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PARTE I: DESCORTINANDO O MUNDO DA PESQUISA

2.1 O enfoque da pesquisa

Uma vez que definimos nosso objeto de pesquisa, estávamos condenados ao método: em nosso caso, uma investigação com enfoque qualitativo. A adoção de uma postura qualitativa ou quantitativa não se constitui como uma escolha ou mesmo como uma alternativa de trabalho. É a natureza de nossos objetos que define qual caminho percorrer e, nesse caso, não nos resta dúvida (BOSI, 2012).

À reflexão em que se constitui nosso problema investigativo, não cabem respostas que possam ser medidas numericamente. Aqui o trabalho a ser realizado é “[...] predominantemente com material discursivo ou outras formas de linguagem e suas perguntas condutoras referem-se a objetos cuja natureza não admite uma resposta numérica [...].” (BOSI; MERCADO-MARTÍNEZ, 2007, p. 32).

Afinal, como seria possível compreender a vivência de pessoas que passaram por um rompimento conjugal conflituoso, seus sentimentos e as repercussões em suas vidas através de programas estatísticos, cálculos sofisticados, gráficos ou outras formas de medição semelhantes? A reflexões dessa natureza, torna-se necessário que tenhamos acesso aos significados construídos, aos caminhos percorridos pelos sujeitos no decorrer de suas vidas, o que somente é possível através da abordagem qualitativa.

A pesquisa qualitativa refere-se a “[...] uma atividade situada que localiza o observador no mundo. Consiste em um conjunto de práticas materiais e interpretativas que dão visibilidade ao mundo.” (DENZIN; LINCOLN, 2006, p 17). Ao situar o observador no mundo, essa escolha diz-nos da visão de mundo e de homem e do lugar social ocupado pelo pesquisador; diz-nos também do papel atribuído aos sujeitos-

objetos das pesquisas e do modelo de ciência praticado e almejado. Ou pelo menos deveria dizer.

O enfoque qualitativo está relacionado não somente a um modo de fazer e pensar a ciência, mas a uma postura social, política, ideológica e ética (BOSI; MERCADO-MARTÍNEZ, 2007), sendo o contexto histórico em que a pesquisa está inserida um importante elemento a ser levado em consideração. O momento histórico poderá influir no modo como esse tipo de investigação é concebido e executado (DENZIN; LINCOLN, 2006).

Aqui o lugar social do pesquisador é reforçado, assim como os procedimentos adotados no estudo, havendo um íntimo relacionamento entre eles. Não se trata de uma relação determinista, mas a posição ocupada poderá interferir diretamente nas práticas escolhidas, assim como essas irão influenciar o modo como a realidade em análise será visibilizada. Em virtude da complexidade do mundo da vida das pessoas, muitas são as nuances dos fenômenos sociais, os quais poderão ser percebidos de modo diferente conforme as lentes em uso.

Outra característica fundamental desse tipo de investigação refere-se à reflexividade do pesquisador, que não busca a neutralidade e que se sabe como parte do processo de pesquisa (FLICK, 2004). Aqui, tanto a subjetividade do sujeito pesquisador quanto a do pesquisado são levadas em consideração, havendo constantes trocas entre eles. Como partícipe da pesquisa, o investigador deve ter a clareza de que suas percepções são oriundas de seu modo particular de enxergar o mundo da vida e de que sua lente interfere em suas escolhas, devendo tecer constantes reflexões acerca de suas práticas e observações. Dessa forma, todo esse conteúdo subjetivo precisa ser levado em consideração no processo interpretativo.

A pesquisa qualitativa proporciona a aproximação entre sujeito e objeto, em virtude da mesma natureza que apresentam (MINAYO; SANCHES, 1993). O objeto da investigação qualitativa é constituído por “[...] significados, motivos, aspirações, atitudes, crenças e valores, que se expressa pela linguagem comum e na vida cotidiana.” (p. 245).

Esse enquadre de pesquisa propicia a análise dos significados e dos sentidos que os sujeitos constroem e atribuem as suas ações, compreendendo que existe uma íntima relação entre a realidade e o sujeito, sujeito e objeto, objetividade e subjetividade, pares que não podem ser percebidos separadamente (CHIZZOTTI, 2001).

Tentando compreender e dar visibilidade ao mundo a partir dos valores, crenças e significados que os indivíduos atribuem aos fenômenos, podemos perceber que os sujeitos da pesquisa não ocupam, aqui, o lugar puramente de objetos de estudo, com toda a passividade que esse termo sugere. A dicotomia sujeito-objeto é, portanto, radicalmente alterada, transformando-se em uma relação sujeito-sujeito, pessoa-pessoa, na qual os polos apresentam a mesma natureza, mas exercem e ocupam papéis distintos.

Diante dessa posição dos participantes das pesquisas, suas falas ocupam lugar central. É a fala cotidiana que revela a cultura, os valores, os hábitos, as normas e os símbolos de uma sociedade e que constitui o material primeiro de uma pesquisa como essa (MINAYO; SANCHES, 1993). Ou seja, é através das falas que buscamos ter acesso aos valores e aos sentidos que os sujeitos constroem acerca de suas vidas, muito embora não possamos deixar de mencionar que outras formas de linguagem também possibilitam o desvelar dos processos simbólicos.

Na investigação qualitativa, é utilizada uma multiplicidade de práticas interpretativas, através das quais as falas e outras formas expressivas podem ser acessadas e analisadas, produzindo uma diversidade de materiais empíricos16. Essa multiplicidade pode ser traduzida em estudos de caso, experiências pessoais, entrevistas, histórias de vida, textos observacionais, dentre outros formatos; e permite a transformação do mundo e dos significados dos sujeitos em material analítico para o pesquisador. Desse modo, a diversidade de procedimentos possibilita a construção de distintos olhares sobre o mundo, com o intuito de se obter uma melhor compreensão acerca dos fenômenos estudados, levando-se em consideração a impossibilidade de uma total apreensão da realidade objetiva e a inexistência de verdades únicas e absolutas sobre a vida (DENZIN; LINCOLN, 2006).

Não se deve conferir destaque a nenhuma estratégia metodológica sobre outra, seja de construção, seja de análise do material empírico, assim como não há uma teoria ou paradigma que possa ser visto como inerente ou exclusivo ao enfoque qualitativo. Esse tipo de investigação se constitui como transversal a diversas disciplinas, contemplando diversos paradigmas teóricos (DENZIN; LINCOLN, 2006).

A pesquisa qualitativa em saúde se constitui como um terreno prioritariamente interdisciplinar, que abriga uma diversidade de pontos de vista,

16 Notas de aula: material empírico refere-se a uma expressão utilizada pela Profa. Dra. Maria Lúcia Bosi, nas aulas da disciplina Metodologia Qualitativa de Pesquisa Social em Saúde, realizada no Curso de Mestrado em Saúde Pública da UFC, durante o segundo semestre de 2013. Essa definição diz respeito aos dados construídos durante o trabalho de campo.

disciplinas, teorias e técnicas, preconizando a inexistência de verdades únicas e absolutas sobre a realidade, assim como sobre o fazer científico (BOSI; MERCADO- MARTINEZ, 2007). Bosi (2012) assevera que o momento nos convida não somente ao trabalho interdisciplinar, mas à inter(trans)culturalidade, ampliando, assim, a discussão para outros âmbitos e desafiando-nos a incorporar outras racionalidades, outros saberes, sendo possível perceber que a única verdade aludida pela autora diz respeito à necessidade de rigor metodológico, ou na fala da própria pesquisadora: “[...] o que postulo é ousadia com rigor.” (p. 580).