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A SEXUALIDADE HUMANA E RELAÇÕES INTERPESSOAIS

1 – Contextualização

O tema do ser humano como ser em relação foi desenvolvido no século XX, particularmente, pelas correntes existencialistas e fenomenológicas. Esta abordagem foi realizada no contexto do pensar filosófico, complementado pelas ciências que procuraram mostrar a importância do ser em relação, como característica central do ser humano.

O carácter estrutural e relacional do ser humano foi analisado e estudado por diversos autores, sendo de destacar Gabriel Marcel, Martin Buber, Emanuel Levinas, Paul Ricoeur, entre outros. Martin Buber foi o autor que melhor soube exprimir o profundo carácter relacional do ser humano. Buber considerou que o facto fundamental da existência humana era o encontro do homem com um ser semelhante.

A condição relacional do ser humano sem a primeira dimensão biológica, resultante do encontro do óvulo com o espermatozóide concretizou-se em relações subsequentes. A primeira e mais profunda relação foi com a mãe, depois com o pai e mais tarde com os outros, com o meio aculturado e com o transcendente. A partir deste conjunto de relações, a pessoa realiza o seu projecto imanente, desenvolvendo as suas capacidades e tornando-se responsável pelas suas acções.

A realidade humana é tão complexa que exige uma familiarização contínua com o seu modo de actuar e de ser. Os seres vivos diferenciam-se dos não vivos pela capacidade de movimento, de interiorização, de realização do próprio projecto de vida, de uma unidade e de um ritmo cíclico e harmónico que permite compreender o lugar do homem no universo. Todas estas características se desenvolvem numa escala de gradação sucessiva rumo à perfeição, à independência e à auto-realização247.

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YEPES STORE, Ricardo e ARANGUREN ECHEVARRÍA, Javier, Fundamentos de Antropologia.

Um Ideal de la Excelencia Humana, 3ª ed., Ediciones Universidad de Navarra. S. A., Pamplona, 1998, p.

A pessoa tem como característica principal a abertura ao outro. Nas relações interpessoais a manifestação da interioridade constitui o centro da existência humana. A pessoa é um ser constitutivamente dialogante, caso contrário a sua vida seria solitária, estéril.

Ao longo das etapas da sua vida a pessoa necessita dos outros, de “aprender a reconhecer-se a si mesma, de desenvolver a sua vida com normalidade e alcançar a sua plenitude. A solidão no homem significa a sua frustração radical. Não há um eu sem um

tu. E o tu é um rosto”248.

A antropologia apresenta o homem como um ser para o encontro. Já Aristóteles referia que o homem por natureza era uma realidade social devido à capacidade de comunicação. Este homem, enquanto realidade aberta, mostra a sua radical indigência. O homem é um ser que desde o primeiro momento precisa dos outros, pois é uma realidade que não se basta a si mesma, é uma realidade aberta aos outros. Nesta manifestação da interioridade, o ser humano compartilha e cria a relação.

A intimidade é irrepetível e em certo sentido, faz parte do mundo interior capaz de inovar, de criar e de se manifestar ao outro através do diálogo. Para Marciano Vidal a intimidade é uma estrutura existencial da pessoa que se converte no imperativo fundamental do ser humano. A pessoa tem necessidade de guardar os seus mistérios e aquilo que é segredo, pois só assim é que pode respeitar o mistério dos outros. No plano do ser, a intimidade necessita de possuir um mundo só seu, secreto e pessoal, um lugar de mistério. A intimidade pessoal é uma exigência da convivência, pois só pode conviver e dialogar a pessoa que tem intimidade. Na experiência da intimidade interpessoal os sociólogos consideram que é importante um círculo com poucas pessoas, onde reine uma atmosfera de conhecimento e de amizade, em que predomine a segurança e a protecção, em que sentir e estar juntos implique a descoberta do ‘mistério inefável da pessoa’ e onde a comunicação das pessoas se realize na base da confiança mútua dos segredos pessoais. A intimidade pessoal necessita da intimidade inter- subjectiva para poder manifestar-se. Deste modo, a intimidade é recolhimento e abertura. A intimidade do «eu» vivência-se e realiza-se na descoberta do «tu». A manifestação da intimidade realiza-se através do corpo, dos actos e do diálogo.

