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PARTE I: DESCORTINANDO O MUNDO DA PESQUISA

1.3 O olhar jurídico sobre a dissolução conjugal

1.3.2 O Código Civil de 1916 e o desquite

A primeira versão do Código Civil Brasileiro data de 1916 e nela o fim da sociedade conjugal era estabelecido pelo desquite6, seja amigável ou judicial, pela morte de um dos cônjuges, pela nulidade ou pela anulação do casamento. Contudo, dentre essas formas, somente a morte de um dos cônjuges proporcionava a dissolução do casamento, o que significa que eles poderiam se separar, mas não poderiam constituir novo casamento, pelo menos não legalmente. Ou seja, o casamento era indissolúvel, até que a morte os separasse (art. 315) (BRASIL, 1916).

O pedido de desquite somente competia aos cônjuges (art. 316), salvo um deles fosse considerado incapaz, quando poderia ser representado, e a separação só poderia ocorrer quando sentenciado o desquite pelo juiz (art. 322). Mantiveram-se aqui as causas da separação de corpos apontadas por Pereira (2013), acrescentando-se apenas a tentativa de morte. Nesse sentido, o desquite poderia ser solicitado por mútuo consentimento (art. 318) ou por motivo de “I. Adultério; II. Tentativa de morte; III. Sevícia, ou injúria grave; IV. Abandono voluntário do lar conjugal, durante dois anos contínuos” (art. 317) (BRASIL, 1916). Podemos observar também que o afeto – ou a sua falta – não é levado em consideração por essa legislação, não sendo apontado como uma possível causa para o desquite.

Ao discorrer sobre a guarda dos filhos, o texto apontava que, em caso de desquite consensual, a decisão sobre a guarda poderia ser estabelecida pelos cônjuges (art. 325), mas que, nas situações em que o desquite fosse litigioso, a guarda ficaria com o inocente, isto é, com aquele que não fosse o culpado pela separação. Quando ambos os genitores fossem responsáveis pelo desquite, a guarda das meninas ficaria com a mãe e a dos meninos também, mas somente até a idade de seis anos deles, quando passariam para a guarda paterna (art. 326)7.

Esse Código não traz a regulamentação sobre como deve ocorrer o contato entre o genitor não guardião e os filhos, apontando que o direito dos pais de terem os filhos em sua companhia, após o desquite, é alterado, mas não definindo como (art.

6 Segundo Pereira (2013, p. 32), “a sentença do desquite apenas autorizava a separação dos cônjuges, pondo termo ao regime de bens. No entanto, permanecia o vínculo matrimonial. [...]. A legislação civil inseriu a palavra “desquite” para identificar e diferenciar da simples separação de corpos”.

7 Essa legislação também discorre sobre outras situações de guarda, mas, por serem muito específicas e por não corresponderem aos nossos objetivos, não abordaremos aqui.

381). Cabe explicar que a expressão “conservar em sua companhia” o filho possui o significado associado a ter a guarda do filho.

O pátrio poder, direitos e deveres dos pais sobre os filhos menores de idade, era uma atribuição do homem, considerado chefe da família, somente podendo ser desempenhado pela mulher, quando aquele estivesse ausente ou impossibilitado (art. 233 e 380). A mulher, enquanto casada, mesmo na função de mãe, era considerada companheira, consorte e auxiliar do marido nos encargos familiares, estando subordinada a ele, que poderia representar e exercer seu domínio sobre toda a família (art. 240). É interessante perceber que a Constituição de 1891 (BRASIL, 1891), maior instrumento legal que regia o país nesse período, já trazia explicitado, em seu texto, a igualdade entre todos perante a lei, porém no Código Civil de 1916, esse princípio é relativizado, na medida em que aponta uma relação de subordinação entre homens e mulheres.

Após o desquite, a mãe, caso contraísse novas núpcias, perderia o direito ao pátrio poder, podendo recuperá-lo caso se tornasse viúva (art. 393), contudo não perderia o direito de ter consigo os filhos (art. 329) (BRASIL, 1916). Também não encontramos ressalva quanto ao exercício da guarda materna em caso de novas núpcias, desde que a mulher não fosse a culpada pela separação.

