E antigamente as coisas eram mais, mais dificultosa, né, pra mulher. Ai eu entendi... ‘Menina, como era que num [sic] vivia minha mãe antigamente, né’?! Não tinha lei pra mulher. E ela disse que apanhava muito do meu pai”.

“Ai eu achei assim... Valha, ela foi tão covarde. Mas ao mesmo tempo eu entendi que devido o tempo passado não era o tempo de hoje né?!”.

“Eu achava que ela tinha me rejeitado, né?! Mas, num [sic] foi isso [...]”.

Antes do contato com o mundo de sua mãe, Rita considerava que havia sido abandonada, rejeitada e que essa senhora havia sido covarde por não ter lutado pelas filhas, adotando essa perspectiva na narrativa de sua vida. Agora, relata que sua mãe vivenciou muitas dificuldades no relacionamento com o seu pai, as quais a fizeram ir embora, sem as filhas.

O encontro e o confronto com o mundo de um texto, e aqui mais especificamente entre duas pessoas, constitui-se como um momento que promove a transformação e a ampliação de nossa existência, bem como a extensão de nossa auto compreensão (RICOEUR, 1986).

Ao ser confrontada com o mundo de sua mãe, Rita vivenciou uma ampliação de seu próprio mundo, passando a compreender aspectos que anteriormente não conseguia. Já não se diz mais como abandonada, mas que sua mãe viveu dificuldades no relacionamento com o pai que a fizeram ir embora.

Percebemos uma clara mudança de perspectiva na fala de nossa entrevistada. Os acontecimentos do passado não podem ser alterados, eles já ocorreram, assim como as marcas deixadas por eles. Contudo, o sentido desses episódios nunca está fechado, podendo ser continuamente ressignificado, assim como ocorreu com nossa entrevistada (RICOEUR, 2012a).

Também a partir desse outro horizonte, Rita pôde perceber que a sua história estava repetindo a de sua mãe.

“Devido eu ser mãe e devido eu ter essa situação que eu passei com esses maridos, ai eu disse assim... ‘Menino, quem sabe o que foi que minha mãe passou também’? E você acredita que tudo que eu passei ela passou?”.

A entrevistada percebe uma repetição da experiência de sua mãe em sua própria vida, considerando que esse fenômeno se constitui como uma maldição e trazendo uma explicação religiosa para esse acontecimento, o que nos leva a perceber, mais uma vez, o peso da religião em sua vida. Considera ainda que, por não ter perdoado sua mãe, precisou reviver a história dessa senhora, até que se tornasse capaz de perdoá-la.

“A Bíblia diz que, quando a gente não se arrepende das coisas [...] Das coisa [sic] passada, ai as história [sic] da gente se repetem. Eu creio que foi uma maldição devido eu não ter perdoado a minha mãe, entendeu?! Porque? Porque eu só fui conseguir perdoar ela, entender ela, na gravidez da Lia”.

Rita afirma ainda que a vivência de abandono de sua mãe, que o contexto vivenciado em seu passado não lhe deixou “sequelas” no tempo presente:

“Sequelas de passado não [...] Não trouxe pro meu presente, né?! E assim... Foi até bom porque ai eu posso passar minha experiência pra outras pessoas”.

Apesar disso, percebemos em outros momentos de sua fala a presença dessas “sequelas” do passado, percebemos que o sentimento de rejeição materna lhe acompanhou durante muito tempo de sua vida.

“[Sobre sua madrasta] Nós não somos bem. [...] Mas é assim, ela não fale comigo que eu não falo com ela não. Porque eu acho assim... Sequelas tem que se resolver, mas no momento que eu vou abrir, me abrir pra falar o que ela fez, ai ela já começa outra confusão”.

“ENTREVISTADORA: [...] Que tipo de sequelas você acha que teve?

Rita: Assim... Pela rejeição da minha mãe. Eu achava que ela tinha me rejeitado, né?! Mas,

num [sic] foi isso [...]”.

“[Ao conhecer o mundo de sua mãe] Parece que a mente foi abrindo, a visão de vida. Era só o ódio que tinha no coração, sabia?! [...] E eu luto pra que minha filha não tenha ódio do pai dela né?! Isso é um tipo de sequela...”.