Desde do início do século passado, a linguagem tem sido objecto da ciência. Mas o que é a linguagem? A linguagem é o método utilizado pelo ser humano para

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comunicar ideias, emoções e desejos, enfim, para dialogar. Nas relações interpessoais as pessoas compartilham, através da linguagem o seu pensamento, a sua amizade e o comum da vida social. Esta linguagem permite ao ser humano conhecer e manifestar a sua interioridade, aquilo que guarda em si, mas só o fará se ele próprio decidir que deve comunicar ao outro aquilo que lhe é imanente. Para que a comunicação aconteça é necessário que a pessoa descubra no outro um «tu» e que se relacionem entre si como um «tu». No diálogo o «eu» abre-se ao «tu» com espontaneidade. O diálogo implica a comunhão que exige a doação total e para sempre do «eu» ao «tu».

A relação interpessoal acontece quando uma pessoa se relaciona com outra, quando de algum modo o «eu» entra em contacto com um «tu». O outro tem que ser para mim um «eu» íntimo e pessoal, igual a um «tu». A relação interpessoal que acontece com mais frequência é a amizade que é comum e constante no amor. A partir do ponto de vista fenomenológico, a amizade é um encontro interpessoal do «eu» com o «tu» para fazer entre os dois um nós, ao mesmo tempo que constitui o núcleo verdadeiramente interpessoal de qualquer relação. A realidade dinâmica e relacional do «eu» e do «tu» conduz ao nascimento de um «nós». O «nós» foi uma das descobertas mais importantes do homem moderno, que ainda não se encontra bem preparado para esta grande aventura, mas a deve procurar realizar em todos os níveis e em todos os campos diz Laín Enralgo. “No amor o eu e o tu mais do que se somarem, multiplicam- se criando um nós verdadeiramente original que transforma dum modo específico o eu e o tu que se integram nele. Quando o eu e o tu se amam, algo novo e original nasce no mundo (…) deixando-se transformar pela comunidade de amor que entre eles se formou”249. A integração do «eu» e do «tu» no «nós» pertence ao fenómeno da reciprocidade mútua. Na realidade, se o «eu» e o «tu» querem fazer um autentico «nós», devem compartilhar tudo: o que têm, o que fazem e o que são. O verdadeiro «nós» só existe na entrega generosa do «eu» e do «tu», momento onde radica a fundamental e essencial diferença entre o ‘amor benevolência’ e o ‘amor amizade’. Isto só é possível quando os dois que amam pensam em dar-se e só esperam a reciprocidade como um acréscimo, que permite amadurecer a generosidade. A reciprocidade está na natureza do verdadeiro amor. O amor não é um ponto de chegada, é o início de uma partida para a aventura que não se pode vir a instalar. Neste sentido, o «eu» tem que afirmar a existência do «tu», ajudando-o a existir, isto é, a ser ele. Para isso o «eu» deve estar

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aberto a todas as manifestações da experiência existencial do «tu», sem dar aquilo que já adquiriu ou descobriu por si mesmo. Bergson afirmava que era necessário o «eu» reduzir-se numa atitude de amor e de respeito, para que o melhor dele se transmitisse ao «tu», em silêncio e sem se impor. O encontro entre o «eu» e o «tu» contribui para passar do estado de subconsciência para o estado de consciência, permitindo a descoberta do outro, capaz de pensar e de fazer, chamando-o a ser.

A atitude mais importante e possível perante o «tu» é o amor e a amizade tanto do ponto de vista antropológico como cristão. Só nesta base do amor e da amizade é que se pode criar um verdadeiro «nós», desde que as relações não passem a ser de indiferença, interesse manipulador, projecção narcisista, de isolamento, incapaz de se integrar para construir uma relação. Para S. Tomás a amizade é um amor de benevolência fundado no diálogo. A amizade consiste em desejar o bem do amigo, supõe a igualdade ontológica e desenvolve-se numa comunidade em que o amigo é a duplicação de si mesmo. Para António Hortelano a verdadeira amizade consiste em dar- -se ao «tu», a ele mesmo, à sua pessoa, no que tem de mais profundo e insubstituível. Frente a um «eu» o «tu» é um mistério fascinante e tremendo ao mesmo tempo que se olha ao ‘espelho’, se deixa descobrir e ‘desnudar’. O «eu» não pode ser um «eu», se não estiver frente a um «tu» e dentro de um «nós» que resulta da comunhão com os outros250. Como diz Jasper é na comunhão que o ser humano se experimenta a si mesmo e se realiza como pessoa.