Sobre isso, questionamo-nos sobre o quê, de fato, perderia a mulher que constituísse novas núpcias se o homem é que detinha o pátrio poder. Como perder algo que não possuía? A mãe perderia, aqui, o pátrio poder que lhe cabia, ou seja, nas situações em que o pai estivesse impossibilitado ou ausente (art. 380). Além disso, despertou-nos a atenção o fato de a mulher não perder o direito de ter os filhos morando consigo, nem o direito de guarda, que estariam relacionados, a nosso ver, com o pátrio poder. Nesse dispositivo legal, pátrio poder, guarda e a possibilidade de ter os filhos em sua companhia eram abordados separadamente, embora existisse forte ligação entre eles.

Apesar de não ser detentora do pátrio poder, nos casos em que contraísse novas núpcias, a mãe poderia continuar com os filhos em sua companhia, poderia permanecer com a sua guarda, restando-nos, assim, outros questionamentos: afinal, no que se constituiria esse pátrio poder? O que significava a guarda? Quais as implicações de ter os filhos morando consigo? Em nosso estudo, não encontramos respostas quanto ao significado de pátrio poder nesse dispositivo, sendo apenas explicitado, na seção quanto ao pátrio poder sobre a pessoa dos filhos, que compete aos pais:

I dirigir-lhes a criação e educação; II tê-los em sua companhia e guarda; III conceder-lhes, ou negar-lhes consentimento para casarem; IV nomear-lhes tutor, por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais lhe não sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercitar o pátrio poder; V representa- los nos atos da vida civil; VI reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; VII exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição (art. 384) (BRASIL, 1916).

Também pudemos observar que esse dispositivo legal não discorria acerca da definição da guarda, do modo como deveria ocorrer, não existindo modalidades diferentes de guarda, sendo priorizado, ainda que não nomeadamente, a opção pela guarda unilateral.

A escolha pela guarda não era, até então, fundamentalmente feminina. Pelo menos, não legalmente. No caso de desquite amigável, a guarda seria decidida por ambos os cônjuges, mas é possível verificar que o peso da vontade do homem prevalecia, tendo em vista que ele era o detentor do pátrio poder e que a sociedade era regida por valores patriarcalistas. Embora pudesse ser definido que a guarda ficaria com a mulher, não era de se estranhar que essa decisão não fosse necessariamente uma escolha feminina, mas que fosse tomada, prioritariamente, pelos homens.

Nas situações de desquite judicial, o culpado pela separação, homem ou mulher, seria destituído da função de guarda. Em caso de culpa de ambos os genitores, a guarda dos filhos seria estabelecida de acordo com o sexo das crianças, conforme já mencionado, o que leva a observar que a guarda nem sempre era associada à mulher, embora já possamos ver aqui certa preferência por essa opção. Ademais, como a guarda dos filhos era destinada prioritariamente para o cônjuge não responsabilizado pela separação, a culpa se configurava como um importante elemento na definição de guarda.

Podemos perceber aqui, por um lado, certo predomínio da guarda feminina, e, por outro, o predomínio da vontade do homem, ao considerar que o pátrio poder era exercido por ele. Desse modo, o que observamos é que a atribuição da guarda às mulheres, ainda que na teoria, não era uma escolha delas, mas uma definição da legislação ou da vontade dos homens.

Diante desses aspectos, surgiu-nos a seguinte reflexão: se o pátrio poder atribui aos pais, de forma comum, a guarda dos filhos, bem como a condução de sua educação e a representação deles e se o desquite, mesmo o judicial, não os destitui do pátrio poder, não seria incoerente destituir um dos pais da função da guarda? Por que

pensar em exercício unilateral da parentalidade? Retomaremos esses questionamentos ao abordar o Código Civil de 2002.

1.3.3 As Constituições de 1934, 1937, 1946, 1967 e de 1969 e a indissolubilidade do