Todos os actos da vida humana de uma forma ou de outra têm a ver com o amor. No acto de amar, de entregar-se, de penetrar na outra pessoa, dá-se o encontro consigo mesmo e com o outro, acontece a descoberta de si e do outro. A única forma de alcançar o conhecimento consiste no acto de amar.

A forma mais rica de relação entre as pessoas é o amor que permite a partilha com os outros da sua própria pessoa. Neste caso, há partilha de bens íntimos e comuns que lhe possibilitam a capacidade de amar. “Amar (…) é um fundir-se de duas vidas numa, entende-se só como uma vida em comum, uma vida na qual todo o amante é do amado e vice-versa”251.

Amar é um acto da vontade da pessoa que, por vezes, está acompanhado por um sentimento. Este acto da pessoa é dirigido a outra pessoa que não se pode amar, simplesmente, desejando-a, pois aí estaria presente a utilização para satisfação própria.

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Cf. HORTELANO, António, op. cit., p. 138. 251

As pessoas devem ser amadas como um fim, onde esteja presente o próprio bem. Quando estamos perante um sentimento que não é amor, chamamos-lhe de afecto. Em ambos os casos estamos a falar de sentimentalismo e não de amor, actos que se confundem facilmente nos dias que correm. A definição de amor é um conceito muito lato, mas podemo-lo resumir à ideia de que consiste em fazer feliz a pessoa amada. Assim, amar é uma doação recíproca em que se manifesta a intimidade ao dialogar; amar é partilhar a intimidade em comum; amar é alegrar-se de estar junto, tornando-se dois seres em um; amar é perdoar as limitações e os defeitos do outro; amar é renovar o amor, olhar para o outro como se fosse pela primeira vez; amar é ajudar a retribuir a oferta do dom recebido; amar é cuidar, vigiar, tomar conta do outro; amar é recordar, é evocar a presença do outro ausente; amar é sofrer, compartilhar a dor com a pessoa amada; amar é acolher o outro, é aceitar o dom do outro e fazê-lo nosso; amar é colocar- se no lugar do outro, consolidar e crescer na doação recíproca; amar é compreender, conhecer os motivos e opiniões da intimidade do outro; amar é ser com o outro; amar é escutar, dar tempo ao outro para se expressar; amar é atender e ser receptivo; amar é obedecer, é actuar de acordo com o bem do outro; amar é entregarmos o futuro ao outro com uma promessa desinteressada e incondicionada; amar é ser leal; amar é confiar; amar é aguardar com esperança, mesmo na adversidade; amar é agradecer a abertura da interioridade, o cuidado, o tempo dado; amar é dar o ser a um novo ser, é criar; amar é honrar, estimar e mostrar reconhecimento; e, por último lugar amar é ter vocação de imortalidade.

A comunhão entre o «eu» e o «tu» tem como característica o querer amar-se para sempre. Este amar-se para sempre acontece na estabilidade do matrimónio.

A teia de relações que constrói a vida de uma pessoa que é única, exclusiva, irrepetível, e imprevisível, fazem dela um ser aberto à comunhão, tendo em conta a liberdade, a responsabilidade e a complementaridade no acolhimento e dom recíproco ao outro.

No ser humano existe uma necessidade constante para construir a plenitude que é felicidade. Contudo, hoje “em dia, é frequente uma versão «débil» e «pactista» do amor, que consiste em renunciar ao que não se pode interromper. Este modo de vivê-lo traduz-se no abandono das promessas: ninguém quer comprometer a sua eleição futura, porque se entende o amor como convénio, e espera que dê sempre benefícios”252.

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Desde que Hegel propôs o conceito de alienação, este converteu-se num dos temas da cultura moderna. O conceito de alienação supõe que o «eu» se desinteressa por completo dos que o rodeiam, a ponto de os ignorar. Esta radical indiferença para com o «tu» é, muitas vezes, consequência do inumano esvaziamento das grandes cidades. As pessoas não têm tempo para olhar os outros, para estarem abertas aos outros, ao mesmo tempo que faltam espaços de liberdade e de silêncio onde na verdade se possam olhar com calma e profundidade. Outras vezes, o «eu» fixa-se num «tu» pela utilidade que dele lhe advém. Esta utilização pode ser de exploração económica, de manipulação do poder ou de instrumentalização do prazer de um pelo outro ser humano. Outro fenómeno menos positivo da sociedade moderna é a agressividade, provocada por várias causas que tornam difíceis as relações entre os homens.